sexta-feira, setembro 27, 2013

Assum branco - vol. III

Que dias há que n’alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê.


Camões

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Identifico-me ao porteiro, que trata logo de abrasileirar as coisas, e assim entro em casa de Manu. De repente é muita gente com o mesmo nome nos meus dias, e eu penso se isso é evidência de alguma coisa: pretexto, horóscopo ou um destino inescapável – cancelar o inverno alemão e ir ler Pessoa à beira-mar.

Mas ainda é quinta-feira, Manu tem um sotaque francês que eu adoro, uma habilidade para fazer coisas – tranças, cartões, cadernos – e talvez seja o mês, o horóscopo ou um pretexto: tem sido muito difícil não gostar das pessoas, de pisos de taco, das calçadas do Flamengo.

Na janela L. e eu falamos de encontros – ainda que pela metade – e trocamos um daqueles abraços que só mesmo na primavera, e  agora parece-me impossível narrar isto que ainda se dá em algum lugar de nossas barrigas e ressacas, porque Manu faz de suas delicadezas carimbos – reais e metafóricos – e eu não tenho preparo emocional para tanto: uma poção mágica da Mongólia; um foie gras feito pela avó já falecida, armazenado em pote datado; a foto da avó, de negro, imponente; hortelã com rum em copos de geleia com enfeite artesanal feito com a mão dela – e penso nos copos do Pedro e quero ter uma casa toda assim, com objetos transformados, coisas que eram outras, interferências – conquistar um território.


E toda aquela revoada de pássaros espalhada por ali, ou nuvens, porque tem sempre alguma coisa que voa em dias assim. 




segunda-feira, setembro 23, 2013



Quero dizer que se todos nos importamos com comer imediatamente, importa-nos ainda mais não desperdiçar apenas na preocupação de comer imediatamente nossa simples força de ter fome. 

Artaud em O teatro e seu duplo




sexta-feira, setembro 20, 2013

O dia que jantei com César Aira

pessoas são permeáveis ou impermeáveis, mãe? 

Muito antes de tudo isso acontecer eu tinha andado por Santiago atrás de todos os livros possíveis do Alan Pauls e do César Aira. Eu tinha até pensado em mudar o destino, desembarcar em Buenos Aires, entrar numa livraria e sair um ano depois, hablando sola e cantando uma música do Devendra, uma que talvez ainda nem existisse, mas que meses depois seria mais ou menos a trilha sonora perfeita daqueles dias.

Antes, também, num café com P., a gente tinha trocado figurinha sobre alimentação saudável: o que M. achava impossível, visto que eu era irônica demais para ser hippie; o que L. achava meio hilário, a ponto de revelar que houve um tempo até que eu passava ghee no olho (e Aira riu) – o que não nos impediu de encher a cara de cerveja e pão com manteiga, mesmo que eu estivesse com a pior dor de garganta do mundo e que a nossa mesa fosse praticamente numa esquina onde ventava pacas.

César escolheu o magret por causa do comissário Maigret, e eu ri lembrando da aula de francês em que desisti do Simenon por ter chegado à conclusão que Madame Maigret era uma submissa e que seu marido era um machista. Sim, eu já fui dada a extremismos, muito antes de tudo isso acontecer.

Tentamos arrancar dele o que fosse, desde as declarações mais banais até um spoiler de um livro futuro. Conseguimos uma ideia para uma novela que ele gostaria de escrever, mas foi P. quem me fez rir de novo, dessa vez para todos, quando disse que tinha comprado uma centrífuga e que incluíra o episódio do suco verde em sua peça de teatro – o que ao mesmo tempo me fez ficar vermelha de vergonha.

César ficou ali à deriva em meio ao nosso português, a uma ou outra declaração não-ortodoxa sobre a vida conjugal de Alan Pauls (chacun son coluna social) e outras gentes mais próximas, algumas delas em estado de pré-surto (ou cocaína, como sugeriu M.). No fim da noite o mistério permanecia no meio sorriso insistente de César, e quando ele pediu uma sobremesa de morangos fui sensata o suficiente para perder a piada óbvia e sem graça que eu poderia fazer – obrigada, a quem quer que seja o responsável.


O fato é que aquela combinação de morangos com o vento e o cigarro que César fumou depois – e que eu fumei junto em pensamentos – pareciam a mim muito fieis a duas novelas que ele já tinha escrito, que eu lera embasbacada, que eu não sabia mais quantos delírios continham, e eu fiquei quietinha vagando pela minha cabeça de leitora paranoica. Mas é incrível: assim como livros, tem vidas que não existem, e eu fico monga em eventos desse porte. Hay que aceptarlo




quarta-feira, setembro 18, 2013

Yoga for dummies

Voltei ao mundo om, mas a verdade é que toda vez que deparo com um texto de alguém que nada meu coração se treme todo. Clica aqui, desça um pouco e lá estarão os versos do Ismar. 

Enquanto isso, um soft opening por esse outro caminho.



segunda-feira, setembro 16, 2013

Assum branco - vol. II

(outros sinônimos)

Ali naquela conversa eles planejavam fazer mesas com as próprias mãos – é o que os artistas perseguem, não é? Deixar seu rastro. Da outra vez que estive ali havia um martelo displicente sobre uma pilha de livros e eu comecei uma coleção de fotos dos cantinhos, dos ramos de flores, das folhagens na cozinha, das fotos e postais. Desta agora o desenho da porta emoldurado na parede, maços e maços na varanda, uma briga que eu nem sei se acabou bem, um hematoma na perna direita que me faz crer que nos atacamos.


Entre uma dose de vinho e outra, na confusão dos copos de requeijão Aviação que nos serviram de taças, no barulho que 12 pessoas fazem juntas numa tarde, Pedro puxa uma cadeira e me conta de suas aulas de teatro, da temporada, da tentativa de entender o que acontece consigo depois de experimentar estar em cena, seu corpo, sua carne – eu quase choro, porque ele sabe que aconteceu um troço meio mágico que ele não dá conta de explicar, e sinto saudade de sentir isso também, e devoro tomates quando ele diz que está dançando. Pedro está dançando – uma caixa de surpresas – e tem como mestra uma ex-bailarina de Pina Bausch – e eu vejo toda uma vida que eu poderia levar em Pinheiros, vizinha da cozinha com piso de ladrilhos, da estante de livros que contém dois Suicídios exemplares emparelhados, do armário amarelo. Pedro está dançando  eu esqueço de contar para ele que comprei passagens para Wuppertal – e com certeza ele vai entender tudo o que precisa. 




quarta-feira, setembro 11, 2013

Assum branco*


Onde está teu sinônimo no mundo?
Clarice Lispector, Um sopro de vida

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Estou obcecada por uma música tão linda quanto triste* e não sei o que fazer, eu disse a ela. É como se eu perseguisse uma melancolia. Faz sentido?, eu perguntei e ela riu. Deve fazer. 

Perguntei, também, se era muito cedo pra falar dele, e é claro que era, e ela concordou. É que aquele dia, no sofá, tudo o que ele falava eu emendava, exceto o final: comecei a chorar naquele segundo ato (eu também); e aquela neve (eu também); e não conseguia parar (eu também); e como é que se levanta da cadeira depois? (eu também); eu estava bem perto do palco, peguei um pouco da neve e guardei no bolso do casaco (ele disse, e como é que se levanta do sofá depois? E, de alguma forma, acho que ainda estou por ali, esparramada sentindo o peito dele subir e descer.)