terça-feira, julho 15, 2014

Onde eu possa plantar meus amigos

É tanto cabelo que a gente encontra pelo chão que já penso em usar touca dentro de casa, disse M. quando foi morar em Barcelona com uma amiga. O chão branco deve ter a ver com isso, eu pensei, vai ver meu cabelo já caía assim. O caso é que quando você mora sozinho começa a lidar com coisas nunca dantes enfrentadas, como a poeira inclemente que parece entrar por todas as frestas, os fios de cabelo que parecem multiplicar-se bem mais na sua cozinha que na sua cabeça, o fato de que o tapete do banheiro que você acabou de lavar não vai secar nunca, nem se o verão chegar. E os legumes e verduras na geladeira.

Já na segunda semana a minha Brastemp virou um cemitério de hortaliças e eu acompanhei, desolada, o apodrecimento de beterrabas, folhas e raízes. Aquela gaveta ingrata, além de dor nas costas, agora me dava corpos putrefatos quase que diariamente: as coisas não morrem ao mesmo tempo. O prazo de validade dos verdes é pequeno, sim, e se agrava quando você é adepta dos orgânicos e inapta a se organizar emocionalmente para amanhecer na feira de sábado. Sendo assim, você vira refém das bandejinhas de abobrinhas que nunca tem menos que três exemplares, e o mesmo se dá com tomate, pepino etc. e é batata (rá!): você percebe que também é inapta para montar uma logística de aproveitamento e apenas não dá conta de consumir 6 rabanetes em 5 dias.

Numa outra esfera da cotidianidade, B. adotou a política de, numa mesma semana, usar apenas roupas brancas, na seguinte apenas roupas pretas, na outra apenas roupas estampadas/coloridas, numa tentativa de otimizar sua lavanderia caseira. Tenho procurado fazer o mesmo, mas há algo de hipnotizante e terapêutico em observar as roupas girando na máquina de lavar e quando dou por mim estou lavando panos de chão, panos de prato e o que mais estiver ao alcance. Num destes momentos de ausência do mundo em que toalhas e lençóis rodavam à minha frente pensei até em deslocar o sofá para a área de serviço. E pensei, também, em me unir a alguém, porque fui tomada pela certeza de que o casamento só pode estar situado numa interseção entre o amor e uma bandeja de couve-flor.

Num desabafo com L., que assim como eu é inapto da feira, da lógica alimentícia e do coração, confessei que todo o meu histórico amoroso vinha me assombrando violentamente ao percorrer os corredores do Hortifruti. Eu me lamentava não poder dividir o brócolis orgânico com a pessoa amada e portanto evitar o desperdício, ao mesmo tempo que via que um buquê de alface poderia abastecer três residências de solteiros por uma semana sem qualquer percalço. Lamentava, também, o destino cruel que a vida me reservava: sem agrião ou acelga para o tempo que dure a minha solidão. Segundo L., havia, porém, uma saída para o gengibre e bastava quebrá-lo em pedaços menores na gôndola do super. É óbvio, pensei, e diante do fato reavaliei toda a minha ética hortifrútica.

Foi assim que passei a surrupiar folhas de alface e escondê-las nos maços de couve que compro e que só são consumidas graças ao suco verde diário. Ramos de agrião e de cheiro verde foram incorporados ao espinafre. E outro dia, numa festa, me dei conta de que estava há 15 minutos revoltada com 2 amigos que também não se conformam com o tempo de cozimento das beterrabas, e discorremos sobre legumes durante 5 ou 6 músicas, sendo uma delas do Daft Punk, enquanto à nossa volta as pessoas normais ficavam bêbadas e/ou lânguidas.

É uma obsessão, não sei como controlar, e apesar dos furtos terem dado certo, o grau de tensão que eu senti não compensou o crime. A questão já virou pauta de análise, e fico feliz da minha psicóloga entender que as picuinhas da vida a um podem ser muito mais eloquentes do que crises de identidade. As pessoas esperam que você apareça no divã toda semana com uma grande questão e uma série de abstrações e indagações existenciais, ou no mínimo com uma dor de cotovelo avassaladora: a minha dor é a privação de aspargos, berinjelas e repolho. 


Na tentativa de remendar tais agruras, convoquei B. e L. para o super. Fomos munidos de tupperwares, facas e saquinhos, e uma vez que tudo havia sido computado dividimos nossos verdes, embalamos nossas porções e recebemos olhares duvidosos dos caixas e consumidores locais. Se naquela noite alguém pensou em se aproximar de um de nós para dar aquela cantada ali perto dos congelados, desistiu para sempre. Pouco importa: em nosso devaneio, criamos um site de compra coletiva apenas de comida: nunca mais um ramo de hortelã murchará em vão.