Foi assim que fui parar em Buenos Aires, torcendo pro avião poder pousar, torcendo para que a tal fumaça que invadiu a cidade nos últimos dias não fosse tão ruim assim e torcendo pra sei lá, caminhar, ver os parques, sentar nas praças e basicamente não ter que pensar durante alguns dias, não precisar conversar seriamente com alguém, sair de casa sem relógio e sem telefone.
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Banhos de banheira, passeios pelas avenidas, pães quentinhos e deliciosos no café da manhã, confortos e mimos dos anfitriões, flores na varanda, todos os episódios de Seinfeld a meu dispor, todos os episódios de I Love Lucy idem, pilhas de Vanity Fair para folhear, Vinícius e Caio F na cabeceira improvisada, folhas do outono começando a cobrir as calçadas. Eu sei, eu devia querer dançar tango, tomar vinho, comer bifes de chorizo no Puerto Madero e comprar bolsas e botas de couro a preços ótimos. Mas nós que não temos i-pod fazemos isso na Argentina: assistimos a uma série de 1952 no sofá da casa da tia enquanto tomamos sopa. Nós somos incompreendidos. Um dia nos chamarão vanguardistas.
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Tarsila do Amaral está em cartaz no Malba. Surpreendentemente não compro nada na lojinha do museu, eu que as adoro, saio de mãos abanando. Não compro a Lomo que queria, fico perdida entre latas antigas e compro uma de talco de 1920 e um liseuse que a vendedora afirma ser Vitoriano. Não duvido. A loja, numa das esquinas da praça de San Telmo é uma viagem no tempo. Com um pouco de imaginação, a parte do subsolo reservada às roupas vira um imenso camarim das antigas óperas francesas e italianas. A qualquer momento as bailarinas estarão por ali vestindo-se a apertando as sapatilhas. Suspiro. Quero morar na loja de dois andares da praça de San Telmo. Quero comprar as meias que não estão à venda. Quero a camisola de 1890 que custa muitos dólares.
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Fotografo postes, pombos, estátuas no cemitério, árvores, placas, bonecas antigas, os potes com utensílios de cozinha, o banco perto da porta, o banco sob a árvore, meu pé.
Me esforço na série "auto-retrato com braço esticado". Lembro da Carol e das considerações que ela fez quando viajou sozinha. Concluo que, mais que gostar, preciso viajar sozinha.
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Quase que tudo vai por água abaixo quando na volta o aeroporto está lotado, as luzes individuais do lado direito da aeronave seguem defeituosas, o sujeito ao meu lado insiste em puxar conversa e faz tanto frio tanto frio dentro do avião, peço um cobertor mas não há mais mantas disponíveis, tomo uma taça de vinho em copo plástico, como é que as coisas ficam decadentes assim? eu quero matar todos da Siberian Airlines.
Abro a caixa de chocolates, o discman parece não funcionar, insisto mais um pouco, verifico a posição das pilhas, penso que um tênis Keds e um perfume CK One combinariam com o meu jeito anos 90 de ouvir música durante viagens e de repente a música começa “She says Hello! You fool, I love you! Come on join the joyride” ha ha , não era Roxette, era Adele. Não posso mudar o volume, essa função, assim como as luzes individuais, está com defeito. Me pergunto se as pessoas à minha volta estarão ouvindo a música que sai dos fones azuis. Acho que não. O meu vizinho que tentara puxar conversa parece dormir. Os gays à minha frente fazem perguntas sobre o meu brinco.
Final e infelizmente chego em casa, cachorro late, todos conversam, querem saber, bla bla bla. Desfaço as malas, deixo tudo meio bagunçado, retiro as pilhas do Discman para não melarem, arrumo a mochila para amanhã, ponho o despertador para mais uma vez tentar ir à natação cedinho. Quando a casa atinge relativo silêncio caio na cama cansada, as costas ruins de novo, dou um suspiro. Amanhã é segunda e eu pedi demissão. Preciso organizar meus manifestos.
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