segunda-feira, junho 25, 2012

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Fiquei muito gripada aquele mês, e no seguinte também, e no outro, e na quarta vez que tive que avisar no trabalho que ia faltar, liguei pra homeopata pedindo socorro, porque eu estava com medo de ser demitida por hipocondria, o que pra mim dava justa causa e tudo. A homeopata, entendendo que além de gripada eu estava no auge de uma alergia, me receitou Zyrtec, alopatia pura e tradicional. No dia seguinte, no trabalho, tive que sair mais cedo porque o Zyrtec, apesar de ter me feito voltar a respirar pelo nariz, me derrubou e quando acordei eu estava dormindo em cima de um original da coleção Blanche da Gallimard. E nem era culpa do romance. Zyrtec, concluí, era tão bom pra rinite quanto pra insônia.

Esse foi o início da minha desilusão com a homeopatia, porque se na hora do vamos ver a médica me mandava um tarja preta da descongestão, então é porque até ela se iludia.

Por essa e outras, não recorri a ela quando me bateu uma ansiedade daquelas de atrapalhar o sono. Maio virou e de repente as coisas começaram a não caber: as coisas nos dias, as roupas em mim. Quando junho chegou eu estava num tal estado de nervos e num tal declínio estético que comecei a correr na esteira do prédio da minha irmã, pensando que a medida extrema resolveria dois problemas. Então caiu nas minhas mãos um livro de autoajuda pra editar, agradeci aos céus e perdi meu i-token do banco.

Eu andava comprando livros loucamente, pensava até em voltar pra análise pra tratar de compulsão quando me dei conta de que o i-token tinha sumido há, pelo menos, três dias. Por um lado era bom: significava que eu não encomendava livros desde a sexta-feira, pois não teria conseguido concluir as transações internéticas de pagamento sem o tal dispositivo. Por outro, era um pesadelo, porque a agência na frente do trabalho estava com falta de i-tokens, a Rio+20 ocupava tudo e eu não conseguia nem chegar até a Rio Branco sem ser abordada por todas as militâncias possíveis, tentando angariar mais um pras suas causas.

Imbuída de coragem e absolutamente necessitada de um livro sem o qual não poderia concluir um dos 3 trabalhos acadêmicos sobre os quais me debruço há quatro semanas, lá fui eu.

Quando a mocinha do atendimento me deu um novo i-token, ela exclamou que eu ia gostar muito mais desse novo modelo, que nem tinha nem botão pra apertar. Já fiquei nervosa aí. Eu adoro botões. Grande parte da minha birra com tablets e smartphones vem justamente do fato de eles trazerem em si a extinção dos botões. Eu gosto de apertar. A tecla de espaço é uma das minhas preferidas. Quando a mocinha do atendimento do banco que me deu um novo i-token disse que as senhas apareceriam ininterruptamente no visor, mudando a cada sessenta segundos, senti meu coração apertado, todo meu corpo tomado.

Mas panicar mesmo eu paniquei depois que comprei mais um livro num site e deixei o i-token sobre a mesa, e quando percebi o desespero que aquele aparelhinho ligado para sempre me causava. Ter o novo i-token do banco é como usar um relógio de ponteiros que não te deixa esquecer o tempo nem por um segundo. É um horror.

Eu não telefonei pra homeopata pra falar da ansiedade provocada pelo dispositivo do banco, com medo que ela me receitasse um floral, porque está muito claro pra mim que nesse momento preciso de um bom ansiolítico, de preferência um desses bem controlados. Concluí também que um cartão de crédito poderia resolver a questão do pagamento via internet, evitando com que eu tivesse de fazer docs e pagamentos online, ou seja, reduzindo significativamente o acesso ao i-token. Mas mesmo dentro da bolsa, não consigo esquecê-lo, e só de pensar que ele está ali gerando números que nunca serão usados ou lidos, já me dá uma exaustão enorme.  

Antes que a sexta gripe começasse ou que eu enlouquecesse e comprasse um livro de cada autor da FLIP (ok, comprei 3), corri uma maratona, tomei Zyrtec atrás de Zyrtec e, finalmente, fui demitida por invalidez.

quarta-feira, junho 20, 2012

Tudo que é imaginário tem, existe, é. 

Estamira, no documentário Estamira, de Marcos Prado.





(Essa é uma das muitas frases que, pra mim, poderiam ter saído da Remington de Clarice Lispector.)

domingo, junho 17, 2012

Propriedade

Uma hora mais tarde Julio recebe seu pagamento: três notas de dez mil pesos com as quais tinha pensado em se virar durante as duas semanas seguintes. Em vez de ir para seu apartamento ele faz sinal para um taxi e pede ao motorista que dirija trinta mil pesos. Repete, explica e até dá o dinheiro adiantado para o taxista: siga em qualquer direção, rode em círculos, em diagonais, tanto faz, eu desço do seu taxi quando bater nos trinta mil pesos.

Alejandro ZAMBRA. Bonsai. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Na minha mesa agora habitam, temporariamente, quatro livros que não são meus. Três deles são de alguém que tem manias semelhantes às minhas: nome e data na folha de rosto, marcadores de páginas coloridos, riscos a lápis marcando trechos. O outro tem carimbos de biblioteca, etiquetas laterais de biblioteca, numeração de biblioteca, cheiro de biblioteca e aquela quase virgindade das páginas. Ninguém ousou quebrar a lombada, e me angustia pensar se devo ou não fazê-lo.

Imagino a bronca. O livro da biblioteca tem de ser devolvido exatamente como encontrado dois dias antes. Três dias antes. Pretendo pagar uma multa de R$ 1,50 só pra não ter que ir à biblioteca no dia que não tenho aula na Universidade, segunda-feira, data de devolução do livro. Se for preciso, pago mais R$ 5,00 por ter quebrado a lombada.

Eu quebro lombadas. Imagine ler a biografia da Clarice Lispector edição de bolso sem quebrar a lombada. Seria uma prisão.

Não gosto de coisas que não são minhas. Sou controladora, é por isso que gosto de ler. Gosto de poder rabiscar as páginas. De deixar aquilo meu. De ensaiar garranchos, de ver os sublinhados que dizem que estive ali. Acho que daria pra escrever uma autobiografia colando frases sublinhadas de livros. Talvez à primeira vista não fizesse sentido. Mas pense só.

Ou uma autobiografia feita de assinaturas em livros de presença de exposições.

Joyce Pascowitch foi ao MAM dia sete de abril de dois mil e doze. 

Eu ainda compro lápis, mas fico pensando quem mais. Gosto de cheiro de lápis. Gosto de tudo onde se possa ver a passagem do tempo. É clichê, mas dá pra fazer uma lista: folhas de papel, folhas de plantas, canetas, paredes brancas, sapatos de salto, sapatos sem salto, livros, pele, cabelos.

Gosto de morder os pescoços dos homens que passam pelos meus afetos. São as marcas. Sou controladora, é por isso que gosto de ficar sozinha. E de ler. E de ter as minhas próprias coisas, e de poder, num chilique que nunca acontece, rasgar as páginas, se eu quiser. Ou quebrar lombadas, todas minhas, partidas ao meio, fazendo com que eventualmente a encadernação se danifique, as páginas se soltem, as palavras se percam.  

Quatro livros emprestados, angústia de não poder possuí-los. Depois de amanhã devolvo tudo. Até lá, desenho nas paredes.

quinta-feira, junho 07, 2012

Bartleby


-       Quanto tempo durava a conversa ao telefone?
-       Uns quarenta minutos.
-       E assim foi durante cinco anos?
-       Assim foi durante cinco anos.
-       Você nunca viu João pessoalmente?
-       Não, nunca vi.
-       O entregador chegou a ver ele?
-       Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.
-       Mas isso é piração, Garrincha.
-       Isso é João Gilberto, meu senhor.


Marc Fisher, em diálogo com Garrincha, o cozinheiro que durante anos preparou o steak ao sal grosso que João Gilberto encomendava (Ho-ba-la-lá – À procura de João Gilberto. Companhia das Letras, 2011).

sexta-feira, junho 01, 2012

Por uma "esquerda" menos ensebada

(Agradecimento especial à Eugenia, sempre cheirosa e penteada)


É possível que a terminologia usada neste texto esteja defasada, e que o grupo de pessoas aqui referido já tenha merecido um termo cunhado neste ano de 2012. Para todos os efeitos, creio que tal grupo será identificado facilmente pelo leitor, pois que tal figura está totalmente disseminada no cenário urbano carioca. Vale ainda acrescentar que não pretendo que este “estudo” seja tomado como julgamento, aprovação e/ou reprovação das gentes citadas, e que deve ser lido como uma observação bem parcial desta que vos digita.

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Faz pouco o carioca adotou prática já implantada há dezenas de anos em países avançados, e desde então uma série de discussões e debates toma as redes sociais em prol do uso da bicicleta, da construção de ciclovias, de respeito ao ciclista etc. Uma horda de ciclistas sem via, por sua vez, adotou o pensamento do motorista que estaciona na calçada por falta de vagas. Seguindo essa lógica, os ciclistas se aventuram no meio das pistas de rodagem, ultrapassando carros e motos como se não houvesse amanhã, numa atitude desafiadora ao sistema, e dispensam até mesmo o capacete. Em poucos meses uma verdadeira militância surgiu na cidade, e um ódio a veículos automotivos começa a ser cultivado entre os usuários deste transporte “alternativo”. As aspas são puramente pessoais. Transporte alternativo, para mim, é helicóptero.

O que me interessa nessa deliberação acerca do hábito da bicicleta, porém, é tanto mais um fator que, creio, não seria exagero afirmar como estético, e que assola o grupo sobre o qual pretendo refletir.

A minha geração os denominou “sujinhos”. Um sujinho, basicamente, era um sujeito de barba rala e bigode, mais charmoso que bonito, mais inteligente que bonito, mais divertido que bonito, mais intelectual que bonito, enfim, mais coração que cara, e tudo isso ficava evidente no modo de vestir, de falar, de gostar. Frequentemente um “sujinho” está ligado a alguma atividade artística, e circula por shows, teatros, cinemas, museus, galerias, eventos de poesia, mais recentemente passeia por sambas em pracinhas com coreto etc. Um “sujinho” tem engajamento político, discos de vinil e usa seu perfil na rede para divulgar notícias, reportagens e matérias sérias sobre temas relevantes. Ele não é umbiguista, jamais posta fotos do cachorro e preserva sua privacidade. Check-in é algo que envolve uma companhia aérea, um aeroporto e milhas. Um “sujinho”, ora, é mesmo um pouco sujinho, ou ao menos tem aquela aparência de “fim do dia”, momento em que deve estar se encaminhando pra casa, pra tomar um banho antes de jantar, trepar ou dormir.

Habitualmente, também, um “sujinho” é “contra o sistema”, e portanto, em 2012, nada mais natural que um “sujinho” se converta em ciclista. O que, por conseqüência, o torna oficialmente sujo.

O “sujinho” com sua bicicleta está potencialmente mais suado, oleoso e com cheiro vencido. Faça o exercício: vá à abertura de uma exposição, a um festival de teatro, a uma mostra de filmes e perceba como, à mera aproximação de um “sujinho” te dá um ligeiro tremelique de asco, e seus passos automaticamente andam pra trás, numa tentativa de se afastar desse cara para quem a limpeza ficou em segundo plano. Minhas últimas incursões em ambientes dominados por “sujinhos” foram infelizes, a ponto mesmo de adotar uma postura de recusa, e uma resolução de somente me aventurar de novo em tais domínios sob forte gripe e congestão, o que evitará o mau cheiro (no meu nariz, obviamente).

Quando o anjo torto incitou Drummond a “ser gauche na vida”, ele não fez alusões à falta de aprumo. Ele não estabeleceu parâmetros pelos quais ficava o sujeito isento do ritual de sabonete, xampu, condicionador, desodorante. Também não fez odes ao suor, a peles oleosas, a cabelos ensebados. A sujeira não devia ser intrínseca a essa tribo, mas acabou sendo incorporada por ela, bem antes das bicicletas, que vêm agora sublinhar o caráter inhaca da revolução que, com sorte, será televisionada, evitando portanto o meu contato pessoal e a troca de fluidos com esses militantes.

O que eu não saberia dizer é quando essa “tribo” contestou os valores de higiene que eu julgava até então em voga. É um mistério para mim.

Uma das poucas heranças que temos do nosso “bom selvagem” é o hábito de tomar banho todo dia. Seja você árcade, romântico ou neoconcreto, ao ser indagado sobre o que temos do que ainda é considerada a “origem” do homem brasileiro, citará o banho, ainda que isso não nos aproxime de nossas raízes nacionais. Nem mesmo debaixo do chuveiro os nossos pensamentos se conectam à figura do índio.

Natural seria, portanto, que o banho fosse adotado irrestritamente por todos os que ainda sejam imbuídos de alguma ideologia (e nostalgia), pois que a defesa do legado daqueles que foram massacrados pelo sistema seria a arma-chave para esse pensamento do “sujinho” que quer, justamente, derrubar o mesmo sistema.

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Como disse acima, este não é um manifesto, é apenas uma sugestão em prol da socialização (no sentido de encontros, bate-papo, flertes etc. entre tribos que um dia já foram igualmente cheirosas). Mas se você está de acordo, por favor, assine embaixo.