quinta-feira, maio 20, 2010

Diários de São Paulo

(vol. II ou - o atropelamento segundo Caetano Veloso)

Acordo, pisco os olhos e me encaminho pra cozinha para devorar castanhas e é o suficiente para sentir a pele abrir-se em esgarços: pequenas feridas se depositam no topo das dobras dos dedos, a textura toda do rosto é agreste e o nariz sangra: pela manhã, à saída do ônibus, o vento frio na cara faz parecer NY, os combustíveis fazem parecer o inferno, o ipod faz parecer coincidência demais essas coisas sobre as quais não ouso pensar.

Em meio a tantas galerias, ilustrações e cores, decidimos que tão importante quanto o poder aquisitivo é a extensão das paredes, e mais grave é a dimensão das molduras: discutimos a necessidade do “paspatur” e mais tarde, entre chillis e cervejas com limão, debatemos a ética profissional, seguramos as lágrimas que se disfarçam em risadas, ensaiamos embriaguez no final do domingo.

À tarde no escritório as pessoas comem bolachas, nunca biscoitos. Nos finais de semana as pessoas “dão risada”, nunca gargalham. Algumas coisas em São Paulo são “embaçadas”, e não são necessariamente vidros ou lentes. Outras ficam “zoadas”. Tem gente que “causa” na balada. E todo mundo atende pela primeira sílaba do nome, até mesmo Ana pode ser reduzido a “Ô. Em São Paulo é assim: acostume-se com o dialeto, imite o sotaque, faça parte. Alguém vai te sacanear quando você falar “treix” ou “meixmo”. É a sua chance de sacanear de volta, com requintes irônicos que nem o mais erudito paulistano alcançaria: quer que eu te imito?, pergunte, e ria por último e melhor (e sozinho).

Fim de semana em Higienópolis, Aderbal e eu nos fazemos companhia. Em poucos minutos entendo seus miados e chamados, e em questão de duas ou três trocas de olhares nos gostamos tanto que ele deita no meu colo, se esparrama, fica dengoso e meu. É uma delícia, não fosse o pequeno acidente que ocorre depois de cerca de uma hora: sem querer, eu como o Aderbal. Ele solta tanto pêlo que começo a sentir na minha garganta seus cabelos, entro em pânico pensando que os pêlos todos do Aderbal se alojarão na minha garganta. Percebo, porém, que ele não encolhe, ufa. Saio do apartamento aliviada, e então, rá!, como minhas luvas e o cachecol, e, dependendo do figurino, como o meu casaco também. E comeria qualquer coisa que fosse feita de lã e se desfizesse aos poucos encontrando trajetos que levam o tecido a se acumular diretamente na minha garganta. Comeria outros bichos também. Papo estranho, melhor mudar de parágrafo.

Ando atenta pelas barracas da feira e aumento para 3 o número de itens da minha coleção de latas de talco antigas, questiono se de fato a denominação procede. Acho que sim. Quero que sim. As barracas de brinquedos antigos afirmam nosso saudosismo, e compro um Snoopy vintage para o sobrinho, que provavelmente terá mais interesse em coisas que piscam. Suspiro. Quem sabe?

Apita no meu celular uma mensagem enquanto atravesso o viaduto do chá: “ainda na terra dos bandeirantes?”. Certamente. Fugindo da multidão que invadiu a Liberdade no domingo de feira, e acho tudo naquele bairro um horror, de modo que nem um sashimi me salva.

Tiro fotografias sem ter qualquer noção de que elas mostrarão tudo o que quero lembrar e, num descuido, queimo 24 poses de recordações. Desconsolo na Sé.

Fico com uma enorme vontade de me apaixonar por alguém, pior: preciso me apaixonar por alguém.

Tento: entro na Catedral, dou bom dia a um monge na porta do Mosteiro de São Bento, cruzo a Ipiranga e a Av. São João e o máximo que me ocorre é um espirro. Há que ser muito Caetano para mapear poesia em cruzamentos no nervo da cidade, e então um estalo. A maioria das ruas por onde tenho circulado não tem sinal (ou farol?) para pedestres e portanto a cada rua que cruzo, prevejo minha própria morte. O máximo que eu poderia sentir no coração ao me deparar com tal cruzamento deve ser algo parecido com a dor do fim. Não há romantismo que resista a tanta ameaça.

Pausa. Fico cansada no fim do dia, me reconcilio com os óculos, pego um ônibus errado mesmo assim. Consigo estabelecer uma rotina para toda a homeopatia e sem mais determino: estou melhor, estou esquecendo, estou voltando.

Canto: desafino, dou gritinhos, rio no meio da letra e tenho uma inveja estúpida de quem sabe tocar violão.

É o fim do exílio: malas prontas a serem entupidas de tudo o que adquiri, responsabilidades e funções novinhas em folha, um ainda não saber como viver longe do Nintendo Wii, uma preguiça de deixar aqui toda essa gente querida que eu adoraria carregar no bolso: sentir saudades de novo, calor de novo, e atravessar os mesmos rostos nos velhos bares, evitar as mesmas farpas e limpar o armário toda semana por causa do mofo.

Saudade eu tenho dessa cidade que ainda mal conheço, da Paulista quando é noite ou dia, das árvores de Higienópolis, do avesso do avesso do avesso do avesso.

Alguma coisa acontece no meu coração quando pego a ponte aérea, vejo os termômetros de São Paulo marcando 14 graus e sinto que pertenço.

sábado, maio 08, 2010

Top 5

Características da linguagem regional:

1. “Brigada eu” – é um esquisito sinônimo para o “de nada” que falamos após um agradecimento. Eu, que pensava detestar gente que diz “por nada”, me vejo agora às voltas com “brigada eu” naquele sotaque anasalado de São Paulo.

2. “Imagina” – é mais um sinônimo para o “de nada” ou o “brigada eu” e na maioria das vezes é dito "magina", ocultando-se a primeira vogal, como no "brigada eu".

3. “De quinta” – ou “de” + qualquer outro dia da semana. Ao chegar ao trabalho e fazer um comentário sobre o trânsito daquela manhã, alguém diz que “de sexta é um caos”. Ao perguntar a alguém sobre os horários de um museu, “de segunda não abre”. Ou qualquer outra coisa: “de domingo tem feira aqui na esquina”, “de quinta é mais caro pra entrar” e etc.

4. Plural – por alguma razão obscura, os paulistas não aprenderam a usar o plural na escola. Nenhum paulista: do trocador de ônibus às pessoas que passaram pelo ensino superior, todos adotaram o singular como número absoluto. O curioso é que tal regra vale para substantivos, porém cai em desuso para artigos, o que acarreta frases recheadas de: as blusa, os carro, os vestido, os mano, as mina.

5. Subjuntivo – deve ser alguma emenda especial na pasta da Secretaria de Educação: os paulistas também não aprenderam a usar o subjuntivo na escola, e o que se escuta o tempo todo é uma espécie de dialeto verbal: quer que eu telefono? Quer que eu levo? Quer que eu busco? Eu não sei ainda como reagir a essas perguntas, na dúvida digo sempre que não porque estou convencida de que existe um significado oculto em tudo isso. Quer que eu te mostro?, me perguntou alguém outro dia, e eu saí correndo de medo pela av. Paulista.

quarta-feira, maio 05, 2010

O dia em que cortei cebolas

Teve garoa à tarde no dia em que cortei cebolas, e porque desde que cheguei nessa terra só fazia calor e sol eu pensei que a chuva fina tinha um quê de especial porque anunciava o frio, o casaco de lã, um guarda-chuva novinho em folha e quiçá epifanias.

Desci a Rua Augusta cantando e, distraída que estava, fui andando pra casa sem me importar com a poluição. Não arrisquei respirar fundo, porém, seria um descuido e uma impossibilidade, visto que por volta das 18 horas o nariz começa a entupir: em São Paulo, parece, até a alergia é profissional e cumpre horário de trabalho. E junto da alergia vem essa coisa que dá nos olhos, e que é um misto de coceira e ardência, e atravessei a 9 de Julho pingando colírio, aquele prescrito cheio de substâncias e que promete aumentar a produção de lágrimas, essas que haviam sido decretadas escassas e insuficientes para meus olhos.

Eu já andava pelas ruas engarrafadas do Itaim quando entrei no supermercado, uma vontade de comer massa ou qualquer outra comida que ficasse pronta depois do simples e sublime ato de ferver água: brócolis para acompanhar, queijo derretido pra jogar por cima e gelatina de sobremesa. E uma salada de tomates e cebolas, que aí é mais mágico ainda e só precisa de azeite. Com sorte haveria ainda alguns goles de vinho no armário, e mesmo que não houvesse, eu ficaria enrolada em cachecol, esquecida no sofá. Com mais sorte ainda, dessas que nem amuletos ou simpatias garantem, a gata passaria mais um dia sem me atacar.

Panelas no fogão e abridor de vinho decifrado: seriam necessários mais lenços de papel, mais gotas do suposto milagroso colírio e em outros dias seria preciso, também, janelas anti-ruído que silenciassem os esperançosos torcedores do Corinthians.

Mas no dia em que eu cortei cebolas nada poderia estragar minha noite, tamanha foi a especialidade do evento anunciado pela garoa.

No dia em que cortei cebolas o porteiro me deu boa noite me chamando pelo nome, eu fui útil na Alameda Lorena e o risoto do almoço compensou a espera. O ponto alto do dia em que cortei cebolas teria sido o fato de que a gata lambeu meus dedos da mão, selando o começo de algo que pode vir a ser uma grande amizade de 3 semanas. A revelação, porém, era outra: no dia em que cortei cebolas chorei lágrimas em abundância.

sábado, maio 01, 2010

Diálogos com um(a) sobrinho(a) - vol. I

Era um baldinho em forma de peixe, desses que as crianças levam para a praia cheio de ferramentas dentro: pás e forminhas para fazer bolinhos de areia. Ou buracos que nos levariam ao Japão, à China, e a um monte de outros países que ainda nem sei se aprendi direito: um dia sentaremos juntos em frente a um globo iluminado e escolheremos todos os destinos que couberem em nossos cadernos de viagem: sim, é bacana manter cadernos de viagens, e outros tantos um pouco inúteis.

Depois foi uma caixinha pequena, de papelão e cheia de cores, de onde juntos puxaríamos diversos cartões, e em cada um deles haveria o começo de uma história: era uma vez. E então caberia a nós continuarmos: poderíamos separar príncipes de princesas, inventar bruxas dóceis, fabricar céus de marmelada e árvores de tangerinas (um dia, fatalmente, você descobriria que os Beatles já tinham inventado isso antes, mas tudo bem).

E os casacos de plush: com capuzes e aconchegantes, mesmo que a nossa cidade seja esse exagero de calor e suor, e os sapatinhos: olhando os sapatinhos eu pensei que era mais lógico que bebês andassem (ou não) descalços, com os pezinhos sempre acima das cabeças, ensaiando passos de dança acrobático enquanto alguém já crescido empurra o carrinho.

Aí eu comecei a perceber que já estava elitizando ensinamentos e lições para você: eu tinha pronta uma lista de verdades e mentiras sobre o mundo, prós e contras sobre tantos aspectos da existência, e dicas para economizar água. Quanta besteira: seu mundo vai ser outro, vai ser, exatamente, o que você escolher.

Foi quando eu resolvi que qualquer coisa seria piegas, e porque essa é a nossa primeira despedida, resolvi enfiar o pé na jaca. Pra você, neném, eu afirmo isso: invente o seu deus, escove os dentes toda noite antes de dormir, escute toda a música que puder, cultive paixões e escolha sempre as pessoas que vão te ajudar a fabricar sonhos: são elas as melhores, as mais especiais, e as que vão te servir de bússola.

São só 3 semanas: eu voltarei cheia de presentes, saudades e essa felicidade sobre a qual ainda não aprendi a escrever.