sábado, junho 15, 2019

No teatro com L.




Você vai ao festival algum desses dias? Vou, amanhã e depois. Oba, vou amanhã também.

Mas nos esquecemos do pequeno detalhe de combinar qual das peças assistiríamos, e à entrada do Centro Cultural descobri que eu tinha comprado ingresso pra peça “errada”. J. sorriu engraçado e disse que L., que tinha informações privilegiadas sobre o festival, também iria à peça “errada”, e que bom que estaríamos juntos nessa empreitada. Entendi tudo como um alerta de terror. Logo apareceu L., que se sentou ao meu lado e demonstrou toda sua preocupação com a montagem, fruto de uma residência do diretor no Brasil. Ao contrário de parte dos integrantes, que tinham abandonado o barco no meio do processo, ele se inquietava, em particular, com um dos componentes que não só havia ficado, como não conseguia sair de seu personagem de palhaço. Pelo relato de L., o sujeito não conseguia voltar à normalidade da existência. Até nem parecia tão grave assim, diante do estado geral das coisas.

L. e eu temos um pequeno histórico de suplícios teatrais, de voltas para casa e/ou chopes pós-peças em que, entre exaltados e abatidos, destilamos toda nossa incompreensão raivosa provocada por certas cenas. É um misto de “a vida se repete” com “tudo pode piorar”. A peça “errada” não era apenas errada, era um terror de quase duas horas, featuring o palhaço. Antes de descobrirmos isso, L. teve tempo de me contar que o diretor, que mantém um blog quase diário desde 2006, havia escrito algumas coisas acerca dos dias no Rio de Janeiro. Entre elas, só se refere ao teatro como “o banco”, já que o teatro está mesmo situado na antiga sede do banco que dá nome ao Centro Cultural.

É provável que o palhaço surtado e as impressões do diretor sobre o Rio sejam as melhores coisas que você vai descobrir sobre essa peça.

Duas amigas falavam aos cochichos, sem parar, atrás de nós. Elas saíram da sala quando faltava pouco mais de 15 minutos para o fim da performance. A maioria dos desertores não esperou tanto. Um coro de homens em linha reta no proscênio simulava choro. Em uma segunda entrada, simularam risos. Uma dupla formada por mulher e homem executou uma dança. Um ator vestido de preto, sentado na plateia, subiu ao palco, duas ou três vezes, para fazer nada mais que ficar sentado ou nos encarando. Um ator urinou – bastante – em cena, depois de se engalfinhar, nu, com um outro ator cuja bunda era a visão do paraíso. Depois de um certo tempo de vida, você sabe muito rapidamente quando estão testando seus limites, e se pergunta até que ponto a provocação te dá sono ou tédio. É difícil distinguir, às vezes.

A certa altura, o grupo todo, 12 ou 13, talvez 14 ou 15 pessoas, começa a ler um texto de Michel Houellebecq que nos foi entregue, impresso, à entrada da sala que permaneceu iluminada do início ao fim. Não era o caso de aplaudir, mas aplaudimos assim mesmo. Lá fora, os amigos que tinha ido à outra peça. L. e eu descrevemos um pouco do que aconteceu em nossa sessão, e a única discussão possível é se pega bem ou mal sair no meio de uma peça de teatro. M. é terminantemente contra, enquanto J. defende até a vaia como forma legítima de desaprovação. É verdade que fomos emancipados como espectadores, penso, portanto tendo a achar o abandono da cadeira uma fuga legítima, ainda que me compadeça dos que estão no palco defendendo sua arte – mesmo quando estes não se compadecem de nada.

Em algum lugar leio que o diretor se vale do tromp l’oeil como artifício para elaborar suas peças. Provavelmente em seu blog, onde ele diz, do Rio, que já não podia mais suportar cette ambiance merveilleuse de « faire semblant ». Vivre sur les nerfs, mais cool (tout un art).

No dia seguinte, L. me escreve:

Te devo um mundo inteiro por ter ficado comigo até o final.

O texto de Houellebecq tem boas passagens, como esta:

O problema de onde você passa sua vida geralmente não se apresenta; você viverá onde puder. Apenas tente evitar vizinhos excessivamente barulhentos, que são capazes, por si só, de trazer uma morte intelectual definitiva.

O título é o que acontece a todos nós, de vez em quando: rester vivant.



sexta-feira, dezembro 28, 2018

Afogamentos




O protetor auricular para natação é uma pequena massa de silicone modelável que se encaixa bem nas dobras e curvas da orelha. Ainda assim, deixa vazar um pouco d’água. Toda vez, então, saio da piscina em pulinhos e, eventualmente, pingo gotas de álcool no ouvido. Foi aterrorizante a ameaça da hegemonia do álcool em gel no mundo – teve isso, não?

Há uma loja, no bairro vizinho, que tira um molde do ouvido e produz peça mais sólida, impenetrável, dizem, formato sob medida, cor: bege. Ocorre que, entre uma raia e outra, encontro amigos, colegas, e também é preciso se comunicar com o professor, às vezes. Aí tiro a goma do ouvido para depois recolocá-la, amaciando com o dedo, para uma boa vedação. E então, às vezes, o protetor cai na água, não se acomoda tão bem, e quando finalmente se encaixa, já está molhado por todos os lados. É uma quantidade ínfima de água, pondero, porque sempre dou uma sacudidela. Daí que volto à certeza de que aquilo não funciona tão bem.

Nas manhãs em que choro demais no divã da analista, me pergunto se o protetor auricular para natação absorveria as lágrimas que rolam para dentro do ouvido.

sábado, setembro 15, 2018

Jardins - 2


Não consigo escrever de cabelo solto, nem com muita roupa. Bebo água e me levanto da cadeira em doses cavalares. Não tem nada a ver com as recomendações do fisioterapeuta. Escuto uma mesma música como se fosse maníaca, e não encontro caminhos pro texto até que uma melodia ou letra soe certa e me coloque no rastro de alguma coisa que funcione. Debussy, um reggae ou aquela música do Velvet. Depois de alguns parágrafos, começo a sentir um frio terrível.