sexta-feira, maio 29, 2009

Argumento

Eu não sabia
Que virar pelo avesso
Era uma experiência mortal.

Ana Cristina César, Fagulha, dentro de Inéditos e Dispersos.

Toda livraria deveria começar pela sessão de História. Mas assim como todas as outras, essa aqui também tem uma seqüência de prateleiras e corredores que não segue lógica alguma. Dobrando à direita após a Culinária, por exemplo, você chega à Literatura Nacional. Mais à frente ficam os livros de cinema. É a segunda parada, porque geralmente cortamos caminho pela sessão de Design, que é também bastante folheada quando a gente vem tomar café. Tá certo, toda livraria deveria começar pelo café. Comprar um livro sentindo todo o corpo quentinho, com aquele resquício de creme chantilly no fundo do céu da boca. E waffles: comprar um livro depois de ter comido waffles com mel num domingo chuvoso, qualquer orelha ou contra-capa fica com ares de prêmio Nobel, e os filmes dos livros ficam ainda mais clássicos, e alguns mais injustiçados pelo Oscar.

O intervalo no Cinema é seguido por uma espécie de férias, que acontece sempre que chegamos na Poesia: uma prateleira tímida que deveria durar corredores inteiros, que deveriam abrigar sofás e poltronas revestidos por camurças cor de vinho, que deveriam afagar leitores aquecidos por xícaras de chocolates-quentes. O único sofá, porém, fica ali perto da porta da entrada, dando boas vindas aos ventos frios que sopram toda vez que alguém chega aqui.

Perto da gente, sobre nossos joelhos, aterrissam versos e estrofes que nunca vamos comprar. A prateleira de poesia é tão envolvente que resolvemos nunca comprar nenhum daqueles volumes, só pra voltar sempre. A gente opta por se esparramar pelo chão em frente, e resolve colher aos poucos os poemas grudados nas páginas, a cada domingo chuvoso ou sonolento que acorda no fim de tarde com doses de cafeína e açúcar em pacotinho. Escolhemos obras distintas, passeamos pelas folhas até que um de nós comece a falar: sabe, e se eu te contasse que nunca li um livro do Ferreira Gullar? A gente resolve que não é desaforo: tudo bem, eu também não. A gente ri um pouco, olha pros lados, não queremos que ninguém pense que é deboche, não aqui, não a gente, vamos levantar? Só mais esse, peraí, é o que comecei semana passada, é curtinho.

Os livros do Shakespeare estão sempre perto da coleção do Nelson Rodrigues que toda vez eu digo que vou comprar, desde que os meus sumiram na mudança ou foram comidos pelas traças. São pesados e lindos. Os livros, não as histórias. E se eu te disser que não saco nada de Shakespeare? Oras, você não precisa me dizer tudo o que pensa. Mas que tudo bem, cada livro do Shakespeare dessa edição deve valer 3 ou 4 selos no cartão fidelidade.

No caminho até o caixa rodamos o display dos livros de bolso. Ele gira meia volta, pára meio emperrado, a gente descobre que ainda dá tempo, passa por todos os países do mundo e no fim acaba voltando: semana que vem comemos bolo de laranja de sobremesa, tomamos suco pra não entalar e terminamos aquele volume pequeno do Manuel Bandeira se os dois prometerem não revelar pecados na Literatura Estrangeira. Tem dessas coisas, a gente sempre deixa a Poesia com rimas acidentais. E se a gente completar os selos do cartão com Flaubert, de quem também não sabemos muita coisa? Mas e o Shakespeare? Mas e todos os outros? Suspiramos.

A sessão infantil fica do outro lado do caixa. Chama a atenção o colorido, a leveza, os risinhos chacoalhantes que se escutam por ali. Escolhemos aqueles cheios de brincadeiras e sensações táteis onde a língua do cachorro é de veludo, o pêlo do gatinho é de pelúcia e as ondas do mar são de algodão que nem barba de Papai Noel. O banquinho em formato de flor é pequeno demais para nossos 50 anos somados, sorte que somos dois. ‘O rapto das cebolinhas’ era livro ou peça de teatro? E o menino do dedo verde, o que ele fazia mesmo? Eu amava ‘Lúcia já vou indo’, mas quase chorava toda vez. E ‘Marcelo, Marmelo, Martelo’, que tinha o meu nome na capa, que história era essa? E ‘Mamãe Monstrinho’? Será que daqui a muito tempo a gente vai esquecer ‘A Peste’? E se um dia eu não lembrar mais como era ‘Morangos Mofados’? Será que o mundo acaba? E se a gente começar a reler todas essas prateleiras? Abandonamos a poesia, aqui o chão é macio e nunca dói. Mas os infantis ficam fora do caminho, depois do caixa, longe da porta, lado oposto do sofá, nem se vê o Cinema daqui e o cheiro do café não chega. Mas a Poesia fica ao lado da Política. Mas a Literatura Nacional fica bem ali.

Toda livraria deveria começar pela sessão de História, e se a gente trocar de café? Sabe, tem um ali do outro lado da rua, na calçada, sem livraria acoplada, sem sustos ou tropeços, moço, onde fica a auto-ajuda?

domingo, maio 24, 2009

O dia em que eu (não) matei o blog

Então sexta-feira o Carlos disse que o caso do vizinho tinha sido um bom momento no meu blog. O Carlos disse que eu devia escrever mais, ao que eu argumentei que estava sofrendo de falta de assunto. Carlos fez, portanto, o comentário que trouxe à tona o tão falado vizinho, e ele não deve imaginar o que este ato inofensivo de encorajamento a uma blogueira em crise fez com a minha confusa cabeça.

Antes do Carlos, porém, eu já sofria pressões de todos os lados. Começou quando fiz o Gabriel chorar. Fazer o Gabriel chorar é muita responsabilidade, porque eu nunca vi o Gabriel na vida e de repente ele chegou aqui e se emocionou ao saber que eu transformava sussurros ao pé do ouvido, proclamados por um sujeito loiro, em suicídios. Imagina se o Gabriel descobre que há sei lá quantos anos atrás eu escrevia sobre bolinhas-de-queijo? Seria um leitor a menos, na certa.

Houve então a questão do ciúme dos amigos. Depois do texto que escrevi pro Bruno, os amigos clamaram por declarações semelhantes, coisa que nunca se repetiu. Todos se julgavam merecedores de textos e estudos sobre suas adoráveis pessoas, e eu até concordava, mas nada que eu escrevesse sobre eles parecia ser bom o suficiente, eles ainda se ressentiam do Bruno ter abocanhado os melhores parágrafos. A coisa piorou quando eu comecei a romancear conversas que eu tinha com a Carol. A Bebel entrou numa crise tão grave que há três semanas atrás eu era a principal suspeita no caso da morte (por asfixia) do peixe dela, que morava num aquário daqueles de história em quadrinho, muito vintage e assassino sem renovação de ar. Tenho certeza que a acusação foi um reflexo dessas mágoas ainda guardadas.

Até que veio o Omar, roubou um texto pro site da banda dele e indicou o blog para pessoas importantes que ao lerem os parágrafos seguintes vão achar que estão consumindo posts de uma adolescente emo.

O fato é que os sussurros ao pé do ouvido cessaram de tal forma que meu estado civil mudou de solteira pra encalhada e eu nunca mais consegui falar sobre amores ou paixões, e comecei a espalhar a notícia de que atearia fogo ao blogspot. Eu estava decidida, e ninguém me convenceria do contrário, nem o Gabriel me faria mudar de idéia, nem a perspectiva de ser lida por pessoas importantes, nem se eu ganhasse fãs no Orkut, nem por toda bolinha-de-queijo do Jobi eu continuaria escrevendo.

Até que o Carlos veio com essa. O caso do vizinho foi um ponto alto do seu blog, ele disse. Aí eu paniquei. Eu não quero matar um blog cujo ponto alto foi o vizinho. Eu não posso matar um blog cujo ponto alto foi uma história que aconteceu há sei lá quantos meses atrás. Onde foram parar todas as coisas interessantes que eu tinha pra dizer? Cade meu senso de humor que fazia rir gente desavisada que vinha parar nesse http? O que aconteceu que eu não faço mais o Gabriel chorar?

De uns tempos pra cá eu virei essa pessoa estranha que quer obedecer as leis e rebatizar um blog agonizante de Campos de Morangos. Eu me transformei em alguém que deleta seus próprios textos antes deles virarem arquivo de word, e que escuta música clássica nas tardes de segunda-feira com o tio. Eu de repente acordei e era essa pessoa que vira musa na praia numa foto em que só aparece a minha mão e se acha narcisista de te-la, a foto, na parede do quarto. De lá pra cá eu virei uma pessoa comprometida com o cartão fidelidade da livraria que divido com o melhor amigo. Virei uma pessoa que dorme com travesseiro da NASA e que discute o sexo dos anjos no Keb. Eu virei uma pessoa que come no Keb.

Eu virei uma pessoa que precisa ser convencida a não matar seu próprio blog, que precisa ser convencida de que a falta de tinta de cabelo pode ser poética e trágica, de que a falta de amores e paixões pode ser sarcástica, de que suicídios podem acontecer por causa de um livro ou do Bolero de Béjart, mas seria bom se pelo menos um fosse por causa de arrepios provocados por um beijo no pescoço. Eu virei essa pessoa que precisa ser convencida a superar o ponto alto de seu blogspot, que precisa ser convencida a inventar mais tantos conflitos imaginários quanto forem possíveis. Eu virei essa pessoa que precisa ver de novo assunto nas coisas, e que precisa acreditar no potencial de todas as piadas que são contadas e recontadas nas mesas do Baixo Gávea. Eu virei essa pessoa que cansou da análise e agora precisa ser convencida de que costumava ser boa nessas coisas de contar histórias. Eu preciso inventar novos vizinhos, assim em negrito. Eu preciso de alguém que me defenda, e de dois ou três aplausos inteirinhos pra mim, e então prometo: não mato blog nenhum.

segunda-feira, maio 18, 2009

O twitter é aqui

(ou: Pensamentos cruciais de segunda-feira)

16h30
Com soluço. Tomar água de cabeça pra baixo funciona?

16h42
Ainda com soluço. Alguém me dá um susto?

17h00
Meus álbuns de foto estão grudando, será que talco resolve?

18h50
Depois de percorrer 5 farmácias, concluo: minha tinta de cabelo está em falta. Isso sim é grave.

18h59
Ouvindo Secos e Molhados, organizando as fotos de dentro da caixa, que também estão grudando. Haja talco!

19h01
O verme passeia na lua cheia...

19h10
Doces Bárbaros, preparando a invasão.

19h11
Tem cantora melhor que a Bethânia???

19h12
Tudo ainda é tal e qual.

19h24
Cachorro tentando comer meu creme hidratante de mãos.

19h32
Indo jantar.

20h40
Seriously. Cabelos brancos ocupando 1/3 da cabeça.

20h45
Soluço de novo. Como faz?

21h00
Indo pro shopping comprar chapéus.

21h50
Seriously. Quem se importa?

sábado, maio 16, 2009

Novembro

O que acorda o teu desejo deve ser a fermentação do álcool no sangue, e por isso prefiro te encontrar quando os teus níveis de sobriedade são completamente duvidosos. Nessa embriaguez nos amamos sem censura até que venha o dia seguinte, com seus raios de manhã e copos d’água incessantes, uma ressaca que tenta apagar esse sentimento vazio de consumação imediata. Um sussuro quase morto de ‘bom dia’, tão estúpido, prazeres sem depois, os preservativos no lixo, até parece com a gente, fingindo dormir por falta de assunto.

domingo, maio 10, 2009

Air France

Se alguém perguntar por mim diz que ando andando pacas, dentro e fora de estações de metrô que nunca estão onde deveriam. Diz que o único problema por aqui é a minha pele, que não suporta frio e que se rasga e se descola das pernas e do rosto. E o meu tênis, que está tentando me matar. Diz que minhas mãos estão morrendo e que meus olhos ficam encolhidinhos quando venta, e que pingo uma porção de colírio que felizmente os fazem arregalar-se nas horas certas. Diz que ando cometendo todos os pecados possíveis: que saltito pela Rive Gauche, que uso boina no Marais e que suspiro nas escadas rolantes do Pompidou. Diz que ando comendo pães por convicção, e bebendo vinhos por precaução. Diz que atravesso a London Bridge escutando The Smiths (até o ipod é clichê) e embarco no Eurostar cantarolando Rolling Stones. Diz que fico com mania de tirar fotos de crianças de bochechas vermelhas nos Jardins de Luxemburgo. Diz que sento nos cafés de Saint Germain e fico com uma vontade louca de escrever alguma coisa, nem que seja qualquer coisa, um postal, um diário, uma página pequenina do caderninho amarelo que divide a bolsa com a câmera. Diz que ando apaixonada pelo Capitão Haddock. Diz que desisti de usar os mapas que comprei ou as lentes de contato, aqui os óculos combinam. Diz que quase choro quando entro na Saint Sulpice e tem missa de domingo. Diz que começo a acreditar de novo nessa fé irracional que me faz acender vela na igreja medieval, que me faz achar graça em fila e nos preços em euros. Diz que até a Beatriz Milhazes passou a fazer sentido pra mim. Se alguém perguntar por mim, diz que piso em poças, atravesso pontes e olho para os canais de Veneza pensando em Charles Aznavour: adieu Pont des Soupirs, adieu rêves perdus*. Diz que encho as malas de máscaras enfeitadas e souvenirs cafonas que vão entulhar ainda mais as estantes. Diz que me desapeguei de revistas e de telefones, e que me divirto tanto sem poder ser encontrada. Diz que pouco importa se não entendo muito do que dizem no filme, e que não quero voltar, não agora, não ainda. Diz também que ando comprando cadernos, muitos, de todas as cores e tamanhos, e que por isso faço planos para escrevê-los, pode ser no meu quarto mesmo, pode ser na esquina da Rue de Rennes, pode ser no terraço de uma casinha branca em Santorini.

* Que c'est triste Venise, na voz de Aznavour.