quarta-feira, junho 16, 2010

Waffles com mel - cena 1

Sentam-se na mesa de sempre, isto é, sempre que o salão está vazio o suficiente para escolherem seus lugares cativos: ela prefere o sofá, ele senta na cadeira e volta e meia não resiste ao espelho em frente. Já sabem que morrem de frio no verão, por isso levam um casaquinho na bolsa, mesmo em janeiro. O primeiro comentário é, portanto, uma discreta revolta contra a potência dos aparelhos de ar-refrigerado nessa época do ano. Um exagero: prevêem gripes para o final de semana, convalescência na piscina. Ela tira da bolsa o caderno de anotações, tá aqui o nome do livro que te falei, como você tá inquieto, o que foi?

A mesma garçonete loira, oi tudo bem? Ué, hoje não vai querer chocolate quente? Ah já sei, no calor é melhor milk-shake, né? Ela se encolhe no banco, pondera: um suco. Dois sucos, dois waffles, uma água sem gás para dividir. Ele muda de idéia: traz um café no lugar do suco?

Como até hoje não sabemos o nome dela? Ele interrompe suas divagações: tenho uma proposta que você não pode recusar. Ela escuta atenta até ser interrompida pelo celular. É minha mãe, preciso atender. Ele passa a mão pelos cabelos três vezes, chacoalha um pouco os pés. Manda um beijo pra ela também. Pronto. Ele começa a sua introdução seriíssima sobre o novo projeto, e antes de explicar efetivamente sobre do que se trata, elege as razões pelas quais ela é a parceira ideal para a empreitada. Envaidecida, se esparrama pelo sofá.

Eclode na mesa ao lado uma briga , um casal já em crise avançada que decide tornar públicas suas amarguras. A mulher, muito nervosa, explode em choros e soluços, o homem percebe que foram longe demais. A garçonete loira desvia o chá de camomila que levava para o senhor dos fundos e o pousa sobre a mesa da discussão, numa tentativa solidária de acalmar a mulher, que segura a bolsa e sai apressada sem olhar pros lados. O homem, constrangido, deixa um dinheiro além do necessário sobre um pires e vai atrás da mulher.

O silêncio se dissolve e o barulho costumeiro do lugar recomeça. Diante do espelho, colherzinha suspensa no ar, imobilizado pelos gritos do casal, ele inunda o título do livro e todas as outras frases do caderno dela: nuvens no café.

quarta-feira, junho 09, 2010

Carta a O.

Querido,

A gente combinou que ninguém mais ia embora, e eu combinei que nunca ia escrever pra um poeta. Confesso: morro de inveja de quem escreve poesia – todo o resto fica parecendo auto-ajuda, e ai que vergonha te falar por escrito. Além disso, eu não elucidei nenhum dos questionamentos: ir ou não ir, você pergunta, e eu caio em contradições: não, eu não acredito mais em paixões ou amores, mas não acredito neles pra mim e, de verdade? acho linda essa história de se juntar, desde que não seja comigo. O meu romantismo ficou todo para terceiros.

O fato dessas linhas serem endereçadas a você abre um precedente pra que eu seja compreensiva quando você enviar cartões postais do cerrado. Porque sabe, acho mesmo que de alguma forma você é bem mais coerente que eu, ou ao menos elabora mais objetivamente as perguntas que eu sequer ouso fazer: de quê serve tanta sensatez, raciocínio ou lógica?

Eu empacaria de cara na hipótese de dar tudo errado, mesmo sabendo que os vôos vão e vêm. Eu acharia todos os motivos possíveis que me impediriam de tentar, e citaria até mesmo a umidade do ar como uma das implicações pelas quais não ir atrás de um grande amor. Eu não construiria as bases dos meus dias no outro, não confiaria meu bom humor matinal a alguém, eu não daria chance a um relacionamento que envolvesse um complicado e um outro perdido, e que ainda tivesse miopia, desemprego e toda essa distância cruel do Jobi no meio.

Eu optaria pela praticidade de continuar minha vida por aqui: evito aquele trecho da praia, passo a preferir o bar ao lado, exploro a sessão de livros infantis em boas companhias numa tarde de segunda-feira em Ipanema e mudo de assunto toda vez que for necessário. Finjo que não preciso de musos pra escrever, não tento te explicar a minha relação com aquele cara porque me convenço pra sempre de que não existe uma. Perco meu bigode na esquina e tudo bem.

Mas a ida é tua, e a coerência também: quantas pessoas transformam tatuagem em poema ou enxergam corações em fios de cabelo? Quantas pessoas viram à esquerda e dão significados a caderninhos e papéis fotográficos? Quem ainda alcança o tamanho do teu sorriso?

Você poderia ir e se descobrir de tantos outros jeitos, ou ver que realmente não daria certo. Poderia aprender a cozinhar, a dirigir, a usar lentes de contato, a manter o banheiro em ordem. Poderia pegar quantos ônibus errados fossem possíveis, encontrar uma turma de cineastas boêmios, usar barba. Se impacientar menos com burocracia e passar a gostar de sapatos. Você poderia ir e descobrir que é capaz de se acostumar às contas de luz, gás e telefone. Ou entender que algumas inquietudes são indomáveis, e voltar por uns tempos, e procurar outros destinos. Ou andar.

Eu acho que você vai acabar descobrindo que precisa andar, e que vai encontrar uma forma de conviver bem com isso.

Se você, afinal, não comprovar (ou desmentir) nenhum dos meus palpites, seja por excesso de ponderação ou por promessas de novas histórias dilacerantes aqui mesmo nessa nossa província, então, por favor: encaixote tuas palavras tão lindas, me dê uma obra de presente que assim, quem sabe, com tanta paixão pra inspirar, eu não amoleça um pouco essa minha cabeça descrente e veja no mundo um pouco dessas belezas todas que você enxerga.

Se eu tiver que te desejar boa viagem, lembre-se de dar sinal de vida quando estiver por essas paragens, e por favor: uma pizza, uma fuga de festa, um bloco de carnaval. Ou caipirinhas esquisitas em bares duvidosos.

Qualquer que seja a decisão, entenda: a questão não é o que o amor pode te trazer, e sim o que você procura: se um caminho de tijolos amarelos e promessas oníricas cheio de incertezas e desníveis, ou um pavimento de concreto e documentos em dia, repleto de praticidades e cálculos, onde talvez seja mais difícil encontrar tua poesia, e nem por isso ela será menos impactante.

As coisas estão aqui, pouco cambiáveis. Se a tua ilusão for tão volátil quanto orgasmos, compre a passagem de volta. Certamente as risadas estarão à tua espera, sentindo tua falta na cabeceira da mesa.

(já dá saudade, só de pensar, mas acho que posso - e todos podemos - encontrar um ou outro drible pra ver como crescem os amigos queridos)

um beijo enorme!