quarta-feira, abril 24, 2013

The suco verde issue


2 maçãs orgânicas, 3 folhas de couve orgânica, 1 cenoura ou inhame orgânicos, 1 mão de grãos germinados, 1 pepino médio (já entendemos que tudo é orgânico), um punhado de agrião, 3 ramos de hortelã, 1 lasca de gengibre. Há controvérsias, diriam alguns: no armazém do Marcos Palmeira a moça coloca salsa e pergunta se você quer adicionar clorofila. Fora todas as outras variantes da receita de suco verde. A minha veio de um livro de um médico, e mesmo que eu tenha tido um namorado atleta e saudável que tomava o suco verde diariamente foi preciso todo esse tempo (uma década) para eu me render a ele (o suco, obviamente).

Há justificativas possíveis: o ex-namorado mostrou-se um equívoco, o que significa que durante anos não comi coisas verdes; durante anos, também, tomei milk-shake no café da manhã, o que é muitas vezes mais delicioso que suco verde; acordar sempre foi uma tarefa complicada e portanto sempre quis facilitar a vida matinal (e o suco verde, como se verá, só a dificulta).

O milk-shake: lá em casa sempre o chamamos “leite batido” – leite, colheres de sorvete de creme e achocolatado de sua preferência (Nescau para minha irmã, Toddy para mim) e estava pronta a bomba de açúcar, gordura hidrogenada e muco. Pareceu absurdo a todos os meus amigos do trabalho que eu tomasse milk-shake no café, e eles tinham mesmo razão. O fato é que antes da pressão social eu já havia diminuído consideravelmente o consumo de milk-shake, incentivada pela promessa da redução da alergia caso eu parasse de beber leite. Aos poucos, e à medida que fui editando livros de saúde, pareceu mesmo descabido tomar tudo isso de manhã. O milk-shake foi substituído por sucos em geral.

Acordar: a minha irmã me ensinou a dormir com o uniforme da escola. Era uma estratégia para barganhar 15 ou 20 minutos de sono pela manhã. A calça não amassava e a gente não tinha tanto critério assim em relação à blusa, questão que no inverno era resolvida com um casaco de moletom por cima. A dificuldade resiste ao tempo, e até hoje funciono com 2 despertadores e ações cronometradas para que tudo seja feito da maneira mais rápida possível: o banho não ultrapassa 7 minutos, a escovação dos dentes é dinâmica e aboli o secador de cabelos. A roupa é resolvida na véspera, a bolsa idem. E já nem me importo mais com as olheiras, porque querer disfarça-las significaria mais 8 minutos acordada. Não há vaidade que sucumba.

O suco verde: foi uma conjuntura de fatores, nenhum dos quais relacionado ao ex-namorado, posto que grande parte dos fatores envolveram leituras e livros editados por mim. E por mais que isso deponha contra mim, é tempo da verdade emergir: meu ex-namorado falava “seje”. Eu sabia. Tanto é que não durou muito.

Eis que, por vias outras, o suco verde voltou. A logística do mesmo, porém, ainda não está consolidada. Encontrar todos os ingredientes no mesmo estabelecimento não é tarefa que se cumpra com facilidade. Onde tem maçã não tem couve, onde tem couve não tem hortelã e assim sucessivamente. Hay que peregrinar, não tem sido fácil. Hay, também, que acordar com antecedência: o meu primeiro preparo do suco consumiu cerca de 40 minutos entre lavar, descascar, cortar, bater e coar tudo. Uma vez que todos os ingredientes estavam dentro do liquidificador, fechá-lo foi uma missão: não cabia. Desiludida, fui tomar o suco no armazém do Marcos Palmeira, onde a atendente enfiou tudo numa centrífuga (exceto a clorofila), e de onde o suco saiu, líquido, espumante e verdinho, em menos de 4 minutos. Delirei. Era muita rapidez e eficácia, e tudo por causa de uma centrífuga, que foi imediatamente comprada.

Tivesse um diário do suco verde, a entrada do dia em que usei a centrífuga pela primeira vez seria uma piegas, cafona e laudatória. Eu escreveria versinhos para a centrífuga depois que me vi com cerca de 30 minutos de uma manhã sobrando. A centrífuga realizava um trabalho mais limpo, prático e saboroso por apenas 10 minutos. Comoção na cozinha. O final feliz esperado estaria aí, não fosse a segunda entrada imaginária num diário idem uma de tristeza e decepção quando, no segundo dia, a centrífuga não funcionou. Eu não estou preparada pra lidar com intempéries tão cedo. Não tenho estrutura emocional para driblar esse tipo de contratempo. Atarantada, depois de montar e desmontar a centrífuga duas vezes – operação que durou cerca de 35 minutos - mastiguei o gengibre até chorar e, sem querer, joguei as couves no lixo junto com a casca da banana que me serviu de consolo. Eu, que já tinha fumado um cigarro de nervoso naquela semana, não hesitei: parei o carro no posto de gasolina e pedi “mal batido”. Adentrei minha sala do trabalho meio escondida, tomando um belo Ovomaltine.  


segunda-feira, abril 15, 2013

S101


— Parece que Black Keys é uma banda famosa —, eu disse a ela sem entender como é que pode uma festa não tocar Caetano Veloso. A gente não dançou nem uma vez aquela noite. Nenhuma. Cheguei em casa e os sapatos nem me apertavam. Fiquei a metade da festa descalça, porque sentada. Ela ficou a metade do tempo bêbada e eu passei metade do domingo de ressaca, com aquela cara de síndrome do intestino irritável, e quando acordei segunda eu estava dois quilos a menos. — Também não tocou Michael Jackson —, ela piorou, e eu, que tinha uma leve recordação de Thriller, fiz minha coreografia de ombros, mãos e braços no banco de trás do taxi que nos levou até a Gávea. — Não sei o que acontece, não conheço nenhuma música de agora —, confessei. O dia ameaçava, a gente ouvia Marcelo Camelo na sala e concluía que, apesar da beleza, faltava borogodó. — Te-são — , ela diria, mas já não estava conosco para debater, separados por túneis e um taxista duvidoso. — Já te contei que o conheço desde 1985? —, perguntei, numa noite cortada por travessões, delírios, devires, vírgulas que nunca estão onde deveriam.





sábado, abril 13, 2013

Efeméride - vol. 3


O curioso, no entanto, é que esta soma infinita do que não fará continue sendo aplicada a ele, como uma sentença. Quem morre não tem perdoada a vida que deixou de ter. Não fica isento do aquém, do dia-a-dia que ainda nos domina, descansando num respeito solene dentro do túmulo. Não, nós o prendemos em nossa culpa e em nosso amor, procurando lembrá-lo (mas quem é ele agora?) de cada gesto que não fez, de cada entardecer que não viu. O morto torna-se aos poucos um devedor, e quanto mais tempo passa, maior a vida que nos deve (porque morreu). Sei que não há como lembrá-lo disso, mas não importa – sua surdez é apenas mais uma de suas dívidas: Hoje você não ouviu minhas queixas. Assim, se houver um Além, somos nós que assombramos os que passaram, enchendo sua eternidade de cobranças e lamentos.

Nuno Ramos, Ó



segunda-feira, abril 08, 2013

Hoje

(há 3 ou 4 anos atrás)

Somos 4 num boteco xexelento em Ipanema. A mesa, repleta de garrafas de cerveja, está molhada. Ameaço ir embora, coloco o dinheiro num espaço ainda não alagado. E fico além da hora. As notas se afogam. A gente fala do novo filme do Tarantino, que agora é só o penúltimo. Eu tiro fotos que ficarão mais escuras que o desejado. Nenhum negativo captura você, sentado à minha frente. Separo e organizo as notas molhadas, o que dura alguns segundos. Você fica vidrado nas minhas mãos, sem ar ou batimentos pelo tempo que leva contar 16 ou 18 reais em notas de 2. Isso foi uma dança da Pina Bausch, você diz. Eu te amo, penso em responder.

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(hoje mesmo)

Antonio me abraça suado no fim do espetáculo. Cansado e grisalho, reparo. Passa lá em casa, eu tenho livros e vídeos que podem te ajudar. Bloco 5, 118. Ainda estão lá: aquele rumor de vento e árvores; o salão de festas onde por meses dançamos; o futon vermelho na sala; Antonio. Eu tenho uma saudade de Antonio! Ele não adivinha e eu não quero confessar. Fazemos aquelas promessas de sempre. Tenho livros e filmes a devolver, e portanto pelo menos mais um pedaço de Antonio garantido. Em casa assisto: sobre fundo negro, as mãos de Pina dançam. Eu sinto aquela coisa que se sente quando, por um momento muito passageiro (o tempo de contar 16 ou 18 reais em notas molhadas de 2), você perde a força de controlar seus órgãos. Os segundos antes de um vômito, de um orgasmo, de um choro; os segundos em que a linguagem escapa.

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(em 2011)

Quando os bailarinos esvaziam o palco para o intervalo e a cena permanece aberta e a neve que começara em meados do primeiro ato continua a cair; quando as pessoas deixam as poltronas para se encaminhar para os banheiros, os bares e os corredores; quando as campainhas soam para o segundo ato e ainda neva, e de repente os bailarinos voltam à cena e neva mais e mais e mais e os cabelos se arrastam na neve e dançam, e os vestidos levantam a neve do chão e de repente tudo é branco e é preciso quase imaginar os corpos que ali estão, atrás dessa cortina de flocos; quando os aplausos não se cansam, quando outra vez os assentos ficam para trás; quando eu fico para trás, sentada numa poltrona da fila H do balcão nobre; quando eu, desnorteada, ainda vejo neve cair, sentada numa poltrona da fila H do balcão nobre que parece ser o limite do mundo; quando eu desço as escadas do Theatro e não sei nem mesmo pensar: tem uma corrente que passa sob a pele, um buraco que se abre num ponto impreciso entre a compreensão e o meu estômago.

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(todo dia)

Quando eu não sei nem mesmo pensar: danço, e é sempre com você.