domingo, abril 11, 2010

Diários de São Paulo

(vol. I ou - O Amor Segundo Hélio Oiticica)

Estou aqui nesse lugar onde tudo é comprável e tanta coisa acontece no meu coração que fica difícil priorizar: eu ainda te odeio, mas tenho uma vontade de te participar de cada passo que dou quando cruzo avenidas bem mais largas que as nossas, eu ainda te adoro, mas tenho ímpetos violentos e irreversíveis à mera menção do teu nome: te xingo, por via das dúvidas.

Através da vitrine não conseguimos ver muitas coisas, mas eu já sei quais são os livros que elas precisam ver, e quais são os trecos e coisas divertidos que nos farão rir e emendar piadas: nos deliciamos em almofadas bordadas de John-Paul-George-Ringo e cobertas de veludos: faz frio, eu coloco as mãos nos bolsos da minha jaqueta de couro e digo a elas que não, gente como nós nunca vai parar de tomar Prozac ou de fazer listas.

Fico ligeiramente preocupada no avião: será que essa mania é de fato tão neurótica quanto eu penso que é? E se ninguém mais me agüentar? Tanto faz, decido: tem gente que bebe, tem os que jogam paciência no computador, tem gente que faz aula de artesanato e pronto: eu faço listas, é minha terapia ocupacional.

Chamo de mau gosto as vitrines do Bom Retiro, e guardo delas fotografias que me provam o contrário, não sei explicar, mas é assim que ocorre.

Sex is an illusion. The most exciting thing is not making it., diz o Andy Warhol. Será?

Passeio pelo Museu do Futebol e, confesso: choro. Duas vezes.

Meu guarda-chuva quebra na Augusta.

Me reconcilio com Hélio Oiticica na Av Paulista porque finalmente faz sentido penetrar uma de suas obras, e entendo pra que servem, afinal, as Cosmococas. Não são epifânicas, não superestimulam seus sentidos, não te fazem cruzar a porta de saída pensando em questões da arte ou do mundo, não te deixam hipnotizado por cores ou traços, não provocam rupturas, não causam o impacto da sessão de quadrinhos da Livraria Cultura, não, não, não: no escurinho de uma Cosmococa casais espalhados em colchões trocam beijos estalados e melados, eu saio de fininho encabulada porque não sei amar, prevejo um baby-boom e nenéns vestidos em Parangolés, e compreendo: all you need is love.

Na bancada de uma cozinha em Higienópolis ouço a melhor definição que se pode fazer sobre alguém: ele não tem super-ego. E crio uma cumplicidade tão boa e grande que me esparramo no sofá, fico com as bochechas rosadas de vinho e me enrosco num gatinho ruivo que minutos antes tentava comer meu cabelo e que agora ataca meu pulso esquerdo com mordidinhas e miados.

Almoço risoto na Livraria da Vila, onde sempre sou feliz.

Sempre sou feliz em São Paulo, concluo, e cada vez mais, sobretudo quando há uma lareira ao lado de um quarto com papel de parede retrô. Ou um flamingo de acrílico quebrado na sala. Ou todos os livros do Snoopy em inglês. E toda essa gente que me faz chacoalhar em gargalhadas revigorantes, os dias passam tão rápidos e sedutores aqui que só me dou conta no avião a caminho de volta pra casa que não penso em você há três dias, e rezo pra finalmente chegar o dia em que eu possa perder as contas e nem precise mais somar.

Já em casa, ela me conta que perdeu o vôo de novo, sempre, que coisa insistente. Combinamos voltar em breve, aproveitar o frio, paquerar almofadas milionárias e comer como rainhas. com sorte, quem sabe, e com todo esse bom-humor, se esbaldar na Tropicália de braços dados com alguém.

quarta-feira, abril 07, 2010

O desabotoado céu - volume definitivo

(para Betinha, Bruna e Clara, pelos lenços de papel)

As coisas começaram a desabar todas juntas: eu tropecei numa pedra portuguesa num domingo, engasguei quando entendi que eu tinha inventado muito mais dele do que devia, perdi diversos botões de tantas roupas e uma motosserra rangeu por três dias e três noites me deixando numa insônia devastadora onde desaprendi a ouvir música. Caiu, então, uma chuva que pedia uma sequência inevitável de clichês: guarda-chuva virado ao contrário, água nas canelas, RJTV filmando gente de barquinho pelas ruas, preocupação de mãe, coração estilhaçado e um choro desatinado que demandava abraços, colo e vodca.

Era sábado, minhas roupas encharcadas pendiam no varal da casa dela (sempre ela!) enquanto eu me esforçava para parar de gaguejar, alguma coisa escorria de mim numa velocidade surpreendente, e minhas mãos tremiam. Aquele dia voltei pra casa a 10 por hora, coloquei um cd no som do carro, mas eu apenas não sabia mais como fazer: para ouvir música, para ouvir histórias, para achar que tudo ia ficar bem, para entender que agora era eu sem ele.

Quando as águas baixaram e a cidade começou a secar eu já estava enjaulada em obsessões habituais: listar músicas com a palavra “olhos” (ou eyes – mais ou menos 20 de cada), discutir relação por email, mimar o cão e, aos poucos, colocar no som os cds e lembrar que algumas músicas são como navalhas.

Aconteceu, então, que depois de muitos dias de calor e mar, a rua começou a despencar, com lamas e folhas que desciam nem sei de onde, e barulhos tão próximos e assustadores que pensei em fugir no meio da noite, sem nem dar tempo de inventariar o que eu carregaria comigo. A cidade toda começou a cair de novo, meus remendos se rasgaram com a mesma violência com que as encostas deslizaram e então tudo ficou em alerta. Dessa vez foi o prefeito quem decretou que evitássemos sair, e sem álcool, bobagens ou ânimos, vimos os dias cinzas separadas em nossas janelas sempre com o telefone ao alcance. Lemos quadrinhos e poesia, pregamos os botões das camisas e das calças e por fim juntamos nossas obsessões numa lista que somou 96 canções, umas com a palavra “rain”, outras com a palavra “chuva” no título. E porque aqui as coisas estavam realmente tristes e doloridas, e porque o Morrissey insistia em cantar “come back to Camdem”, comprei minha passagem para onde por duas vezes fui extraordinariamente feliz. Chove sempre na Inglaterra, me disseram. Tudo bem, em mim também.