domingo, abril 29, 2018

Conversas botânicas


- Mas ela sobrevive bem dentro de casa, sem sol?
- Sim. Só não pode esquecer de regar, ela precisa de bastante água. 
- Isso eu posso fornecer, porque sol mesmo não tem, só a minha luz própria. 
- Ela precisa de pouca luz. Você pode matá-la com a sua.

trechos


Diante da confusão magistral da casa de Trevor Thomas, as casas arrumadas em que quase todos vivemos parecem pobres e sem vida da mesma forma que as narrativas chamadas de biografias empalidecem e perdem a força diante da realidade desordenada que é uma vida. A casa de Thomas também ocorre a minha imaginação como uma metáfora para o problema da composição literária. A pessoa que se senta para escrever não se vê diante de uma página em branco, mas de sua própria mente atulhada em excesso. O problema é livrar-se da maior parte do que ela contém, encher imensos sacos plásticos de lixo com a mistura confusa de coisas que lá se acumularam ao longo dos dias, meses e anos de nossas vidas, coisas que fomos recolhendo através dos olhos, dos ouvidos e do coração. A finalidade é abrir um espaço onde algumas ideias, imagens e sensações possam ser arrumadas de tal forma que o leitor queira passar algum tempo entre elas, em vez de fugir correndo como eu tive o impulso de fugir da casa de Thomas. Mas esse trabalho de faxina (da narração), além de árduo, é perigoso. Há o risco de jogar fora o que não se deve e conservar as coisas erradas; há o risco de jogar fora coisas demais e ficar com a casa excessivamente nua; e há o risco de jogar tudo fora. Depois que começamos a jogar fora, pode ser difícil parar. Talvez seja melhor nem começar. Talvez seja melhor aferrar-se a tudo, como Trevor Thomas, para não correr o risco de ficar sem nada. O medo que senti na casa de Thomas é primo do medo sentido pelo escritor que não consegue correr o risco de começar a escrever.


Janet Malcolm em A mulher calada. Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia (tradução: Sergio Flaksman)


De qualquer modo, aquele encontro, que aconteceu realmente e que, portanto, foi verdadeiro, pode ser lido aqui simplesmente como uma invenção, como algo falso, já que, em primeiro lugar, naquele momento eu estava tão desorientado e preocupado que podia e ainda posso desconfiar dos meus sentidos, que naquela época talvez interpretassem erroneamente um fato verdadeiro, e, em segundo lugar, porque aquele encontro com o jogador de futebol decrépito de um país que me parecia precocemente envelhecido, e quase tudo o que aconteceu depois, o que vou contar aqui, foi verdadeiro mas não necessariamente verossímil. Alguém disse uma vez que em literatura o belo é verdadeiro, mas o verdadeiro em literatura é só o verossímil, e entre o verossímil e o verdadeiro há uma distância enorme. Sem falar do belo, que é algo de que nunca deveríamos falar: o belo deveria ser a reserva natural da literatura, o lugar onde o belo florescesse sem que a mão da literatura jamais o tocasse, e deveria servir de recreio e consolo aos escritores, já que a literatura e o belo são coisas completamente diferentes ou talvez a mesma coisa, como duas luvas para a mão direita. Só que você não pode calçar uma luva para a mão direita na esquerda, há coisas que não encaixam uma na outra. Eu tinha acabado de chegar à Argentina e, enquanto esperava o ônibus que me levaria até a cidade onde meus pais moravam, a cerca de trezentos quilômetros a noroeste de Buenos Aires, eu pensava que tinha vindo dos escuros bosques alemães para os pampas argentinos para ver meu pai morrer, para me despedir dele e prometer-lhe – embora eu não acreditasse nisso de jeito nenhum – que nós dois teríamos outra oportunidade, em algum outro lugar, para que cada um de nós descobrisse quem era o outro e, talvez, pela primeira vez desde que ele havia se transformado em pai e eu em filho, por fim entenderíamos algo; mas isso, mesmo que fosse verdadeiro, não parecia verossímil de jeito nenhum.

Patricio Pron, O espírito dos meus pais continua a subir na chuva (tradução: Gustavo Pacheco)