sábado, abril 28, 2007

A minha casa

Um dia eu tive que desmontar a casa. Foi um dia comum, desses que começam com o despertador tocando, a idéia de mais cinco minutos te fazendo levantar depressa, o café forte pra acordar e uma parte do jornal que acaba ficando esquecida no banco do ônibus. Antes do dia em que desmontei a casa houve uma seqüência quase interminável de dias em que eu sabia que teria que desmontar a casa, mas nos dias anteriores ao definitivo eu sabia também que podia adiar mais um pouco e por causa disso as semanas foram passando, e meses até e eu podia jurar que não mais teria de desmontar a casa, mesmo sabendo que isso era uma mentira. O dia em que eu teria que desmontar a casa foi ficando distante porque a cada outro dia em que tudo continuava em seu lugar eu desejava mais e mais que o dia do desmonte não chegasse. E embora eu soubesse que tudo caminhava em direção ao dia de desmontar a casa, eu queria que as coisas permanecessem assim quietas porque essa era a minha casa e a outra casa não. E a minha casa que seria desmontada se parecia cada vez mais com o lugar onde eu queria viver, enquanto a outra casa ficava sempre parecida com uma outra coisa que não a minha casa. Eu adiei o máximo que pude, e depois de dias e semanas e meses, de cafés fortes engolidos no atraso da manhã, de pedaços de notícias em ônibus e bancos e solavancos, de cinco minutos que se acumulavam como os dias em que eu não desmontava nada, um dia eu tive que desmontar a casa. E porque eu sabia que tantas coisas viriam à tona, porque eu sabia que desmontar a casa seria como um desabamento de caixas que eu não queria abrir, e porque a outra casa não era a minha enquanto a minha casa que seria desmontada ainda era o meu lugar, porque eu sabia que não estava ou não queria estar preparada pra isso, cheguei ao dia limite do qual eu não poderia mais fugir. Um dia eu tive que desmontar a casa, um dia comum, marcado no calendário, talvez fosse aniversário de um amigo com quem há muito não falo, talvez fosse o dia de pagar a conta do telefone, um dia eu tive que começar a remexer nos muitos objetos e troços que entupiam gavetas, que enchiam prateleiras e armários da minha casa e que um dia iriam preencher os espaços ainda vazios da outra casa que talvez um dia eu pudesse chamar de minha casa, mas que por enquanto era só o algoz que me fazia prisioneira de uma resistência que eu tinha em deixar a minha casa. Um dia eu tive que desmontar a casa e me desfazer de parte das coisas que eu não poderia levar para a outra casa e aos poucos e aos prantos eu tive que ir rasgando papéis e enchendo sacos de lixo, torcendo pra que aquilo tudo ficasse bem guardado na memória pra se um dia na outra casa eu quisesse lembrar dessas coisas eu pudesse fechar os olhos e pensar nas gavetas e estantes da minha casa que então já seria de outrem. No dia em que eu desmontei a casa eu me encontrei por meio de cartas e revistas, livros e cartões, fotografias desbotadas e quadros com tanta gente, gargalhei lendo histórias dessas pessoas, ri das promessas de amor efêmeras e fui bailarina, cantora, médica, andarilha, estilista e todas as outras profissões que eu não tive, mas que agendas e diários contam e entendi que me desfazer das coisas que eu guardava me doía tanto porque essas coisas tinham muito de mim e a minha casa tinha todas essas coisas. No dia em que desmontei a minha casa eu senti o meu peito encolhido, batendo arrastado, querendo parar um pouco porque deixar a minha casa desmontada e vazia seria como abandonar uma parte de mim. No dia em que eu desmontei a minha casa eu entendi que todo o dilaceramento vinha da idéia de que na minha casa eu guardava todas as referências de quem eu era e de quem eu tinha sido e a idéia da outra casa que ainda não era minha me apavorava pela possibilidade d’eu ser tantas outras coisas, mas sobretudo eu tinha medo de não ser mais aquela pessoa que eu conhecia tão bem na minha casa e de não saber me sentir confortável na casa que um dia eu poderia chamar de minha, ou nunca. Um dia eu tive que desmontar a minha casa. Foi um dia triste e sem graça, com nuvem carregada e poças de lama, desses que começam com o despertador tocando e a idéia de cinco minutos se transformando na idéia de uma vida inteira.

quinta-feira, abril 26, 2007

de trabalho

Tenho tido muito assunto, muitas noites mal-dormidas, algumas epifanias, muito calor, muitas novidades, um pânico específico, velhas compulsões que aparentemente me perseguem e, confesso, uma nova paixão.

De assuntos, noites, novidades e epifanias, converso com algumas pessoas, às vezes falo sozinha no carro, às vezes enterro na areia.

De calor, um dia morrerei (no Saara, provavelmente).

De compulsões que me perseguem, a culpa não é minha: trabalho tão perto da Modern Sound que se tropeçar caio lá dentro e se me distraio saio de lá com três cds e menos dinheiro na conta.

Do pânico específico, me agarro o quanto posso nas barras dos ônibus em que tenho andado, traço estratégias e planos pra quando subir, pra quando passar pela roleta e pra quando descer, mas o medo e os perigos iminentes não me enganam: um dia me esborracho dentro de um ônibus e quebro um dente (ou a cara, literalmente) (e uma observação: em quatro dias ainda não repeti um ônibus, o que indica que tudo vai a Copacabana e, saravá! tudo volta de lá).

Da nova paixão, eu sei, é um pouco ridículo, mas depois de algumas planilhas e macetes fantásticos, caí de amores pelo Excel e já não posso conceber a existência sem ele.

:: Killing an arab, The Cure

sábado, abril 21, 2007

Nadando contra a corrente

Um dia eu concluí que algumas das coisas que lemos são mais confiáveis que pessoas, e por causa de uma edição da Piauí eu fui fazer uma aula de natação (mesmo que, meses antes o médico tivesse recomendado o mesmo). Eu desconfiei que minha conclusão fora precipitada no momento em que o relógio marcava 8:05, a aula tinha começado às 7:50 e eu já achava que ia morrer. De calor. E olha que de calor eu tenho vivência... Eram 8:05 da manhã quando eu senti que suava dentro da piscina e essa incongruência foi apenas um dos fatores que me levaram a concluir, dessa vez com conhecimento de causa, que natação na Piauí é poesia que a gente não vive.

Pra começar que o traje de natação é qualquer coisa de deprimente e todo ser metido numa toca e num óculos perde parte de sua credibilidade. Pra sorte ou desespero, não sei ainda, o professor (no meu caso professora) não entra na piscina em momento algum. Além de não ter que passar pelo ridículo do figurino, o cara também não ferve. Sim, porque piscina aquecida é eufemismo, aquela água estava mais para fervida.

Fazia aproximadamente 17 anos que eu não nadava nem cachorrinho e o primeiro comando que a professora deu foi: ida e volta de crawl, ida e volta de peito, ida e volta de costas, ida e volta de golfinho. Eu disse que golfinho pra mim era aquele bicho que a gente vê em passeio de barco em Noronha, passeio no Sea World ou foto na Wikipedia e parti pra desbravar o tedioso mundo dos azulejos enfileirados. Seis braçadas e estava cumprida a rota de ida, mais seis na rota da volta e então o nado peito e depois o nado costas. Descobri que nadar é que nem andar de bicicleta, não só no sentido de que não se esquece mas também no sentido de que não vale a pena pagar por isso. O resto da aula foi mais ou menos igual ao começo: nada pra cá, nada pra lá. É claro que eu não esperava aprender como cozinhar um pato no vapor, mas achei que depois de quase 20 anos sem praticar, alguém me daria pelo menos um alento.

Ainda, eu pensava que nadar era atividade calma e apaziguadora. Ledo engano. Sai da piscina mal me equilibrando nas minhas pernas, que tremiam e ameaçavam me deixar na mão a qualquer passo. Fui pra casa, confesso, com uma sensação de relaxamento, caí na cama e dormi que nem um bebê. Esse era o único argumento que poderia me fazer mudar de idéia mas então lembrei-me de rede, vinho, relaxante muscular e vi que algumas boas horas de sono podem ser mais facilmente conseguidas através de meios pouco nobres, mas ainda assim menos aterrorizantes.

E foi assim, num modelito horripilantemente démodé que eu fervi, quer dizer, nadei durante quase 40 minutos numa piscina enquanto repassava mentalmente diversos trechos das matérias da Piauí, lembrava dos relatos entusiasmados e apaixonados que lera e comecei a me indagar se seria um problema do esporte em si ou da minha falta de romantismo. Achei melhor não concluir porque da última vez que fiz isso fui parar numa aula de natação.

quinta-feira, abril 12, 2007

O ministério da saúde adverte:

Sempre fora um homem discreto, mesmo quando usava de galanteios que a faziam corar, os dizia longe dos ouvidos de terceiros. Foi o que a convenceu. Por anos tinha visto inúmeros tipos de cafajestes que desfilavam por sua casa e a discrição deste, o seu jeito comedido, seus gestos, contidos até, a conquistaram. Mesmo em suas demonstrações de afeto, que com o passar dos dias tornavam-se mais freqüentes, era um homem de pouco teatro. Suas falas eram sempre simples, quase espontâneas e poucas vezes vinham acompanhadas de caixas de bombons ou buquês de flores. Até quando usava clichês parecia mais original: lhe presenteava com discos em datas sem qualquer significado, a levava para almoços surpresas em segundas-feiras ensolaradas e até metereologicamente se diferenciava dos outros. Jamais comeram pipoca em noite chuvosa ou fizeram pic-nic na primavera. Era o que a encantava e o que ele tinha de mais charmoso, esse jeito de ir caminhando devagar, apontando cores, desviando da grama. Era um homem paciente e expressava sua delicadeza sem os constrangimentos da maioria dos outros que conhecera, falava de seus medos, emocionava-se com filmes antigos e era capaz de passar horas alisando os cabelos dela enquanto conversavam banalidades no sofá da sala. Até terapia já tinha feito, existencialista. Tivera um cão quando criança, lera quadrinhos e sonhara ser super-herói com capa colorida. Quebrara o braço uma ou duas vezes, tinha o avô como ídolo, namorava as meninas de sua idade. Fora punk por rebeldia, tocara guitarra em banda com os amigos do colégio e admitia até ter tido dor de cotovelo. Quis ser gauche quando leu Drummond, quis ser picareta quando descobriu Godard, foi exagerado quando escutou Cazuza e quase foi poeta por convicção quando descobriu Cartola. Resolveu que por fim, teria de ser aquilo mesmo que era, teria que ir pisando manso pelas calçadas, teria que desviar dos jardins e olhar com calma as cores quando o sol se punha. Ela o ouvia com atenção e sorria ao ouvir suas histórias, sempre tão possíveis e se arrepiava lentamente quando ele a beijava no pescoço, seus lábios macios que ressecavam um pouco no inverno, até nisso era um homem comum e por ser tão alcançável e sincero é que ela gostava e se envolvia cada vez mais com ele, que de tão tão mortal acabou por se tornar uma espécie de raridade, de incompatível com o resto das coisas que ela conhecia. Tentava, em vão, achar nele defeitos graves, traições e por vezes até o seguiu pra ver se se encontrava com outras às escondidas. Devia ficar aliviada cada vez que apenas confirmava a lealdade daquele sujeito mas ao contrário, sua angústia crescia a ponto de ficar cada vez mais irritada e com isso esperava ansiosamente pelo dia em que ele também se irritaria com ela e falaria palavrões e baixarias e confessaria seus crimes, mas nada. Amava um chinês, pensou, e zen, um homem cuja calma e tranqüilidade não se abalavam. E não havia jeito, por mais que tentasse, por mais que procurasse, nada. Sabia que tinha nas mãos o que sempre quisera, um companheiro de verdade e pensando bem conseguia lembrar-se de pequenos delitos dele, alguns atrasos, um dia ou dois de preguiça e uma vez chegaram mesmo a discutir, os tons de voz se elevaram. Ponderou. Não poderia passar o resto dos anos privando-se das alegrias de uma vida a dois só porque constava em sua ficha um sem-número de desilusões amorosas. Virou a página, comprou um vestido novo e ingressos pra sessão das oito, telefonou pra ele e marcou de se encontrarem na esquina. Ele chegou com um disco que há muito ela procurava, finalmente o conseguira na feira de antiguidades. Dividiram uma coca, aplaudiram o filme no final e foram pra casa dela onde passaram o resto da noite bebendo conhaque, dançando de rosto colado, ele cantando baixinho em seu ouvido e Billie Holliday na vitrola. Os dias se seguiram assim, cheios de momentos de intensa paixão até o dia em que, saindo do banho de manhã ele disse que a amava. Abraçou-a como de costume, o corpo ainda úmido e lhe disse: te amo. Ela sentiu as pernas fraquejarem e por um instante quis soca-lo, quis mata-lo, quis chorar, quis que aquela frase nunca tivesse sido dita mas ao invés disso o beijou com doçura e o envolveu com seus braços finos, fez um carinho em sua nuca e entrou no boxe. Era sábado. Ela entrou no banho. Soltou os cabelos e sem conseguir mais conter as lágrimas, deixou-se inundar. Era um choro triste e amargo, o contrário do que deveria ser. Finalmente agora ela sabia, ninguém podia ser tão perfeito quanto aquele menino. Ele gritou-lhe do quarto que ia ao mercado comprar cigarros. Foi a última vez que.

quarta-feira, abril 04, 2007

(sem título 2)

mas é com quem mais se ama
que a gente mais se depara
(...)
o que mais forte preciso
não sei sequer se é urgente.
nem sei se eu sou o caso
que mais mereço entender
(...)

torquato neto, 1969.