quarta-feira, dezembro 28, 2011


estou no ar
sem garantia ou validade
em várias estações no ar
o coração vibrando em overbass
não há, não há explicações, não há
sou agora assim
simplesmente
cansei
de ser
como deveria ser

vou agora assim
seguindo em direção alguma
agora sim
partindo
o chão com meus pés

aberto para balanço
vou errando as previsões
quantas danças você me dá?
quantos passos pra pisar?

sem garantia ou validade
sem previsões de tempo
não me espere
vou
sem torre de comando
alço voo
faço
meu próprio vento

Omar Salomão in Impreciso, Dantes Editora.

sexta-feira, dezembro 23, 2011

Fax


Pedro Lago sugeriu um texto sobre beijo na boca, de língua. A Bel me deixou uns quinze dias pensando na inexplicabilidade do fax, entre outros. Voilà. E feliz natal.

::

Manual para fazer origamis, porque dobraduras são as primeiras trocas que se estabelecem com qualquer um. Saber o que esconder é vital, se os defeitos, as qualidades, os vícios. Indicações para construir seu próprio pássaro. Ela responde de letra corrida dizendo “ok, deu certo”. Para enviar, aperte o botão verde.

Bilhetinho de bom dia, mesmo que não seja todo azul. Uma foto de montanha, quase não dá pra ver direito. Cartão de visita, trecho de livro, extrato bancário pra programar as férias, página de revista, receita de nirá, versinhos meio bobos sem rima, notícia de jornal, um fio de cabelo, cinzas de um incenso, uma manchinha de sangue da ponta do dedo pra ter certeza de que é real, mesmo que tudo perca a cor.

E tudo o mais que pode passar de um país pro outro com o mesmo mecanismo de apertar o botão, fazer a folha rodar e se materializar tão longe. Até bula de remédio analgésico: perceba como dói minha cabeça só de não estar perto de você.

Letra de música: piscinas de silêncio, hinos do sem lugar.* Tenta imaginar como é o ritmo: é o primeiro bocejo depois de uma tarde toda no mar. A voz: é uma respiração tão funda e quieta.

Ele fica aguando tudo o que não pode reter. Dobraduras gastas, beija a máquina como se a saliva pudesse atravessar, língua frenética, como se ela fizesse o mesmo do outro lado, como se a temperatura das bocas, como se o esbarrar de dentes, como se fogo.

Retalhos de língua, finas camadas colocadas sobre o papel como se fosse um quebra-cabeças. O delírio dos cortes, a mensagem urgente: aqui sou eu, enlaçando a tua cintura. Peles dos lábios nas margens. Se pudesse, arrancava um molar. Te dou uma leve mordiscada no lábio inferior. Gosto de sugar sua língua e depois cravar a boca no teu pescoço. A folha se encharca de sangue. Para enviar, aperte o botão verde. Setas que indicam pra onde a língua roda, duração dos segundos, e começamos um novo movimento. Para enviar, aperte o botão verde. Começo a perder o fôlego. Aperte o bot. (apito). Ap. (FALHA). Para enviar. Aperte.

* in Acalanto, de Arthur Nestrovski e Zé Miguel Wisnik, do disco Indivisível.


sexta-feira, dezembro 02, 2011

André quer transar


Ou melhor, André precisa transar. Não é um palpite, é uma constatação do próprio, que postou tal afirmativa em sua página do Facebook. Ele não escreveu: “quero”, “gostaria de” ou “estou com saudades de” transar. André foi categórico: “Preciso transar."

André disse que precisava transar numa noite de quinta-feira, justamente o dia em que eu já pensava que queria transar também. Segundo uma reportagem da revista Alfa, quinta-feira é o melhor dia para fazer sexo (a mesma pesquisa afirma que a sexta-feira é o melhor dia pra parar de fumar, mas isso ninguém reparou). Não sei se o André leu essa matéria ou não. O fato é que André precisava transar, e eu fui tomar banho. Frio.

Uma ducha fria diária: ajuda na prevenção do envelhecimento; libera pequenas quantidades de endorfina, diminuindo assim a ansiedade, a depressão e a fadiga; melhora a qualidade do sono quando tomada antes de dormir; abaixa ligeiramente a temperatura corporal (pense no princípio do “congelar conserva” e voilà) e tem menos impacto ambiental que um banho quente. Isso eu li num livro naquela tarde de quinta-feira, no trabalho. Por uma razão bem óbvia e consoladora, o autor da obra em questão aborda os benefícios da ducha fria diária depois de ter exposto que: relações sexuais regulares nos protegem, no sentido de moderar a aparição de diversas doenças, como cânceres e doenças cardiovasculares; 3 relações sexuais por semana aumentam em 10 anos a expectativa de vida; 21 ejaculações mensais previnem contra o câncer de próstata.

Minhas endorfinas e eu saímos do banho frio. Mas eu ainda queria transar. E André também. Pior: André precisava transar, e eu começava a concluir que: eu também. Precisava. Transar. Pensei em quantas duchas frias o André devia ter tomado antes de concluir que precisava transar. Quanta água gelada o André teria gasto antes de anunciar aos quatro ventos que precisava transar.

Foi fácil admitir. Difícil seria a conversa que eu teria com André antes de transar com ele. Evidentemente eu não era a pessoa mais indicada pra transar com o André naquela quinta-feira, visto que eu queria, antes de tirar a roupa, estabelecer um estatuto em concordância com as minhas vontades e as vontades do André, pra me cercar de possibilidades de que aquilo seria bom pros dois (porque, cá entre nós, sexo casual comigo nunca dá certo). Achei que era necessário criar algumas regras pra essa trepada, só pra ficar tudo esclarecido: André poderia tirar minha roupa, desde que não rasgasse nada; strip-tease estava fora de cogitação, sou muito atrapalhada; tapas não rolam; mordidas, só no pescoço; evitar posições que possam despertar hérnia de disco (de quatro, por exemplo); evitar preservativos com sabor ou cheiro de frutas (ânsia de vômito); evitar trilha sonora; nunca, em hipótese alguma, ligar o shuffle do iTunes; não dormir de conchinha; telefonar no dia seguinte. Ok, telefonar no dia seguinte era uma cláusula que não fazia o menor sentido pra esse tipo de sexo que o André precisava e eu queria. Precisava.

Escolhi um vestido preto de malha, básico, sem muito desespero ou castidade. Salto alto era indispensável. Sem batom. Quando entrei no carro, uma rádio anunciava exatamente as previsões para o meu signo naquela noite: eu ia encontrar um grande amor. Fiquei confusa. “Amanhã de manhã vou pedir o café pra nós dois”, cantava o Rei quando dei play no cd. Tudo naquele dia parecia um roteiro escrito onde o final só podia ser exaustão a dois numa cama. Em que momento o amor entrava na história ainda não estava claro pra mim.

E foi então que tudo se iluminou: André era um estrategista. Com seu desabafo virtual, André estava arranjando sexo pra muitos e muitos dias. Ia chover gente na horta dele. Por minha parte, eu ia transar com André aquela noite e ia passar o resto do ano tomando banho frio, até no inverno, enquanto ele talvez começasse a recusar trepadas. Numa terça-feira próxima (dia mais propício ao trabalho, segundo a revista Alfa), André escreveria: “Não aguento mais transar.”

Quando cheguei ao restaurante onde meus amigos me esperavam pra jantar, anunciei:
André precisa transar. Eles não tinham ideia de quem era André. Sequer sabiam se André era alto ou baixo, gordo ou magro, e percebi que nem eu sabia mais qual era a cara do André. Fazia meio século desde uma noite em que, bêbado, André enfiou a língua na minha boca e me beijou. Agora parecia até ridícula a ideia de transar com André, porque se a gente não trepou naquele dia, não ia trepar nunca mais.

Minha quinta-feira terminou com a rotina de lavar o rosto, passar creme hidratante e programar o despertador pro dia seguinte. Sem sexo. E sem um amor novinho em folha. Na sexta-feira, antes de sair para trabalhar, lá estava o anúncio de André com muitos, muitos comentários. Cliquei "Curtir" e escrevi: eu também. Entrei no banho. Decidi parar de fumar.