quarta-feira, setembro 26, 2007

Polyana

Você acha que anda estressada e com muito trabalho e só se dá conta do quanto as coisas podem ser divertidas quando um casal de representantes de tecidos e aviamentos chineses vai até seu escritório e em pouco tempo você já sabe como os dois se conheceram e em menos tempo ainda eles já sabem quem eles vão convidar para a futura casa de Búzios para ensinar a surfar (e aí você se dá conta também do quanto as pessoas se acarioquizam facilmente).

Você acha que não consegue mais ser engraçada e quando menos espera tem alguém ao seu lado gargalhando porque você tenta convencer essa pessoa de que teve mais uma idéia genial que vai ajudar a salvar o mundo, tudo isso porque você não só descobriu como eliminar o mofo de casa como também passou a produzir água em quantidade graças à máquina desumidificadora que acumula de 5 a 10 litros de água proveniente da umidade do ambiente por noite. Sim, por noite, e do dia pra noite muito literalmente você descobre que fabrica água dentro do seu próprio quarto e os seus amigos acham que você faz piada quando diz que vai montar um negócio de venda de água ou que vai fornecer água pro Nordeste (isso antes de chegar na parte megalomaníaca da história quando você começa a traçar uma meta de convencer todos os moradores do Alto Leblon e Alto Jardim Botânico a desumidificarem suas casas e juntos salvarem o planeta e os sedentos).

Você acha que a sua professora de natação é uma cretina que só te elogia quando está prestes a te perder e no fim das contas você conclui que ela é somente carente e usa de clichês pra você não deixa-la, no que ela tem certa razão pois que a turma de quatro reduziu-se drasticamente a apenas você e ao mesmo tempo acha que ela não precisava pegar tão pesado e dizer que como-é-lindo-quando-você-nada-golfinho-,-você-tem-um-alongamento-perfeito, tudo isso porque você ameaçou largar o golfinho para sempre, mas enfim, cada um faz chantagem com o que pode.

Você acha que tornou-se uma pessoa desinteressante quando vai visitar um possível novo fornecedor em sua casa que faz as vezes de showroom e em pouco tempo essa pessoa diz que “vou botar um som” haha você ri meio nervosa porque você não está ali a passeio e a pessoa não é homem e nem sequer lembra a Madonna.

Você acha que está infeliz e no dia em que uma outra fornecedora vai te buscar chique e moderna em seu new beatle e começa a contar da mãe que sofre de um mal e de como ela e o irmão choraram a manhã toda e logo depois ela emenda na história da casa que pegou fogo... você quase chora só por solidariedade.

Você acha que é uma pessoa coerente e incapaz de cometer heresias até o dia em que se vê anotando números de pesquisas de concorrente do mercado de lingerie nas folhas de rosto de um livro de Jean-Paul Sartre.

Você acha que se deixa levar muito por conceitos de moda e até se deprime quando sem querer se pega dizendo coisas como montação ou fashionista ou bafón e então se depara com um ser que combina ankle boot com meia, short, blusa trapézio, corte desconectado bolsa vintage de corrente e óculos à la Curtindo a Vida Adoidado e até se benze de alívio de estar combinando sapatilha e vestido.

Você acha que virou celibatária por sua única e exclusiva incapacidade até que se dá conta de que grande parte da culpa é dos seus amigos e do nível de concentração e foco que você dispensa a eles e somente a eles e talvez a única maneira de remediar o caso seja brigar com algumas dessas pessoas que afinal te roubam de qualquer possibilidade de efetivamente sair com alguém que não eles.

Você acha que é metódica e organizada com certos assuntos até o exato momento em que recebe por email uma planilha da organização dos custos da compra comunitária na Amazon (!) da sua amiga dona do cartão de crédito.

Você acha prozac em tudo!

:: "(...) mas que era preciso sempre começar por enxergar a própria pata, o corpo antes da roupa, uma sentida descoberta antes da comunhão (...) não que eu fosse ingênuo a ponto de lhe exigir coerência, não esperava isso dela, nem arrotava isso de mim, tolos ou safados é que apregoam servir a um único senhor..." Raduan Nassar in Um Copo de Cólera.

domingo, setembro 16, 2007

Pois já vai terminando o verão

Era tão óbvio que não resistiria a ele que pra não fazer desfeita ao acaso obedeceu. E se de primeira não detectou seus encantos, de mais duas ou três olhadas ela cedeu por completo. Ele lhe parecia tão absurdamente adorável que passou batida pelos clichês mais gritantes e percorreu com aguçada voracidade seus atrativos mais lógicos, a franja caída sobre os olhos, os rodopios na pista e um pedaço de sua saia ficava sempre enroscado na perna esquerda dele. E no fim da noite já tanto querendo o convite e num piscar de olhos já era manhã de agosto, já era ressaca de festa e já era um roçar de mãos, um roer de unhas, um cantar Cartola pela tarde adentro. E dançar.

E era tão óbvio que se apaixonaria por ele que sem haver jeito de acontecer o contrário cumpriu distraidamente o papel.

Ele lhe parecia então tão completamente aceitável em todos os detalhes. E era irritantemente encantador com seus galanteios e os sapatos que largava no meio do caminho enquanto ia falando e falando e sempre usava os adjetivos que ela nunca conseguia encaixar e quando então com resquícios de vinho na saliva se esqueciam na rede e ele alisava suas costas e entrelaçavam as mãos num enredamento de corpos até quase. E levados por um gostar. E música. Ele contava as idéias e usava pausas, ela já tanto querendo que ele quisesse também e ele lhe parecia que se movia num ritmo que era o dela também e tinham tantos motivos pra rir que às vezes gargalhavam. Ele tinha todo o charme que ela julgava ser impossível. E inverno, ele tinha cheiro de inverno. E gosto também. E tudo nele lembrava lareira acesa e manta nos pés, fogo crepitando. E lã. E nesse casulo de si mesmos, bêbados um do outro, embalados pelo frio que vinha pela janela e pelo leve balançar da rede, sem sequer saber, se despediam.

Era tão certo que viriam outros com seus outonos, suas flores de primavera e verões ensolarados cheios de suor, era tão óbvio que viriam outros com seus dias amenos e chuvas mansas ou frios piedosos. Era tão óbvio que os outros não fariam diferença que sem haver jeito de ser o contrário guardou a rede até que voltasse a nevar.

quarta-feira, setembro 12, 2007

Réu confesso

É tão fácil fantasiar sobre os mundos desconhecidos que uma vez dentro deles a decepção é quase inevitável. Eu sempre associei um fórum de direito, por exemplo, a pessoas elegantes com suas pastas de couro e ar sério, barulho de saltos ritmados pelos corredores amplos, homens e mulheres com imensos copos de café, réus e acusadores, ou melhor, autores, roendo unhas e sendo orientados aos cochichos por seus advogados e representantes legais vestindo ternos de corte impecável e organização invejável. Eu imaginava termos jurídicos e álibis, testemunhas sendo protegidas por agentes parrudos e trocas de olhares fulminantes entre as partes envolvidas de um processo. Fórum e advogados eram, na minha cabeça de criativo, lugar e seres superiores e intimidadores, tão rebuscados e bem sucedidos que eram praticamente inatingíveis. Era de se desconfiar visto que até hoje nenhum dos pintores que conheço usa boina, eu não tenho no escritório uma mesa-prancheta cheia de lápis Stabilo e certamente os plantonistas do Lourenço Jorge não lembram em nada o Dr Carter.

Poucas horas no fórum do Centro da Cidade são suficientes para nos dar a exata noção do quanto, na prática, a lei mais popular ainda é a de Murphy. Os fatos: a juíza chegou hora e meia atrasada e errou a ata ou o qualquer que seja o nome do papel que os advogados e réu e autor tiveram de assinar ao fim da não-audiência, isso tudo porque a mesma juíza ou talvez o advogado do autor, provavelmente cometeu um erro e a audiência foi remarcada; os corredores amplos são mal iluminados e carecem de cadeiras, que por suas vezes seriam reprovadas em quaisquer testes de ergonomia; os homens e mulheres da lei provavelmente nunca folhearam uma revista de moda e certamente desconhecem a palavra Armani; vendedores ambulantes transitam por toda a parte anunciando mate, refrigerante, sanduíche, o que confere certo clima de botequim/praia ao local; toda essa gente, sob a péssima iluminação, tem as costuras repuxadas de sua indumentária realçadas; não há cochichos, não há testemunhas em perigo, não há nada que lembre nem de longe todo o clima hollywoodiano e não há pessoa que possa me convencer de que advocacia e felicidade possam ser conjugados juntos, ao menos não dentro daquele prédio uó. Essas poucas horas desmistificaram por completo toda a imagem que eu tinha do povo do direito e as qualidades heróicas e arrogantes (arrogantes chic, que fique claro) que eu achava que essa gente de terno tinha caíram por terra. Até mesmo a linguagem complexa e atraente me soou apenas complicada e até agora eu não entendi porque a tal da audiência foi adiada. Eu saí do fórum dando suspiros de decepção e chateada com tanta realidade, voltei pro meu mundinho parte satisfeita de não ser um deles e parte revoltada por não ter visto sequer um tailleur decente. A única ponta de inveja é dos salários que eu sei que nunca vou ganhar. Nada que uma promoção de calças risca de giz da Zara não cure.

segunda-feira, setembro 03, 2007

It's been a hard day's night

Eu estava nadando peito, a aula tinha começado há cerca de 3 minutos e enquanto ia pra lá e pra cá a minha cabeça só conseguia pensar nas peças que a fábrica deveria entregar naquela semana. Eu estava preocupada também com as blusas dos uniformes das vendedoras das lojas que tinham que ficar prontas tão rápido quanto eu chegava do outro lado da piscina. Normal, pensei, tive um dia estressante mas tenho ainda 37 minutos de aula pra me concentrar nas bolhinhas e ladrilhos.

Nessa mesma semana eu sonhei com lingeries algumas vezes. Achei pertinente visto que trabalho cercada delas o dia todo e minha ocupação é justamente fazê-las.

Mas alguma coisa bateu quando eu disquei o número do Samuel sem olhar na agenda. Samuel não é meu namorado, não é meu pai, não é um pretendente a caso amoroso, não é meu amigo e nem mesmo meu cabeleireiro. Samuel é o representante da indústria de tecidos de quem geralmente compro sedas que futuramente viram camisolas e robes. Quando eu descobri que sabia o telefone do Samuel de cór fiquei meio deprê. Eu já sabia mais uns oito números de telefone de cór, alguns com ddd e mais ou menos todos relacionados a trabalho.

Não que o Samuel seja um chato ou coisa assim, tudo o que sei dele é que ele tem sempre que verificar o estoque antes de me dar uma resposta (o que julgo ser muito prudente) e que ele nunca atende o telefone de primeira, o que certamente colabora para a fixação do número na minha mente.

Eu fiquei um pouco frustrada por ver o quanto que essas coisas que a gente não ama acabam nos consumindo. De repente eu virei uma daquelas pessoas que nadam porque faz bem pras costas, que não vão tomar um chope depois do trabalho porque precisam acordar cedo no dia seguinte, que usam creme hidratante com protetor solar no rosto e combinam a calcinha com o sutiã.

Eu fiquei quase histérica quando me dei conta disso tudo porque entendi que virei uma chatonilda. E em vez de:
a) largar tudo e fazer o que realmente gosta
b) fingir afogamento na piscina e ter esse trauma como álibi pro resto da vida
c) ligar pra analista
d) queimar lingerie em passeatas,
eu adotei uma medida drástica e definitiva. Quando eu decorar o telefone do químico que nos fornece o sabonete líquido antibactericida com aroma exclusivo eu peço demissão.

:: "Foi bom te ter mais uma vez / Poder te abandonar / E dar por finda a mágoa / Desse mal amar"