Você vai ao festival algum desses dias?
Vou, amanhã e depois. Oba, vou amanhã também.
Mas nos esquecemos do pequeno detalhe de
combinar qual das peças assistiríamos, e à entrada do Centro Cultural descobri
que eu tinha comprado ingresso pra peça “errada”. J. sorriu engraçado e disse
que L., que tinha informações privilegiadas sobre o festival, também iria à
peça “errada”, e que bom que estaríamos juntos nessa empreitada. Entendi tudo
como um alerta de terror. Logo apareceu L., que se sentou ao meu lado e
demonstrou toda sua preocupação com a montagem, fruto de uma residência do
diretor no Brasil. Ao contrário de parte dos integrantes, que tinham abandonado
o barco no meio do processo, ele se inquietava, em particular, com um dos
componentes que não só havia ficado, como não conseguia sair de seu personagem
de palhaço. Pelo relato de L., o sujeito não conseguia voltar à normalidade da
existência. Até nem parecia tão grave assim, diante do estado geral das coisas.
L. e eu temos um pequeno histórico de
suplícios teatrais, de voltas para casa e/ou chopes pós-peças em que, entre
exaltados e abatidos, destilamos toda nossa incompreensão raivosa provocada por
certas cenas. É um misto de “a vida se repete” com “tudo pode piorar”. A peça “errada”
não era apenas errada, era um terror de quase duas horas, featuring o palhaço.
Antes de descobrirmos isso, L. teve tempo de me contar que o diretor, que
mantém um blog quase diário desde 2006, havia escrito algumas coisas acerca dos
dias no Rio de Janeiro. Entre elas, só se refere ao teatro como “o banco”, já
que o teatro está mesmo situado na antiga sede do banco que dá nome ao Centro
Cultural.
É provável que o palhaço surtado e as
impressões do diretor sobre o Rio sejam as melhores coisas que você vai
descobrir sobre essa peça.
Duas amigas falavam aos cochichos, sem
parar, atrás de nós. Elas saíram da sala quando faltava pouco mais de 15
minutos para o fim da performance. A maioria dos desertores não esperou tanto.
Um coro de homens em linha reta no proscênio simulava choro. Em uma segunda
entrada, simularam risos. Uma dupla formada por mulher e homem executou uma
dança. Um ator vestido de preto, sentado na plateia, subiu ao palco, duas ou
três vezes, para fazer nada mais que ficar sentado ou nos encarando. Um ator
urinou – bastante – em cena, depois de se engalfinhar, nu, com um outro ator
cuja bunda era a visão do paraíso. Depois de um certo tempo de vida, você sabe
muito rapidamente quando estão testando seus limites, e se pergunta até que
ponto a provocação te dá sono ou tédio. É difícil distinguir, às vezes.
A certa altura, o grupo todo, 12 ou 13,
talvez 14 ou 15 pessoas, começa a ler um texto de Michel Houellebecq que nos
foi entregue, impresso, à entrada da sala que permaneceu iluminada do início ao
fim. Não era o caso de aplaudir, mas aplaudimos assim mesmo. Lá fora, os amigos
que tinha ido à outra peça. L. e eu descrevemos um pouco do que aconteceu em
nossa sessão, e a única discussão possível é se pega bem ou mal sair no meio de
uma peça de teatro. M. é terminantemente contra, enquanto J. defende até a vaia
como forma legítima de desaprovação. É verdade que fomos emancipados como
espectadores, penso, portanto tendo a achar o abandono da cadeira uma fuga
legítima, ainda que me compadeça dos que estão no palco defendendo sua arte –
mesmo quando estes não se compadecem de nada.
Em algum lugar leio que o diretor se vale
do tromp l’oeil como artifício para elaborar suas peças. Provavelmente em seu
blog, onde ele diz, do Rio, que já não podia mais suportar cette ambiance merveilleuse de
« faire semblant ». Vivre sur les nerfs, mais cool (tout un art).
No dia seguinte, L. me escreve:
Te devo um mundo inteiro por ter ficado comigo até o final.
O texto de Houellebecq tem boas passagens, como esta:
O
problema de onde você passa sua vida geralmente não se apresenta; você viverá
onde puder. Apenas tente evitar vizinhos excessivamente barulhentos, que são
capazes, por si só, de trazer uma morte intelectual definitiva.
O
título é o que acontece a todos nós, de vez em quando: rester vivant.