sábado, dezembro 25, 2010

Neve, Paris, Rue de Rennes e outras obs.




(voume 1 aqui)

À frente dos ônibus e sob olhares incrédulos, abandonamos o barco. Não hasteamos bandeira, mas a ocasião era épica o suficiente. Tomás, Lilia, Jerome e eu agora só podíamos contar uns com os outros. Não tínhamos mais qualquer apoio ou informação dos funcionários da Air France, o que, a bem da verdade, não fazia qualquer diferença nesse momento.

Uma vez traçado o plano, nos apresentamos formalmente. Eu não descobri tanto da minha pequena infantaria quanto do surfista húngaro que mora na Tijuca. De fato, pouco ficou de cada um: Jerome é um francês de Fontainebleau que casou-se com uma brasileira. Chegou ao Rio em 1997, abriu um escritório de design, divorciou-se, casou-se de novo e agora já contabiliza 10 funcionários em seu negócio. Gosta de aipim, mora em Botafogo e usa o metrô para o trabalho. Tem cabelo liso e castanho, mas não o reconheceria nem mesmo se ele estivesse exposto numa vitrine do Louvre. Tomás tem 24 anos, sua mãe é psicóloga e aparentemente me conhece pois teceu comentários a meu respeito ainda no aeroporto do Rio, sua mãe certamente foi casada com um francês, com quem teve Tomás e que nos avisou sobre a possibilidade das estradas estarem caóticas. Tomás passou um perrengue de ônibus na Colômbia, este é o adendo mais pessoal que posso informar a respeito do líder. Lilia ainda é um mistério: seu marido passa uma temporada em Paris a trabalho, mais precisamente em La Défense. Lilia não fala francês. Aprendeu Espanhol durante uma temporada em que o marido passou em Buenos Aires, a trabalho. Depois de Paris, Lilia vai encarar a Austrália. Além de andante, Lilia é baixinha e vestia preto da cabeça aos pés, e não arrisco mais palpites.

Não, essas coisas todas não foram ditas na apresentação. Foram descobertas ao longo do caminho que nos levou à gare de Nantes, onde também descobrimos coisas sobre um norueguês que mora no Rio há 13 anos e que ainda não tinha entrado na quadrilha. Ele foi nosso quinto elemento no trajeto de ônibus. Nos contou sobre seu barco, sobre sua mulher brasileira, sobre a Petrobras e o Pré-Sal. Eu não teria tanta criatividade pra imaginar um diálogo sobre o Pré-Sal em Nantes com um norueguês. O surfista húngaro que mora na Tijuca já havia contribuído de forma significativa pro inusitado da história.

Nos despedimos do norueguês ao avistarmos a Gare. Em menos de cinco minutos possuíamos bilhetes de um TGV que nos levaria à Gare de Montparnasse, em Paris. A essa altura eu já sabia que o Charles de Gaulle e Heathrow continuavam fechados, e acreditava que tudo se resolveria uma vez que: eu chegasse a Montparnasse, pegasse um taxi, adentrasse o 83 da Rue de Rennes, tomasse um banho, gargalhasse por uma noite e no dia seguinte entrasse no Eurostar com destino a London London, a Camden, a Kensington e à Guinness. Bollocks. O Eurostar não funcionava há dois dias.

Eu fiquei pensando se as pessoas que moram na Sibéria enfrentam esse tipo de coisa. Será que elas estocam provisões e não saem de casa até que passe o inverno? E em Moscow? E em Seattle? E em todo o resto do mundo onde a neve cai em dezembro? Será que essas pessoas tem uma Nantes para chamarem de suas? “Desolée” fazia sentido e me descrevia com exatidão.

Nos separamos no trem, somente Jerome e eu ficamos no mesmo carro, o que explica o fato de eu saber mais coisas a respeito da vida dele. Mas a conversa não foi pra frente: Jerome disse que eu parecia a filha do Chico Buarque e eu achei melhor fingir que estava dormindo. Nos meus sonhos, Tomás, Lilia, Jerome e eu nos abraçávamos emocionados ao chegar à Gare Montparnasse, trocávamos e-mails e promessas de um bom croissant matinal na Rive Gauche e nunca mais nos víamos, na melhor das hipóteses nos adicionávamos no Facebook. Bollocks de novo.

Um trem nunca foi tão revolucionário quanto naquele momento: em duas horas e meia estávamos em Paris. Em Montparnasse. Em duas horas e quarenta e cinco minutos eu estava no 83 da Rue de Rennes. Em três horas e meia eu estava na H&M da Rue de Rennes. 5 dias depois, eu continuo na Rue de Rennes. Chegar a Londres mostrou-se inviável, primeiro por causa do aeroporto, segundo por causa do Eurostar, terceiro por incompatibilidade de agendas. Foto segurando a Tour Eiffel em Trocadéro também se provou complicado.

Eu ando por aqui entrando em cafés a cada quarteirão, não porque procuro discos voadores, a Lilia ou o surfista húngaro que mora na Tijuca. Cada pausa nos cafés é pra que as mãos voltem a funcionar. Neva em Paris. Os telhados e carros estão cobertos por camadas brancas de gelo. Os jardins do Palais Royal continuam em obra, já faz mais de um ano e meio. O metrô continua cheio, fétido e assustador, porém apaixonante. Paris deve ser um deslumbre até cinza, infelizmente não disponho de habilidade pra tirar os dedos de dentro da luva e bater fotos ao mesmo tempo que seguro guarda-chuva e acerto o foco, tampouco disponho de coragem pra flanar pelas ruas, desde que cheguei aqui ainda não vi o Sena. Substituí a Guinness por vinho, Kensington pela Rive Gauche, só Camden ainda não parece resolvido. Cissa parece um pouco inconformada. Eu também.

No fim das contas, na manhã de Natal, o sol apareceu. Apresso o fim desse capítulo para correr até a margem, tirar boina, cachecol, luvas e acionar o timer da câmera. É a quinta vez que estou aqui e não tenho sequer uma foto com a Notre Dame ao fundo. Tem uma música também do Morrissey que não me sai da cabeça: I’m throwing my arms around Paris. C’est La vie!

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Neve, Nantes, o surfista hungaro e outras obs


À minha frente a pequena tela da TV individual oferecida pela Air France exibia o itinerário do vôo, a temperatura externa, a previsão de chegada ao destino, o restante a ser percorrido: 45 minutos. Todos nós, ligeiramente amassados, nos inquietamos um pouco em nossas insuficientes cadeiras da classe econômica. Meu vizinho, que passara o vôo todo dormindo sem nem sequer levantar para fazer xixi, pareceu despertar com a ansiedade de pousar em Paris e seguir até a China, seu país natal. Os brasileiros sentados na fila detrás estavam maravilhados com a possibilidade de ficarem horas no Trocadéro até que a foto saísse perfeita: mãe amparando a Tour Eiffel de um lado, filha do outro.

Eu sonhava com o todo o curry que Londres me reservava. Com Kebabs. Com Camdem Town e todas as camisetas que eu compraria. Com o momento mágico em que eu sairia à superfície e veria as luzes de Picadilly Circus. Com Kensington: eu sonhava com Kensington e com um pint de Guinness.

Eis que então o comandante anuncia que a neve nos impedia de seguir adiante, e que faríamos um pouso em Nantes para aguardar as novidades do Charles de Gaulle. Meu vizinho só entendeu quando o comunicado foi traduzido pro inglês, sorriu amarelo pra mim e aproveitou pra cochilar mais um pouco. Uma vez que o avião estava em terra firme e que comissários e comissárias não sabiam nada além de que a temperatura externa era de 12 graus, resolvi eu também dormir. E dormimos todos, por horas e horas até que o comandante anunciou que o Charles de Gaulle estava pronto para nos receber e que seguiríamos viagem. Comecei a ficar tensa aí: Nantes e a neve me fariam perder a conexão pra Londres. Eu podia vislumbrar minha mala rodando sozinha na esteira de Heathrow. A Cissa telefonando pro aeroporto pra saber se o vôo estava dentro do horário previsto. 

Oh God.

Eu nunca cheguei a Londres. Durante as quase 48 horas que demoraram pra que eu chegasse a Paris, três versos do Morrissey ficaram ecoando na minha cabeça: “and still we say / come back, come back to Camden / and I’ll be good”. Eu dizia calma, estou indo. Mas não estava.

Saímos do avião, buscamos as malas na esteira em Nantes, entramos num ônibus que nos levou a um hotel próximo ao aeroporto. Sim, viramos primeira pessoa do plural quando o comandante, logo após termos apertado os cintos para a decolagem, anunciou que estava “desolé” e que não poderíamos ir a Paris. Os franceses adoram dizer que estão desolés. Acho que é parte da cultura deles, algo como “vamos tomar um chope um dia desses?”

E foi no ônibus que o surfista húngaro entrou na história. Ele perguntou se eu falava inglês e começou uma conversa de amenidades que logo ficou bastante chata, mas àquela altura eu já tinha fugido de uma brasileira chatérrima, do meu vizinho chinês e não podia me dar ao luxo de desperdiçar companhia. O surfista húngaro era louro e parecia saído do Surf Adventures, ou do catálogo da Redley, ou sei, lá, da Califórnia, menos da Hungria. No trajeto do aeroporto até o hotel, uma parte da vida do surfista híngaro se revelou: casara-se com uma brasileira que trabalha no Leblon, na Oi, sabe? Dividia seu tempo entre surfe e kitesurfe, na Barra, perto do Pepe, eventualmente no posto 4, porém lá as pessoas não eram tão bacanas. Morara 4 anos em Dublin, para onde retornava agora pra um curto período de férias e natal, e antes disso vivera em Estocolmo. Habitava, agora, a Tijuca, porém anunciou que se mudaria para o Recreio com a mulher. Eu mal tive tempo de desejar boa sorte à mulher no trânsito e o surfista húngaro que mora na Tijuca começou a contar que vai começar a trabalhar na H Stern e que portanto terá menos tempo para surfar e kitesurfar. Não me atrevi a pensar que ele era chato, não nesse momento.

Dia seguinte, café da manhã às 4h, partida pro aeroporto em comboio às 4h30. Na fila do check in o surfista húngaro que mora na Tijuca veio perguntar se eu havia dormido bem, eu disse que sim, me arrependi de te-lo julgado mal e encarei uma hora e meia na fila. Passei pelo raio-x e vi um tumulto no portão de embarque. Ao pedir informação pro mocinho da Air France, o mesmo orientou que eu buscasse minha mala. Eu disse que acabara de deixar a mala no check in, ele disse que eu pegasse a mala e eu achei que não estava mais entendendo a língua local quando ele informou que o vôo havia sido cancelado, e eu perguntei de novo?? E ele disse “desolé” e era mais do que nítido que ele não estava desolé, en fait, ele não poderia se importar menos com o fato de que Camden, Kensington e Guinness ficavam vez mais distantes.

Pegamos as malas de novo, eu, o vizinho chinês, a brasileira chatérrima, o surfista húngaro que mora na Tijuca e dessa vez fomos informados que a Air France nos levaria de ônibus para o aeroporto de Paris. A previsão era de seis horas de viagem. Todos nos aglomerávamos em frente aos ônibus que esperavam do lado de fora, pessoas acenavam tickets para os motoristas, malas eram forçadas para dentro dos bagageiros e nessa hora tudo parecia um filme onde as pessoas precisavam fugir da guerra e só restavam aqueles ônibus. Até o surfista húngaro que mora na Tijuca virou um bárbaro (ou um viking?) e deu as costas a mim e a todos, garantindo o lugar da sua mala sem se importar com os exilados à sua volta.

Uma vez instalados no ônibus, prontos para a partida, eis que um novo e salvador personagem entra na história. Tomás anuncia que está “desolé” e que não partirá no ônibus conosco, que seu pai informara de Paris que as estradas estavam cheias de neve e que a viagem demoraria no mínimo 9 horas, e que Tomás, que realmente devia estar desolé e não fez uso da palavra à toa, pegasse um trem imediatamente. Um burburinho se forma ao redor de Tomás e eu vou atrás averiguar. Em 10 minutos ficamos reduzidos a um grupo de quatro: e assim, liderados por Tomás, Lilia, Jerome e eu desertamos.  

(a seguir cenas do proximo capitulo: Neve, Nantes, Rue de Rennes e outras obs)

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Diálogos com um sobrinho - vol. 2

Eu achei que teria várias conversas com você, neném, que te contaria desde os primeiros minutos muito sobre a sua mãe, sobre seus avós, sobre como era a praia quando tinha tatuís, sobre as músicas trágicas da infância, sobre ter uma fraldinha preferida que dura até quase os 10 anos. Eu achei que engataria com você um falatório desenfreado em que te mostraria os nomes das cores, as formas dos círculos e que te chacoalharia uma sorte de bichinhos em meio a uma explicação sobre as qualidades de cada um. Eu achei que te leria histórias do meu tempo de criança, mesmo que você ainda não entendesse nada. Achei que teceria com você diálogos e monólogos pra lá de divertidos, cheios de risinhos e interpretações, e que com o passar dos anos você ia pedir sempre pra eu imitar fulano ou beltrano. Achei que eu ia caprichar nas vozes e trejeitos, melhorar o vocabulário e pesquisar novas palavras pra te segurar todas as atenções. Eu não contava, neném, que diante de tanta bochecha e milagre eu ia ficar assim completamente débil, entregue e babona. Um dia eu quero que você saiba como é esse amor grande e impensável. Quando você souber como sentir, não vai querer outra vida.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

O outro vizinho

Era britânico o ruído que vinha do apartamento de cima: entre a segunda e a terceira garfada, mais precisamente, porque era igualmente pontual o meu almoço e calculada a minha fome naqueles dias de tédio. Entrei numa rotina insípida que causava bocejos a quem eu contasse, até que o barulho do 201 me tirou da inércia. Não pense em romances, novelas, ação ou novidades. Imagine que o vizinho de cima trouxe de volta aos meus dias uma cisma comparável à que eu tinha com o porteiro da noite, que deixou de ser alvo das minhas especulações no momento em que enterrei minha vida social. De lá pra cá, quase nada foi alvo de tanto fascínio e incompreensão quanto o vizinho do 201.

Começou como uma curiosidade: me apeguei às marteladas sincopadas do 201. Dia após dia, refeição após refeição, lá vinha o barulho de um martelo esmurrando pregos. Sutil, impossível de ignorar, porém. Batidas leves, empurrões suaves, diários, e mesmo nos fins de semana. De segunda a sábado, pra ser mais precisa, era possível saber que já passava do meio-dia quando o vizinho começava a agir. Empilharam-se semanas até que decidi perguntar pra minha mãe: é, é verdade, já percebi sim, ela afirmou. Mas sua intriga era até blasé perto da minha, que foi acentuada no dia em que a furadeira entrou em ação. Parecia um ritual: eu me sentava à mesa, decidia entre o suco ou o refrigerante e o motor dava início a orifícios que eu só podia imaginar.

Eu vislumbrava verdadeiras galerias de arte no 201, ou uma bela oficina de marcenaria com pequenas colinas de serragem encostadas às paredes. Sonhava, ainda, que ali poderiam se construir barcos, carrinhos de rolimã, charretes ou qualquer outro meio de transporte improvável. Arcas, quem sabe. Então a cada vez que o suposto homem ligava a máquina pra organizar supostas exposições eu perguntava à minha mãe o que ela achava que poderia ser, e no quinto dia ela sugeriu que poderia ser que eu precisasse arranjar um emprego.

Então eu arranjei, mas era em casa, e os barulhos e ofícios do vizinho do 201 não me largaram. Eu disfarçava a minha obsessão perto da minha mãe, eu não queria causar preocupações pois ela ainda sugeriu que eu arranjasse outras coisas além de emprego: namorado, assunto, amigos e principalmente psicanálise. Cheguei a pegar as escadas algumas vezes, mas ficava empacada entre o primeiro e o segundo andar, me achava mais ridícula que uma carta de amor, voltava, punha fones de ouvido. Mudei o horário do almoço só pra poder ouvir com mais precisão e calma os furos e marteladas, só para tentar adivinhar os detalhes.

Alguma coisa na minha fisionomia denunciou que eu andava com o sono desordenado. Eu sonhava com martelos que batiam na minha testa, com pregos que escancaravam meu cérebro, acordava com enxaqueca só de lembrar. Um dia minha mãe me convidou pra almoçar fora. Eu inventei acúmulo de trabalho. Ela insistiu outras vezes, e finalmente percebeu. Providenciou uma caixa de ansiolítico e inspecionou minha boca como fazem nos sanatórios dos filmes. Tomada a medicação, dormi por dias a fio. Eu estava descompensada.

Acordei de um pesadelo: minha casa era invadida por uma horda de senhores de macacão, bigode e furadeiras, eles lutavam pra esburacar todas as paredes e ligavam suas máquinas na máxima potência e por fim o prédio ruía. Senti minha testa molhada, parecia um delírio. Vi o bilhete de minha mãe dizendo que tinha ido ao mercado. Vi o cão estirado no chão, barriga pra cima, vem chegando o verão. Eu não agüentaria um janeiro inteiro de martelos misteriosos, eu não poderia ficar em paz enquanto não descobrisse o que fazia o vizinho do 201. Abri a porta de casa e o elevador aberto me esperava. Um andar. Apenas alguns segundos. Uma respiração. Um toque na campainha. Um tempo que não sei calcular. Nenhuma resposta. Toquei de novo e de novo e de novo. O relógio marcava 13h04. Nenhum som vinha do apartamento, nenhum prego, nenhum martelo, nenhuma furadeira, absolutamente nada, nenhum ruído, e posso jurar que o blim-blom do convite imposto fazia eco. 13h17. Às 14h eu voltei pra casa, minha mãe me recebeu espantada e preocupada com meu sumiço e eu contei. Contei que tinha ido ao vizinho, que precisava saber, que ia mesmo pedir pra entrar em sua casa e quando estava prestes a chorar de desespero ela pegou minhas mãos e disse: você precisa ser forte. Foi assim que soube que o vizinho do 201 não morava mais lá.

quinta-feira, novembro 18, 2010

Esta noite sonhei com um verso de Sophia. Sonhei que o tinha escrito eu. Fiquei tão feliz que continuei a sorrir mesmo depois de acordar. 'O senhor professor parece que viu Deus em toda a sua glória. Ter sido Sophia durante alguns segundos não anda muito longe, parece-me, da glória de ver Deus.'

José Eduardo Agualusa em Milagrário Pessoal, páginas 19 e 20.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Domingo no Parque

Brotam flores das cabeças nesse domingo, estamos no Parque sob uma árvore, tomando notas mentais, alheios às milhares de lagartas que nos olham por entre os galhos e folhas, possivelmente atropelando formigas. Tudo derrete lá fora, desde o sol até as solas emborrachadas dos nossos sapatos de verão, as saias rodadas das moças e as vozes encolhidas nas sombras. Dedos no botão de disparo, frames ensaiados antes de começar um balé. Ainda existe centopéia? Onde? Alguns vaga-lumes dançam à noite na minha sala, para espanto do cão e de todas as crianças que ainda vão chegar. As pessoas aguardam num círculo, um homem de meia-idade parece dormir recostado num tronco, uma toalha cretinamente xadrez cobre parte do chão, provavelmente atropelando formigas também. Não tem sorvete nem rosa nem roda-gigante nem faca. Em vez de amor, cobiçamos alguns doces e espumas cor de champanhe. Tudo parece tão surreal que se a era de aquário despencar sobre nossas cabeças talvez a gente entenda e aprecie toda a performance que se desenrola diante de nossos olhos. Agora além de flores brotam espessas gotas de suor de nossas têmporas, jorra água do chafariz e percebemos como o verão é cruel em nos fazer sair mais cedo. É mais fácil gostar das coisas no inverno. Saímos do Parque sem conseguir enxugar da testa toda a incompreensão, com a triste lembrança de que em vez de voar ou nos enfeitiçar com seus passos de dança, a bailarina, coitada, desabou no chão.

terça-feira, novembro 09, 2010

Migrações


(para cinco ou seis pessoas que me ensinaram a dançar)

É uma coleção de adeus temporários, desconfiança e temor de que um dia seja definitivo, piruetas cada vez mais sem eixo, desequilíbrios, braços que se atrapalham no ar. Há muito que deixamos de escrever nomes e inventar pessoas com os pés, nos últimos anos a gente substituiu a enorme seqüência de saltos por alongamento, xingou todas as gerações passadas e futuras tentando melhorar o posterior de coxa e carimbou os cotovelos de roxos e rolamentos quase senis.

Ficamos velhos. Não aquela velhice dos anos que passam, não aquela cronologia lógica do tempo, mas outra, ferrugens que se alocam nas engrenagens mais especiais, as que faziam minhas pernas parecerem infinitas, as que faziam minhas mãos parecerem sublimes. Ficamos tontos. Giros toda terça e quinta, ensaios e contagens confusos, poesia pra delinear o espaço, frases tão bobas que nos faziam dançar: sopros, setas, músicas, fechar de olhos, pausas, qualquer estímulo, no fim aquele sofá, uma lata de coca-cola gelada ou outra contravenção.

Ficamos tão distantes... Ceará, São Conrado, Barra da Tijuca, Copacabana, NY, até a Gávea agora parece um país para o qual não tenho visto ou passaporte. Não sei me entender sem as pedras, sem uma ou duas faixas arranhadas daquele disco, sem o chão que de repente deixou de escorregar, sem os tapetes que protegem o cóccix.

Ficamos tão magros, criamos joanetes, eu tirei os óculos e agora nem sei onde te procurar. Ficamos abandonados de todas as coisas que eram nossas e agora parece que falta gente pra entender minhas piadas. Falta gente pra você? Te faltam descontroles?

É uma sucessão de lutos. Eu nunca quis todos os recomeços que busquei, eu encontrei o lugar onde queria estar desde muito cedo, segui porque foi tão fácil encontrar casa em outras vozes e deslocamentos, tão natural e confortável, sempre obedecendo as ordens que eram dadas depois do tchau: continua. Sempre a mesma recomendação dada em tons semelhantes de fascínio. “Não pare” mais uma vez. Mas foi ficando tão mais complicado, as possibilidades foram se esgotando, os intervalos se alargando e quando me vi tão suada e só, tão sem todos, eu parei.

terça-feira, novembro 02, 2010

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Eu não gostava de ler biografias, na verdade sempre as abandonava às metades e montava torcida secreta e solitária pro biografado morrer logo, por que é que essa gente precisa amar tanto assim, eu perguntava, e com essas justificativas eu podia vislumbrar todo o falatório que eu poderia ter com o sujeito de óculos e casaco verde que se aproximou pra conversar, mas não, me desculpe, eu não socializo em livrarias, não com 3 livros no colo, costas curvadas pra frente, banco de madeira e o Jimmy Page sem ter ainda idéia de quem era Robert Plant.
Pouco depois ela disse que eu estava ranzinza e velha, e eu estava mesmo e além disso estava também sonolenta, alérgica, chata, sem assunto e com uma quantidade inaceitável de cabelos brancos, vibrando com a descoberta de uma prateleira intitulada “autores lusófonos” e indisposta a qualquer tipo de abordagem, fosse do sujeito de óculos e casaco verde ou do vendedor me oferecendo ajuda, o que ali, naquele lugar, nunca acontece, ufa. Eu poderia ter concordado quando ele disse que ficava sempre à espreita pra ocupar uma das poltronas caso elas se esvaziassem, mas o achei bobo por pensar que alguém seria generoso assim, dei um risinho condescendente, peguei os livros, fui ao caixa, deixei dois pelo caminho e voltei pra casa com uma certa dose de som e fúria.
Ela disse que eu poderia ter sido menos ríspida, eu disse que não fui ríspida, ela insistiu que sim, eu respondi que ela nem estava lá pra ver e que as pessoas que iniciam conversas com desconhecidos devem saber, ou ao menos aceitar, que tem gente assim feito eu: ríspida.
Bandeira branca pra ela, eu não estava em condições de discutir, eu não tinha argumentos pra nada, eu não tinha mais nada além de uma preguiça e de uma apatia que eu não sabia como vencer, pior, que eu não queria vencer. Ela disse que também andava assim, e combinamos jantar pra resmungar juntas e maldizer todas as pessoas felizes de batom e visão política, salto e óculos e casaco verde, será que todo mundo que trabalha demais fica chato assim como nós? Será que todo mundo que tem o coração quebrado recorre a “autores lusófonos”?
Eu tomei muito gin tônica aquela noite, até o meu drink parecia ultrapassado e demodê, eu sentia calor e minhas bochechas ficaram rosadas no primeiro gole, eu dormi atravessada na cama sem nem um lençol, esqueci de mandar uma mensagem pra ela avisando que tinha chegado bem e ela esqueceu também, cheia de ice-tea no sangue, e acordei vomitando tanto que resolvi dar um mergulho no mar.
Naquele dia o sol não durou muito, eu encontrei três pessoas na praia e inventei outras duas que não eram reais. Naquele dia eu fui ao cinema e depois conheci um novo Baixo, conversei bobagens com amigos que há muito não via, bebi moderadamente e respondi a tantas perguntas que fiquei besta de ver. Naquele dia as pessoas queriam saber se eu tinha gostado daquele balé (não), porque eu continuava de óculos ( ), como estava o Roberto (eu não sabia, mas eu estava com saudades do Roberto), quando a Cissa ia embora (e eu não queria pensar ainda que a Cissa ia embora), onde eu andava saindo (em casa), se eu gostava do Mia Couto (coração) e o que eu estava lendo (autores lusófonos).
Aquele dia me deu vontade de voltar a escrever, de encontrar as pessoas, de, quem sabe, voltar à livraria e responder com mais boa vontade as possíveis perguntas do sujeito de óculos e casaco verde e de repente saber o que ele gostava de folhear por lá. Naquele dia eu percebi que as coisas continuavam boas, era eu que tinha desaprendido de gostar. Naquele dia derrubei todas as paredes flácidas que eu tinha erguido, dancei e gargalhei como se ouvisse música, comi feijão com arroz como se fosse o máximo.

domingo, outubro 03, 2010

Tem mais presença em mim o que me falta.

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Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.


Manoel de Barros, O Livro Sobre Nada, 3a parte.

segunda-feira, setembro 27, 2010

Sent Mail

De: Julieta
Para: undisclosed recipient
Assunto: Speaking words of wisdom
Data: 27 de outubro de 2010

Segunda-feira eu acordei resoluta de duas coisas: a primeira é que tinha que pintar o cabelo, não podia mais postergar o fato. A segunda é que o cabelo teria que ficar pra terça-feira pois à noite ia ao cinema ver o documentário "O Último sonho de Pina Baucsh", dentro da programação do Festival do Rio.

Pois bem. Chequei os emails de trabalho, respondi as urgências, organizei as finanças do mês e fiquei com a respiração suspensa quando li que o Morumbi reservou os dias 21 e 22 de novembro para Sir Paul McCartney. Quem mandou o link foi a Ritinha, e imediatamente trocamos 345 emails histéricos ponderando que o sobrinho não poderia, em hipótese alguma, nascer antes do tempo. A Ritinha tinha outras preocupações de cunho mais, espiritual, digamos, e toda uma logística de que os dois melhores Beatles se foram. Eu sempre fui mais fã do Paul, acho que meu segundo Beatle era o George. Tenho quase certeza de que só a minha mãe era fanática pelo Ringo. Anyway. Beatles, "Qual estilista brasileiro você é", "Quem é você em Sex and The City", "Qual David Bowie você é", o Facebook foi certeiro em todos esses testes, acho que só errou ao afirmar que eu era o Karev de Grey’s Anatomy.

Mas voltando ao X da questão: Paul em São Paulo, sobrinho nascendo no Rio e eu fiquei desesperada tentando encontrar uma solução para conseguir estar presente no parto e no show do Paul. Tudo pode dar certo se o sobrinho nascer de fato dia 23, como diz o médico, mas gente, vocês sabem como funcionam essas coisas.

Passei o dia nervosíssima, tomei um banho no fim da tarde e fui pro cinema esbaforida, coloquei o ipod no máximo e cantei Band on the Run me imaginando no meio do Morumbi com o Deus à frente. Chegando na bilheteria, não encontrei minha carteira na bolsa. Oh God, pensei, é a segunda vez que perco a carteira esse mês. Por sorte eu tinha o código de compra anotado num caderninho e consegui o ingresso. Entrei na sala, o cinema estava vazio, sentei na melhor poltrona (o Marcelo certamente aprovaria minha escolha) e re-la-xei.

Veio um mocinho avisar que a sessão atrasaria cinco minutos, eu olhei ao redor e achei o público da Pina Bausch bem esquisito e logo em seguida as luzes se apagaram. As cenas que se seguiram na tela me espantaram: Roman Polanski dando uma entrevista a um repórter que queria saber do interesse dele por mulheres mais jovens. Eu, que não freqüento festivais, pensei que os documentários estão ficando cada vez mais enigmáticos. Os depoimentos de advogados e juízes começaram a aparecer e eu ainda pensei, sei lá, vai que o último sonho de Pina Bausch era inocentar o Polanski. Ha ha, claro que eu não pensei nisso.

Peguei o ingresso, fiz lanterninha com o celular dentro da bolsa e li: “O Último sonho de Pina Bausch” dia 4 de outubro. Como eu já estava ali, fiquei até o fim controlando o riso. Eu me diverti sozinha pensando na minha trapalhada.

Entrei em casa, o telefone tocou e era meu pai. Contei pra ele a patetice do dia. A história melhora aqui: ele contou que comprou ingresso pra ver Brad Mehldau no Municipal sábado, e lá foi. Subiu as escadas do Theatro e esticou o braço com o ingresso na direção do mocinho que olhou pra ele e disse “senhor, esse show é sábado que vem”. Ele voltou pra casa também divertido. Concluímos que só pode ser genético.

Em tempos de confusão mental, minha gente, o conselho é de Sir James Paul McCartney: Let it be.

sábado, setembro 18, 2010

Carta a T.

Chouchou,

Não é bem uma carta que te escrevo, e sim um apanhado geral das coisas que fui anotando e que deveriam ser desenvolvidas e endereçadas a você. Como você perceberá, não desenvolvi tanto quanto gostaria. É assunto demais. A gente não pode viver em cidades separadas, começo a me afogar em ideias que ficam sem escapatória. Enfim. Voilà.

“Como esquecer” dizem alguns anúncios espalhados pela cidade, tipografia branca sobre fundo preto, e aguardamos ansiosos o que vem pela frente e faço essa comparação meio ridícula de que tem gente que poderia ser classificada como um teaser que não deu certo.

Será que é normal colecionar frases do Hortifruti e morrer de rir delas toda vez que a banca da esquina se renova? Tenho colecionado palavras também, invento enormes frases só para encaixa-las e tudo vira ficção apenas pra que “contágio” ou “escandalizar” entrem na página, mas não entram porque empaco no caminho e não conto história nenhuma. Inauguro, ainda, um novo caderninho onde anoto as frases que mais gosto dos meus amigos: “domingo eu sou apaixonada por ele”, ela disse, contrariando toda a lição de vida que o Robert Smith nos ensinou durante anos de pista de dança. Sempre preferi “Just Like Heaven”. Fico vidrada quando ele começa a cantar. Numa festa imaginária, “Just Like Heaven” só pode vir antes de “This Charming Man”. Será que existe mais alguém no mundo que entenda essa lógica?

Ando misantropa até o último fio de cabelo (Carol então, nem sei!), segregando pessoas, dizendo não ao telefone, preferindo comer no meu restaurante preferido sem alguém que me conte como foi seu dia. Seriously: não poderia me interessar menos por terceiros nesse momento. Hoje era sábado, manhã e chuva quando entrei numa antiga loja de discos e só dei papo pro proprietário, que instaurou uma bela trilha sonora pro meu fim de semana sozinho. Folheei livros, CDs e cantei baixinho enquanto saboreei o fato de poder fazer tudo com calma, lentidão e sono. É incrível, e tudo o que ando desejando. Abro exceções, porém, combino um cinema e mando uma mensagem pra Bruna dizendo que eu sou inteira. Ela responde que ainda bem! e eu fico dias e horas pensando se a afirmação procede, e depende. Terças e quintas à noite eu sou tão inteira que me assusto. Sexta à tarde eu nunca sei onde estou, quiçá do que se compõem meus ossos e fibras, parece que tudo se esfarela e vira pó.

Sobre as outras coisas: com ele não posso mais, mas também não posso mais esse não poder mais. Tento ser outra pessoa pra poder ser eu quando era com ele de novo, ou pra ensaiar resgate e reinvenção, pra parar de doer, mas nada tem funcionado tanto quanto dormir. A tua lista de coisas que mudaram tua vida não me sai da cabeça, e inventario as coisas que mudaram a minha, esbarro em classificações e quando percebo estou listando categorias: filmes que mudaram minha vida, viagens, cremes de cabelo, sobremesas, estradas, ressacas, percebe como as ressacas, em sua maioria, são agentes transformadores? Essa memória seletiva que a vodca nos traz, a obrigação de esmiuçar ou a chance de esquecer por completo. Tem um sapato que mudou a minha vida, mesmo que poucas semanas depois ela tenha voltado a ficar bem igual ao que era antes. Vale? Acho que a maioria das mudanças é temporária. Ou nós é que somos.

As pessoas te olham torto quando você canta ou fala sozinha no supermercado? Você canta ou fala sozinha no supermercado? Você também tem uma vontade incontrolável de enfiar a mão no cabelo da Mayana Moura pra ter certeza de que aquilo é cabelo de verdade e não um monte de fios de plástico? Será possível todo aquele brilho, e toda aquela simetria? Outro dia ela brigou com a Carolina Dieckman na novela e ao fim estava impecável. Ando intrigada com essas coisas, tipo o cabelo da Mayana Moura, o guarda-sol do Índio da Costa, os tênis da Nike. Desconexões. Bem. Não pense que estou triste, desesperada ou submersa. Ando apática sim. Daqui a pouco passa e se não passar logo, bem, we’ll always have Jardins.

um beijo enorme!

domingo, agosto 29, 2010

Avenida das Américas

Dele não me basta falar: é preciso que se viva ainda alguma coisa, mesmo que agonizante, é necessário ainda escavar os peitos, todos os nossos quando se abraçam de frente, tecer enganos, tomar de novo nota das tuas palavras tão desmedidas que me faziam emigrar. É vital que ainda te escute cantar um dia, ao volante, perfil em riste, invadir tua camisa de botão, te abocanhar no sinal fechado.

segunda-feira, agosto 16, 2010

Retrato em branco e preto

Aquilo que vi em você quando abri a porta, apatia se espalhando como vento na praia, aquilo não era só o que você me disse que parecia. Aquilo que se misturava às tuas cores não era apenas, não podia ser! Aquilo que se descolava da tua pele e solidificava em nuvem cinza, aquela tempestade anunciada sobre a tua cabeça, aquilo não era o que você achava. Aquele você que me recebeu não era só o apelo minutos antes por telefone, terceiro andar, descalço em pedras frias e magricelo, aquele dia, não era só tristeza, solidão ou temperatura abaixo de zero. Aquilo que se apoderou do teu abraço, tão minguado, não era só Agosto, muito menos oito dias trabalhando sem parar. A tua cabeça tombada no caminho até o sofá da sala, seu quase sumiço por entre as almofadas, aquele resgate que se fez necessário, havia um colapso em você que era subcutâneo e que nem mesmo sopa quente, cachecol e beijo de boa noite: aquilo, meu bem, não era pedido de socorro ou saudade do meu colo: era segunda-feira.

quarta-feira, agosto 04, 2010

Nessa data querida

Fernando Gusmão me enviava cartões de felicitação todos os anos, sem deixar passar sequer um dos meus aniversários. Sua atenção ia além, e ele fazia também sua secretária me telefonar para dar voz a seus mais sinceros desejos de felicidades e realizações pessoais. Mesmo quando o meu dia caía num fim de semana o telefonema acontecia: na segunda-feira de manhã ela se desculpava pois o gabinete não abria aos sábados e aos domingos. Fernando Gusmão me estimava a ponto de se desculpar por não poder telefonar no dia correto do meu aniversário. Fernando Gusmão era bem mais atencioso que muitos dos meus (agora) amigos de facebook, que muitas vezes esquecem de olhar o calendário feito exclusivamente para que não sejam esquecidos aniversários de gente da minha importância.

Confesso que demorei a me recuperar do baque do primeiro ano em que o cartão de felicitação de Fernando Gusmão simplesmente não apareceu. Assim mesmo, Fernando Gusmão me cortou de sua lista de pessoas a serem parabenizadas, cortou meus cartões de aniversário e cortou os telefonemas à minha residência: eu nunca mais ouvi a voz de sua secretária, ela nunca mais se deu ao trabalho de se desculpar pelos fins de semana em que não pode me desejar saúde-amor-amigos e eu fiquei pensando que “o problema não é você, sou eu”, afinal certamente o Fernando Gusmão devia ter descoberto que eu nunca tive a intenção de ajuda-lo nas eleições, e parou de lutar pelo meu voto.

Tão repentino quanto o sumiço de Fernando Gusmão foi um 21 de agosto em que aterrissou sobre minha mesa um cartão comemorativo endereçado a mim e assinado pelo Sergio Cabral, o que explicava muita coisa: alguém da minha estirpe não poderia continuar recebendo cartões de um mero deputado quando o governador me felicitava. Era uma questão política, oras, simples assim.

Minha surpresa foi que os cartões do Sergio Cabral duraram somente um inverno, e no ano seguinte fiquei à espera do que o Lula pudesse me escrever. Poucas vezes me vi tão ansiosa, afinal, na linha de sucessão, ele era o próximo. Eu queria correr ao gabinete do Fernando Gusmão para esfregar-lhe na cara o cartão do presidente da república, para dizer-lhe que não precisava mais de suas frases reduzidas de deputado, ou, enfim, fazer isso tudo diante da secretária. Mas não era culpa dela, tenho certeza de que ela continuaria me telefonando todos os anos, com ou sem cartões adiantados, não fosse o fato de que Fernando Gusmão me deletou de sua agenda telefônica. Fato é que o cartão do Lula nunca chegou, o que me fez adotar uma postura de extrema direita.

Então é agosto de novo, eu me contento com os cartões impessoais que me oferecem 10% de desconto (da ótica, da loja de sapatos, nunca da Livraria da Travessa, que nem sabe o dia em que nasci) e abro animada um envelope verde que me chega via E.C.T para ler a poesia que nem Vinícius de Moraes escreveria: “A vida guarda muitas coisas para você viVER!!!”. Assim mesmo, com caixa alta no final e três exclamações, e cujo remetente, adivinha? é a clínica oftalmológica.

Ainda não sei bem onde foi que perdi a piada.





:: "What do you want me to do, to watch for you while you're sleeping? Then please don't be surprised when you find me dreaming too." The Greatful Dead in Box of Rain

terça-feira, julho 27, 2010

Meus suicídios (vol. 3)

VIII.

Eu me suicido toda vez que tento entrar numa agência do Banco Itaú porque nunca consigo passar da porta giratória, e nem mesmo de quaisquer outras portas que existam pelo caminho. É dar um passo à frente que a porta giratória trava, eu esvazio a bolsa sob olhares que me acusam de crimes gravíssimos e nunca cabe no recipiente toda a quantidade de chaves, os dois telefones, as duas câmeras fotográficas, os dois reais separados pro flanelinha, tanto plural. Suo frio até chegar ao caixa e ali, frente ao sorriso benévolo que me absolve, digo ao gerente que se dane, não quero mais. Encerro a conta, aperto a bolsa mesmo que o saldo seja negativo e numa correria dou de cara no vidro, espatifada me enterro no chão e pronto, fico morta pra não encarar o segurança que arrasta meu cadáver pra fora.

IX.

Eu me suicido toda vez que percebo que já te esqueci, porque às vezes o seu cheiro podre de decomposição me invade e eu percebo que já não sonho mais, já não penso mais, já não faço esforços para descomplicar as coisas que complicamos, já não relativizo, não perco mais o sono, não procuro entender ou ponderar ou adivinhar ou escrever ou inventar sozinha qualquer coisa que permita ainda conjugar “nós”, e me vejo frente a tanto silêncio, escassez de gargalhadas, tanta maturidade e vazio, e então te puxo pra perto de novo só pra me suicidar, porque sinto saudade de construir castelos, refúgios, abrigos, abraços, tanto plural. Eu me suicido toda vez que te esqueço porque não sei o que fazer com o que vem depois e com todo o espaço ao redor, esvazio vidros de medicamentos e agonizo sozinha, a baba escorrendo, e apodreço esquecida, meus restos de carne expostos sendo lentamente devorados por insetos que nunca param de aparecer.

X.

Eu me suicido toda vez que resolvo ler uma biografia, porque putz grila!, haja gente pra não se suicidar no mundo.

domingo, julho 25, 2010

"(...) Você diz:
- Você inventou para mim. Não tenho nada a ver com a história que você teve comigo.
- Você disse o contrário, uma vez, no início.
- Digo qualquer coisa, e depois esqueço. Você sabe - você sorri -, mas estou sempre perto de você no desespero que lhe causo."

Marguerite Duras in Emily L.

sexta-feira, julho 16, 2010

O dia em que engasguei cantando um refrão do Bon Jovi

Disciplinei meus pensamentos pra que eles viessem à tona naquela terça-feira. Primeiro porque ia chover, e angústia combina mais com céu desabotoado que com sol. E depois porque eu sabia que tinha um percurso longo a ser feito de carro, onde há anos dedico-me a cantar e a debater assuntos: em voz alta, com fervor, sozinha.

Preparei-me pra ida ser apenas o ensaio da volta, afinal eu dirigia-me a compromissos profissionais, onde não podia chegar destrambelhada, o que ocorreria caso alguma canção me pusesse a chorar. Evitei o caminho da praia e escolhi uma lista de músicas segura onde a cantoria fosse apenas digna de final feliz, e concentrei-me nas resoluções (agora) tolas: que iogurte também é leite, e portanto deve ser cortado; que gostaria de ter um par de cada cor do modelo dos meus óculos novos; que preciso investir mais que R$4,00 num xampu. E que preciso, oras, decidir um time de futebol pra chamar de meu.

Foi aí que começou o drama. Por sorte eu já estava na recepção, concentrando-me agora nas coisas sérias do trabalho, crachá na mão, atenta às placas das salas, ufa, é aqui. Interrompi qualquer divagação, fiz cara de simpática e fingi que entendia tudo de novela.

Depois de mais de seis horas de encontros eu estava de volta ao carro, confusa porque a praia da Macumba parecia a maior extensão de areia do planeta, enquanto que a orla da praia da Reserva teimava em não acabar, indiferente às minhas investidas no acelerador. O dilema, então se apoderou de mim, e da seleção musical que agora acontecia em shuffle, descontrolada. Me vi frente às seguintes considerações: não era possível a essa idade tornar-me flamenguista, que pra isso precisava ter vocação. E Vasco, bem, era impossível ser vascaína, por todas as razões óbvias que envolvem um ex-namorado e um time que não sai da condição de vice. Verdade seja dita que meu espírito competitivo se esqueceu em algum lugar distante, mas minha tolerância para piadas futebolísticas é baixíssima.

E mais essa. Torcer pra um time de futebol significa que você tem que interagir e enfrentar as risadas e coisas do tipo? Faz parte do jogo?

Pensei no Botafogo, que adotei em algum momento da vida, e guardei por alguns anos uma camisa no armário. Foi a segunda das camisas esportivas que ostentei, sendo a primeira a que levava o número do Romário e que foi exaustivamente usada na Copa de 94, e a terceira uma camisa de remo do Vasco usada nas aulas de surfe. Ok, pano rápido, pula parágrafo.

Daí que só sobra o Fluminense, que muito me seduz, porque acho o conceito todo do time super vintage. Treinos em Laranjeiras cercados por palmeiras, as cores da camisa. Mas será que são argumentos suficientes pra sustentar uma escolha dessa importância? Começo a achar que não se pode ser torcedor impunemente, da mesma forma que não é possível, do dia pra noite, querer que a Mocidade de Padre Miguel ganhe o Carnaval. São escolhas que envolvem convicções, critérios, afinidades.

Estou sendo dramática?

Chego à praia da Barra desordenada: aflição me consome, cheia de indecisões, diante dum impasse. Como é que eu posso resolver o que fazer com as minhas dores de amor se não consigo nem resolver que camisa vestir? Como pode ser possível escolher profissão se não consigo decidir em que lado da arquibancada quero estar?

É assim, diante desse retrato que agora parece tão claro, que entro no túnel em direção a São Conrado e o ipod explode em guitarras, e mesmo que a música não tivesse nada a ver com a questão da torcida (e realmente não tinha), tudo convergia pra um desabafo em choro. Numa tentativa de retardar as lágrimas, enchi os pulmões e comecei a cantar o refrão: ooooh we're half way there, ooooh living on a prayer. Take my hand and we'll make it, I swear... Mas em vez disso engasguei, e num acesso de tosse achei que morreria sufocada sem assumir uma posição, umazinha que fosse, e num nervosismo crescente estendi o engasgo até a porta de casa, sem mais saber se a música era a mesma ou se uma sinfonia de Beethoven tentava em vão me apaziguar.

Meus olhos lacrimejantes e esmagados em meio à tosse avassaladora clamavam por um tapa nas costas. Inundada de água e ar fresco, e respaldada pela futilidade das minhas atividades, achei que poderia usar como único argumento a estética, e estava prestes a anunciar aos quatro ventos que era a mais nova integrante da torcida fluminense quando o Mauro se meteu na conversa e contou uma história tristíssima sobre o time. A Ritinha por sua vez, mandou um email um pouco revoltado sobre o assunto, apresentando queixas consistentes pelas quais eu deveria descartar os argumentos do Mauro.

No dia em que engasguei cantando um refrão do Bon Jovi eu xinguei esses dois por terem tornado a minha escolha tão mais complexa do que parecia, morri de saudades da Copa do Mundo e decretei: sou América desde criancinha.

Anomalia

(Bilhete a M., desses para serem encontrados sobre a pia do banheiro pela manhã.)

Já percebeu que toda vez que você me deixa em casa a gente desata a conversar e fica mais meia hora (no mínimo) a falar? Carro embicado na garagem, o porteiro da noite a roncar no sofá de entrada, música escolhida por mim de pano de fundo.

Deve ser que a gente não entende direito esse lance de despedidas, ou que a gente nunca aprendeu a dizer "tchau".

domingo, julho 11, 2010

Vestígios

As gotas de suor que marcavam o chão de linóleo da sala de dança, aqueles fios de cabelo que grudavam na nuca em questão de minutos, pensar que o mundo estava de cabeça pra baixo, rodar pela diagonal e se apoiar na barra ao final de uma série de piques, bater palmas ofegantes, pegar a blusa que ficou empapada esquecida a um canto da sala, gostar de gatorade às 21h15 de segunda-feira no verão: uma saudade avassaladora de chegar em casa depois da aula de ballet, deitar no chão com as pernas pra cima, entrar no banho e cantar Alanis Morissette embaixo do chuveiro.

Saudade imensa de 14 graus em outubro, vestido novo com meia grossa, trenchcoat emprestado, inspirar e expirar de olhos fechados mais uma vez antes de abrir a porta antiga do prédio, os ecos do salto atravessando a Rue de Mezières até qualquer café na esquina, uma mesa apertada que encoraja nosso encontro, sentados na vitrine sem querer saber das ruas, o caminho de volta, beijos urgentes imprensados na parede, mistura de suspiros, subir os 6 andares de uma escada atapetada refazendo mentalmente todo o percurso que me fez cair naqueles braços: cair naqueles braços.

Ler pela primeira vez as linhas 12, 13 e 14 da página 31 de um determinado livro e ter uma retumbante certeza de que é possível guardar deslumbramentos em prateleiras. Saudade doída de escutar o Bolero de Ravel pela primeira vez e me sentir suspensa.

Trança no cabelo, frio de julho na beira do mar, fechar o zíper nas costas do macacão e sentir gelar toda a espinha quando as primeiras espumas de onda batem no pé. Remar com os braços aflitos, achar o equilíbrio e deslizar suavemente, guardar essa saudade de entender o fim da linha e se jogar pra trás, espatifar-me n’água, buscar a areia, deitar sobre a prancha e ter uma certeza retumbante de que presente bom é fitar as nuvens sem se importar com o tempo.

Perceber-se apaixonada e tentar conter aquele sorriso bobo que não respeita horários, caramba!, que saudade que dá de gostar mais de tudo, de demorar a dormir, de ter uma fome de banquetes, de ter um abraço esperando, de poder beijar sem parar.

Uma saudade que me atravessa, impiedosa, de saltar do carro para abrir o portão, pisar descalça na grama e avistar os cães correndo em minha direção. De ver as marcas das patas imundas sobre minha camiseta tão branca. De estender toalha de pique-nique, folhear o jornal, lembrar do repelente depois de dois ou três mosquitos, adormecer escutando as vozes dos amigos, contar flores nas copas das árvores. Saudade tão forte de correr e pular pra dentro da piscina, de se apoiar em bóias e fica à deriva, da sopa em frente à TV, dos ruídos de lenha queimando na lareira, do ranger da rede. Essa saudade que me alucina: do cobertor que provocava espirros, daquela casa, de nossos dentes manchados de vinho, de dormir só no dia seguinte, daquela parte da estrada onde as árvores, pareciam, nunca iam morrer.

domingo, julho 04, 2010

Blood on the dancefloor

"because my love for you would break my heart in two, if you should fall into my arms and tremble like a flower." David Bowie in Let's Dance


Do sofá tenho a melhor vista da festa: ali no canto pode ser o começo de uma grande paixão, ali na janela pode ser só enfisema, à direita prevejo roncos e sonhos barulhentos, à esquerda, indiscutível: vômitos no banheiro antes de dormir, nenhum engov vai melhorar. À minha frente se abre o espaço sob o decreto do dj e os olhares imperativos dos amigos que exigem minha presença na pista de dança. Desfilo meu mini vestido até o centro das atenções, encontro lugar seguro para os óculos, exibo meus melhores passos de dança e num rompante eufórico começo a pular alucinadamente, quase sacudo a cabeça como num show de rock. Oito saltos depois alguma coisa falha entre L5 e S1, apóio a mão nas costas e me rastejo até a porta de saída.


Dia seguinte, na cama, uma bolsa de água quente como aliada e dois vidros de remédios esvaziados: não sei se salvação ou tentativa de suicídio.

quarta-feira, junho 16, 2010

Waffles com mel - cena 1

Sentam-se na mesa de sempre, isto é, sempre que o salão está vazio o suficiente para escolherem seus lugares cativos: ela prefere o sofá, ele senta na cadeira e volta e meia não resiste ao espelho em frente. Já sabem que morrem de frio no verão, por isso levam um casaquinho na bolsa, mesmo em janeiro. O primeiro comentário é, portanto, uma discreta revolta contra a potência dos aparelhos de ar-refrigerado nessa época do ano. Um exagero: prevêem gripes para o final de semana, convalescência na piscina. Ela tira da bolsa o caderno de anotações, tá aqui o nome do livro que te falei, como você tá inquieto, o que foi?

A mesma garçonete loira, oi tudo bem? Ué, hoje não vai querer chocolate quente? Ah já sei, no calor é melhor milk-shake, né? Ela se encolhe no banco, pondera: um suco. Dois sucos, dois waffles, uma água sem gás para dividir. Ele muda de idéia: traz um café no lugar do suco?

Como até hoje não sabemos o nome dela? Ele interrompe suas divagações: tenho uma proposta que você não pode recusar. Ela escuta atenta até ser interrompida pelo celular. É minha mãe, preciso atender. Ele passa a mão pelos cabelos três vezes, chacoalha um pouco os pés. Manda um beijo pra ela também. Pronto. Ele começa a sua introdução seriíssima sobre o novo projeto, e antes de explicar efetivamente sobre do que se trata, elege as razões pelas quais ela é a parceira ideal para a empreitada. Envaidecida, se esparrama pelo sofá.

Eclode na mesa ao lado uma briga , um casal já em crise avançada que decide tornar públicas suas amarguras. A mulher, muito nervosa, explode em choros e soluços, o homem percebe que foram longe demais. A garçonete loira desvia o chá de camomila que levava para o senhor dos fundos e o pousa sobre a mesa da discussão, numa tentativa solidária de acalmar a mulher, que segura a bolsa e sai apressada sem olhar pros lados. O homem, constrangido, deixa um dinheiro além do necessário sobre um pires e vai atrás da mulher.

O silêncio se dissolve e o barulho costumeiro do lugar recomeça. Diante do espelho, colherzinha suspensa no ar, imobilizado pelos gritos do casal, ele inunda o título do livro e todas as outras frases do caderno dela: nuvens no café.

quarta-feira, junho 09, 2010

Carta a O.

Querido,

A gente combinou que ninguém mais ia embora, e eu combinei que nunca ia escrever pra um poeta. Confesso: morro de inveja de quem escreve poesia – todo o resto fica parecendo auto-ajuda, e ai que vergonha te falar por escrito. Além disso, eu não elucidei nenhum dos questionamentos: ir ou não ir, você pergunta, e eu caio em contradições: não, eu não acredito mais em paixões ou amores, mas não acredito neles pra mim e, de verdade? acho linda essa história de se juntar, desde que não seja comigo. O meu romantismo ficou todo para terceiros.

O fato dessas linhas serem endereçadas a você abre um precedente pra que eu seja compreensiva quando você enviar cartões postais do cerrado. Porque sabe, acho mesmo que de alguma forma você é bem mais coerente que eu, ou ao menos elabora mais objetivamente as perguntas que eu sequer ouso fazer: de quê serve tanta sensatez, raciocínio ou lógica?

Eu empacaria de cara na hipótese de dar tudo errado, mesmo sabendo que os vôos vão e vêm. Eu acharia todos os motivos possíveis que me impediriam de tentar, e citaria até mesmo a umidade do ar como uma das implicações pelas quais não ir atrás de um grande amor. Eu não construiria as bases dos meus dias no outro, não confiaria meu bom humor matinal a alguém, eu não daria chance a um relacionamento que envolvesse um complicado e um outro perdido, e que ainda tivesse miopia, desemprego e toda essa distância cruel do Jobi no meio.

Eu optaria pela praticidade de continuar minha vida por aqui: evito aquele trecho da praia, passo a preferir o bar ao lado, exploro a sessão de livros infantis em boas companhias numa tarde de segunda-feira em Ipanema e mudo de assunto toda vez que for necessário. Finjo que não preciso de musos pra escrever, não tento te explicar a minha relação com aquele cara porque me convenço pra sempre de que não existe uma. Perco meu bigode na esquina e tudo bem.

Mas a ida é tua, e a coerência também: quantas pessoas transformam tatuagem em poema ou enxergam corações em fios de cabelo? Quantas pessoas viram à esquerda e dão significados a caderninhos e papéis fotográficos? Quem ainda alcança o tamanho do teu sorriso?

Você poderia ir e se descobrir de tantos outros jeitos, ou ver que realmente não daria certo. Poderia aprender a cozinhar, a dirigir, a usar lentes de contato, a manter o banheiro em ordem. Poderia pegar quantos ônibus errados fossem possíveis, encontrar uma turma de cineastas boêmios, usar barba. Se impacientar menos com burocracia e passar a gostar de sapatos. Você poderia ir e descobrir que é capaz de se acostumar às contas de luz, gás e telefone. Ou entender que algumas inquietudes são indomáveis, e voltar por uns tempos, e procurar outros destinos. Ou andar.

Eu acho que você vai acabar descobrindo que precisa andar, e que vai encontrar uma forma de conviver bem com isso.

Se você, afinal, não comprovar (ou desmentir) nenhum dos meus palpites, seja por excesso de ponderação ou por promessas de novas histórias dilacerantes aqui mesmo nessa nossa província, então, por favor: encaixote tuas palavras tão lindas, me dê uma obra de presente que assim, quem sabe, com tanta paixão pra inspirar, eu não amoleça um pouco essa minha cabeça descrente e veja no mundo um pouco dessas belezas todas que você enxerga.

Se eu tiver que te desejar boa viagem, lembre-se de dar sinal de vida quando estiver por essas paragens, e por favor: uma pizza, uma fuga de festa, um bloco de carnaval. Ou caipirinhas esquisitas em bares duvidosos.

Qualquer que seja a decisão, entenda: a questão não é o que o amor pode te trazer, e sim o que você procura: se um caminho de tijolos amarelos e promessas oníricas cheio de incertezas e desníveis, ou um pavimento de concreto e documentos em dia, repleto de praticidades e cálculos, onde talvez seja mais difícil encontrar tua poesia, e nem por isso ela será menos impactante.

As coisas estão aqui, pouco cambiáveis. Se a tua ilusão for tão volátil quanto orgasmos, compre a passagem de volta. Certamente as risadas estarão à tua espera, sentindo tua falta na cabeceira da mesa.

(já dá saudade, só de pensar, mas acho que posso - e todos podemos - encontrar um ou outro drible pra ver como crescem os amigos queridos)

um beijo enorme!

quinta-feira, maio 20, 2010

Diários de São Paulo

(vol. II ou - o atropelamento segundo Caetano Veloso)

Acordo, pisco os olhos e me encaminho pra cozinha para devorar castanhas e é o suficiente para sentir a pele abrir-se em esgarços: pequenas feridas se depositam no topo das dobras dos dedos, a textura toda do rosto é agreste e o nariz sangra: pela manhã, à saída do ônibus, o vento frio na cara faz parecer NY, os combustíveis fazem parecer o inferno, o ipod faz parecer coincidência demais essas coisas sobre as quais não ouso pensar.

Em meio a tantas galerias, ilustrações e cores, decidimos que tão importante quanto o poder aquisitivo é a extensão das paredes, e mais grave é a dimensão das molduras: discutimos a necessidade do “paspatur” e mais tarde, entre chillis e cervejas com limão, debatemos a ética profissional, seguramos as lágrimas que se disfarçam em risadas, ensaiamos embriaguez no final do domingo.

À tarde no escritório as pessoas comem bolachas, nunca biscoitos. Nos finais de semana as pessoas “dão risada”, nunca gargalham. Algumas coisas em São Paulo são “embaçadas”, e não são necessariamente vidros ou lentes. Outras ficam “zoadas”. Tem gente que “causa” na balada. E todo mundo atende pela primeira sílaba do nome, até mesmo Ana pode ser reduzido a “Ô. Em São Paulo é assim: acostume-se com o dialeto, imite o sotaque, faça parte. Alguém vai te sacanear quando você falar “treix” ou “meixmo”. É a sua chance de sacanear de volta, com requintes irônicos que nem o mais erudito paulistano alcançaria: quer que eu te imito?, pergunte, e ria por último e melhor (e sozinho).

Fim de semana em Higienópolis, Aderbal e eu nos fazemos companhia. Em poucos minutos entendo seus miados e chamados, e em questão de duas ou três trocas de olhares nos gostamos tanto que ele deita no meu colo, se esparrama, fica dengoso e meu. É uma delícia, não fosse o pequeno acidente que ocorre depois de cerca de uma hora: sem querer, eu como o Aderbal. Ele solta tanto pêlo que começo a sentir na minha garganta seus cabelos, entro em pânico pensando que os pêlos todos do Aderbal se alojarão na minha garganta. Percebo, porém, que ele não encolhe, ufa. Saio do apartamento aliviada, e então, rá!, como minhas luvas e o cachecol, e, dependendo do figurino, como o meu casaco também. E comeria qualquer coisa que fosse feita de lã e se desfizesse aos poucos encontrando trajetos que levam o tecido a se acumular diretamente na minha garganta. Comeria outros bichos também. Papo estranho, melhor mudar de parágrafo.

Ando atenta pelas barracas da feira e aumento para 3 o número de itens da minha coleção de latas de talco antigas, questiono se de fato a denominação procede. Acho que sim. Quero que sim. As barracas de brinquedos antigos afirmam nosso saudosismo, e compro um Snoopy vintage para o sobrinho, que provavelmente terá mais interesse em coisas que piscam. Suspiro. Quem sabe?

Apita no meu celular uma mensagem enquanto atravesso o viaduto do chá: “ainda na terra dos bandeirantes?”. Certamente. Fugindo da multidão que invadiu a Liberdade no domingo de feira, e acho tudo naquele bairro um horror, de modo que nem um sashimi me salva.

Tiro fotografias sem ter qualquer noção de que elas mostrarão tudo o que quero lembrar e, num descuido, queimo 24 poses de recordações. Desconsolo na Sé.

Fico com uma enorme vontade de me apaixonar por alguém, pior: preciso me apaixonar por alguém.

Tento: entro na Catedral, dou bom dia a um monge na porta do Mosteiro de São Bento, cruzo a Ipiranga e a Av. São João e o máximo que me ocorre é um espirro. Há que ser muito Caetano para mapear poesia em cruzamentos no nervo da cidade, e então um estalo. A maioria das ruas por onde tenho circulado não tem sinal (ou farol?) para pedestres e portanto a cada rua que cruzo, prevejo minha própria morte. O máximo que eu poderia sentir no coração ao me deparar com tal cruzamento deve ser algo parecido com a dor do fim. Não há romantismo que resista a tanta ameaça.

Pausa. Fico cansada no fim do dia, me reconcilio com os óculos, pego um ônibus errado mesmo assim. Consigo estabelecer uma rotina para toda a homeopatia e sem mais determino: estou melhor, estou esquecendo, estou voltando.

Canto: desafino, dou gritinhos, rio no meio da letra e tenho uma inveja estúpida de quem sabe tocar violão.

É o fim do exílio: malas prontas a serem entupidas de tudo o que adquiri, responsabilidades e funções novinhas em folha, um ainda não saber como viver longe do Nintendo Wii, uma preguiça de deixar aqui toda essa gente querida que eu adoraria carregar no bolso: sentir saudades de novo, calor de novo, e atravessar os mesmos rostos nos velhos bares, evitar as mesmas farpas e limpar o armário toda semana por causa do mofo.

Saudade eu tenho dessa cidade que ainda mal conheço, da Paulista quando é noite ou dia, das árvores de Higienópolis, do avesso do avesso do avesso do avesso.

Alguma coisa acontece no meu coração quando pego a ponte aérea, vejo os termômetros de São Paulo marcando 14 graus e sinto que pertenço.

sábado, maio 08, 2010

Top 5

Características da linguagem regional:

1. “Brigada eu” – é um esquisito sinônimo para o “de nada” que falamos após um agradecimento. Eu, que pensava detestar gente que diz “por nada”, me vejo agora às voltas com “brigada eu” naquele sotaque anasalado de São Paulo.

2. “Imagina” – é mais um sinônimo para o “de nada” ou o “brigada eu” e na maioria das vezes é dito "magina", ocultando-se a primeira vogal, como no "brigada eu".

3. “De quinta” – ou “de” + qualquer outro dia da semana. Ao chegar ao trabalho e fazer um comentário sobre o trânsito daquela manhã, alguém diz que “de sexta é um caos”. Ao perguntar a alguém sobre os horários de um museu, “de segunda não abre”. Ou qualquer outra coisa: “de domingo tem feira aqui na esquina”, “de quinta é mais caro pra entrar” e etc.

4. Plural – por alguma razão obscura, os paulistas não aprenderam a usar o plural na escola. Nenhum paulista: do trocador de ônibus às pessoas que passaram pelo ensino superior, todos adotaram o singular como número absoluto. O curioso é que tal regra vale para substantivos, porém cai em desuso para artigos, o que acarreta frases recheadas de: as blusa, os carro, os vestido, os mano, as mina.

5. Subjuntivo – deve ser alguma emenda especial na pasta da Secretaria de Educação: os paulistas também não aprenderam a usar o subjuntivo na escola, e o que se escuta o tempo todo é uma espécie de dialeto verbal: quer que eu telefono? Quer que eu levo? Quer que eu busco? Eu não sei ainda como reagir a essas perguntas, na dúvida digo sempre que não porque estou convencida de que existe um significado oculto em tudo isso. Quer que eu te mostro?, me perguntou alguém outro dia, e eu saí correndo de medo pela av. Paulista.

quarta-feira, maio 05, 2010

O dia em que cortei cebolas

Teve garoa à tarde no dia em que cortei cebolas, e porque desde que cheguei nessa terra só fazia calor e sol eu pensei que a chuva fina tinha um quê de especial porque anunciava o frio, o casaco de lã, um guarda-chuva novinho em folha e quiçá epifanias.

Desci a Rua Augusta cantando e, distraída que estava, fui andando pra casa sem me importar com a poluição. Não arrisquei respirar fundo, porém, seria um descuido e uma impossibilidade, visto que por volta das 18 horas o nariz começa a entupir: em São Paulo, parece, até a alergia é profissional e cumpre horário de trabalho. E junto da alergia vem essa coisa que dá nos olhos, e que é um misto de coceira e ardência, e atravessei a 9 de Julho pingando colírio, aquele prescrito cheio de substâncias e que promete aumentar a produção de lágrimas, essas que haviam sido decretadas escassas e insuficientes para meus olhos.

Eu já andava pelas ruas engarrafadas do Itaim quando entrei no supermercado, uma vontade de comer massa ou qualquer outra comida que ficasse pronta depois do simples e sublime ato de ferver água: brócolis para acompanhar, queijo derretido pra jogar por cima e gelatina de sobremesa. E uma salada de tomates e cebolas, que aí é mais mágico ainda e só precisa de azeite. Com sorte haveria ainda alguns goles de vinho no armário, e mesmo que não houvesse, eu ficaria enrolada em cachecol, esquecida no sofá. Com mais sorte ainda, dessas que nem amuletos ou simpatias garantem, a gata passaria mais um dia sem me atacar.

Panelas no fogão e abridor de vinho decifrado: seriam necessários mais lenços de papel, mais gotas do suposto milagroso colírio e em outros dias seria preciso, também, janelas anti-ruído que silenciassem os esperançosos torcedores do Corinthians.

Mas no dia em que eu cortei cebolas nada poderia estragar minha noite, tamanha foi a especialidade do evento anunciado pela garoa.

No dia em que cortei cebolas o porteiro me deu boa noite me chamando pelo nome, eu fui útil na Alameda Lorena e o risoto do almoço compensou a espera. O ponto alto do dia em que cortei cebolas teria sido o fato de que a gata lambeu meus dedos da mão, selando o começo de algo que pode vir a ser uma grande amizade de 3 semanas. A revelação, porém, era outra: no dia em que cortei cebolas chorei lágrimas em abundância.

sábado, maio 01, 2010

Diálogos com um(a) sobrinho(a) - vol. I

Era um baldinho em forma de peixe, desses que as crianças levam para a praia cheio de ferramentas dentro: pás e forminhas para fazer bolinhos de areia. Ou buracos que nos levariam ao Japão, à China, e a um monte de outros países que ainda nem sei se aprendi direito: um dia sentaremos juntos em frente a um globo iluminado e escolheremos todos os destinos que couberem em nossos cadernos de viagem: sim, é bacana manter cadernos de viagens, e outros tantos um pouco inúteis.

Depois foi uma caixinha pequena, de papelão e cheia de cores, de onde juntos puxaríamos diversos cartões, e em cada um deles haveria o começo de uma história: era uma vez. E então caberia a nós continuarmos: poderíamos separar príncipes de princesas, inventar bruxas dóceis, fabricar céus de marmelada e árvores de tangerinas (um dia, fatalmente, você descobriria que os Beatles já tinham inventado isso antes, mas tudo bem).

E os casacos de plush: com capuzes e aconchegantes, mesmo que a nossa cidade seja esse exagero de calor e suor, e os sapatinhos: olhando os sapatinhos eu pensei que era mais lógico que bebês andassem (ou não) descalços, com os pezinhos sempre acima das cabeças, ensaiando passos de dança acrobático enquanto alguém já crescido empurra o carrinho.

Aí eu comecei a perceber que já estava elitizando ensinamentos e lições para você: eu tinha pronta uma lista de verdades e mentiras sobre o mundo, prós e contras sobre tantos aspectos da existência, e dicas para economizar água. Quanta besteira: seu mundo vai ser outro, vai ser, exatamente, o que você escolher.

Foi quando eu resolvi que qualquer coisa seria piegas, e porque essa é a nossa primeira despedida, resolvi enfiar o pé na jaca. Pra você, neném, eu afirmo isso: invente o seu deus, escove os dentes toda noite antes de dormir, escute toda a música que puder, cultive paixões e escolha sempre as pessoas que vão te ajudar a fabricar sonhos: são elas as melhores, as mais especiais, e as que vão te servir de bússola.

São só 3 semanas: eu voltarei cheia de presentes, saudades e essa felicidade sobre a qual ainda não aprendi a escrever.

domingo, abril 11, 2010

Diários de São Paulo

(vol. I ou - O Amor Segundo Hélio Oiticica)

Estou aqui nesse lugar onde tudo é comprável e tanta coisa acontece no meu coração que fica difícil priorizar: eu ainda te odeio, mas tenho uma vontade de te participar de cada passo que dou quando cruzo avenidas bem mais largas que as nossas, eu ainda te adoro, mas tenho ímpetos violentos e irreversíveis à mera menção do teu nome: te xingo, por via das dúvidas.

Através da vitrine não conseguimos ver muitas coisas, mas eu já sei quais são os livros que elas precisam ver, e quais são os trecos e coisas divertidos que nos farão rir e emendar piadas: nos deliciamos em almofadas bordadas de John-Paul-George-Ringo e cobertas de veludos: faz frio, eu coloco as mãos nos bolsos da minha jaqueta de couro e digo a elas que não, gente como nós nunca vai parar de tomar Prozac ou de fazer listas.

Fico ligeiramente preocupada no avião: será que essa mania é de fato tão neurótica quanto eu penso que é? E se ninguém mais me agüentar? Tanto faz, decido: tem gente que bebe, tem os que jogam paciência no computador, tem gente que faz aula de artesanato e pronto: eu faço listas, é minha terapia ocupacional.

Chamo de mau gosto as vitrines do Bom Retiro, e guardo delas fotografias que me provam o contrário, não sei explicar, mas é assim que ocorre.

Sex is an illusion. The most exciting thing is not making it., diz o Andy Warhol. Será?

Passeio pelo Museu do Futebol e, confesso: choro. Duas vezes.

Meu guarda-chuva quebra na Augusta.

Me reconcilio com Hélio Oiticica na Av Paulista porque finalmente faz sentido penetrar uma de suas obras, e entendo pra que servem, afinal, as Cosmococas. Não são epifânicas, não superestimulam seus sentidos, não te fazem cruzar a porta de saída pensando em questões da arte ou do mundo, não te deixam hipnotizado por cores ou traços, não provocam rupturas, não causam o impacto da sessão de quadrinhos da Livraria Cultura, não, não, não: no escurinho de uma Cosmococa casais espalhados em colchões trocam beijos estalados e melados, eu saio de fininho encabulada porque não sei amar, prevejo um baby-boom e nenéns vestidos em Parangolés, e compreendo: all you need is love.

Na bancada de uma cozinha em Higienópolis ouço a melhor definição que se pode fazer sobre alguém: ele não tem super-ego. E crio uma cumplicidade tão boa e grande que me esparramo no sofá, fico com as bochechas rosadas de vinho e me enrosco num gatinho ruivo que minutos antes tentava comer meu cabelo e que agora ataca meu pulso esquerdo com mordidinhas e miados.

Almoço risoto na Livraria da Vila, onde sempre sou feliz.

Sempre sou feliz em São Paulo, concluo, e cada vez mais, sobretudo quando há uma lareira ao lado de um quarto com papel de parede retrô. Ou um flamingo de acrílico quebrado na sala. Ou todos os livros do Snoopy em inglês. E toda essa gente que me faz chacoalhar em gargalhadas revigorantes, os dias passam tão rápidos e sedutores aqui que só me dou conta no avião a caminho de volta pra casa que não penso em você há três dias, e rezo pra finalmente chegar o dia em que eu possa perder as contas e nem precise mais somar.

Já em casa, ela me conta que perdeu o vôo de novo, sempre, que coisa insistente. Combinamos voltar em breve, aproveitar o frio, paquerar almofadas milionárias e comer como rainhas. com sorte, quem sabe, e com todo esse bom-humor, se esbaldar na Tropicália de braços dados com alguém.

quarta-feira, abril 07, 2010

O desabotoado céu - volume definitivo

(para Betinha, Bruna e Clara, pelos lenços de papel)

As coisas começaram a desabar todas juntas: eu tropecei numa pedra portuguesa num domingo, engasguei quando entendi que eu tinha inventado muito mais dele do que devia, perdi diversos botões de tantas roupas e uma motosserra rangeu por três dias e três noites me deixando numa insônia devastadora onde desaprendi a ouvir música. Caiu, então, uma chuva que pedia uma sequência inevitável de clichês: guarda-chuva virado ao contrário, água nas canelas, RJTV filmando gente de barquinho pelas ruas, preocupação de mãe, coração estilhaçado e um choro desatinado que demandava abraços, colo e vodca.

Era sábado, minhas roupas encharcadas pendiam no varal da casa dela (sempre ela!) enquanto eu me esforçava para parar de gaguejar, alguma coisa escorria de mim numa velocidade surpreendente, e minhas mãos tremiam. Aquele dia voltei pra casa a 10 por hora, coloquei um cd no som do carro, mas eu apenas não sabia mais como fazer: para ouvir música, para ouvir histórias, para achar que tudo ia ficar bem, para entender que agora era eu sem ele.

Quando as águas baixaram e a cidade começou a secar eu já estava enjaulada em obsessões habituais: listar músicas com a palavra “olhos” (ou eyes – mais ou menos 20 de cada), discutir relação por email, mimar o cão e, aos poucos, colocar no som os cds e lembrar que algumas músicas são como navalhas.

Aconteceu, então, que depois de muitos dias de calor e mar, a rua começou a despencar, com lamas e folhas que desciam nem sei de onde, e barulhos tão próximos e assustadores que pensei em fugir no meio da noite, sem nem dar tempo de inventariar o que eu carregaria comigo. A cidade toda começou a cair de novo, meus remendos se rasgaram com a mesma violência com que as encostas deslizaram e então tudo ficou em alerta. Dessa vez foi o prefeito quem decretou que evitássemos sair, e sem álcool, bobagens ou ânimos, vimos os dias cinzas separadas em nossas janelas sempre com o telefone ao alcance. Lemos quadrinhos e poesia, pregamos os botões das camisas e das calças e por fim juntamos nossas obsessões numa lista que somou 96 canções, umas com a palavra “rain”, outras com a palavra “chuva” no título. E porque aqui as coisas estavam realmente tristes e doloridas, e porque o Morrissey insistia em cantar “come back to Camdem”, comprei minha passagem para onde por duas vezes fui extraordinariamente feliz. Chove sempre na Inglaterra, me disseram. Tudo bem, em mim também.

terça-feira, março 30, 2010

Era uma vez

Me convenceram de que pizza fica melhor com guaraná, que um raio-laser me faria enxergar o mundo desembaçado em no máximo 48 horas, que mentos com coca-cola explode, que beber água de cabeça pra baixo cura soluço, que oferecer ovos a Santa Clara pode ser eficaz, que São Longuinho devolve as coisas perdidas por apenas 3 pulinhos, que Elvis não morreu, que tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que cativas, que o que não mata engorda, que o cão é o melhor amigo do homem, que se deve entrar o ano de pé direito, que os Beatles são mais famosos que Jesus Cristo, que se não for infinito então que seja eterno enquanto dure, que o Obina era melhor... do que quem mesmo?, que antes tarde do que nunca, que antes só do que mal acompanhada, que aqui em se plantando tudo dá, que ovo faz mal, depois que ovo faz bem, que tudo se acaba na quarta-feira, um engov antes e outro depois, o sonho acabou, e, comprovadas ou não, é bom se apegar a essas certezas, quaisquer que sejam, quando a vida fica assim, fora do lugar e irreal.

:: By my side - INXS

segunda-feira, março 08, 2010

Manual para conquistar pequenos mundos,
de Michel Zózimo



- Não descarte nada que respire;



- Considere as coisas que não se movem;



- Trace mapas imaginários que não escapem do presente;



- Calcule a distância da ponta dos seus dedos da mão até o infinito;



- Descubra a medida do esquecimento;



- Encontre o centro do oceano, imaginando que isto é impossível.

sexta-feira, março 05, 2010

Choosing my confessions

Se for egocentrismo imaginar que o consulado americano vai investigar cada uma das informações informadas no formulário de requerimento de visto para os USA, se for tão ridículo pedir pra mãe ir ao dentista pra segurar minha mão, se for delírio concluir que sinusite só dá de manhã, ou toda vez que eu acordo, se for inevitável morrer de amores por Afrin, se for preciso morrer de amores por ele.

Se for heresia ter fé em Paul McCartney, se for obsessão essa minha relação com o Morrissey, se for sempre tão incrivelmente saudável viajar com elas, se for essencialmente vital que elas sejam sempre um pouquinho só minhas, e vice-versa, se for incontrolável comprar inutilidades e coisas sem mais nem porquê para presentear dois ou três amigos.

Se for tão perfeito viajar sozinha e querer aprender a língua local com uma semana de antecedência, se esses rompantes de vontade me fizerem pegar a estrada e inventar todas as soluções ao mesmo tempo sem parar pra pensar em medos, se for patético ter crise alérgica em quartos que seriam reprovados pela vigilância sanitária, se for nocivo beber, se for indecifrável o alcance e a largura dos teus olhos quando esbarram em mim.

Se for normal o ciúme, se for apaziguador beber vinho, se for decente o preço da ponte-aérea, se for sempre reconfortante o nosso encontro, se for sempre tão consolador dar de cara com crises existenciais por email, se for sempre tão gostoso ver o quanto você cresceu.

Se for sempre tão esclarecedor esse falatório na hora do almoço.

Se for sempre tão acolhedor ver TV, se um dia eu me convencer a escrever um livro, se eu fizer o que mais gostaria de tentar, se eu conseguir saber de cór cada pedaço da tua pele e tuas medidas, se eu tiver coragem, se fizer sol, se o filme não queimar, se não tiver fila pra ver o Matisse no museu, se ela for me buscar no aeroporto, e mesmo que nada disso seja certo ou tenha razão... diz que sim quando eu te perguntar?

terça-feira, fevereiro 23, 2010

Reveillon

De repente você não consegue mais lembrar porque foi parar no meio daquele fim de semana em Búzios, qual era o nome da praia onde você descobriu que precisava assistir a todos os filmes do Kubrick e nem em que quarto dormiu, se com um ou com outro, ou se sozinha enrolada num lençol fininho e sem dar qualquer espirro. De repente você tem uma saudade torturante do apartamento onde as coisas permaneciam secas, de dividir o banheiro, de subir a escada de mansinho pra se largar frente à TV. De repente você fecha os olhos e consegue catalogar todos os sorrisos que ele sorriu ao longo de dez anos, desde a escuridão de uma boate onde você parecia uma punk até o bloco de carnaval mais recente, passando por todos os seus sonhos e por todas as cenas que nunca aconteceram. De repente o que você mais deseja é que as coisas possam ser um pouquinho parecidas com o que já foram um dia: quando não havia abridor de vinho num apartamento onde a TV era a pior do mundo, quando eu era a única pessoa que não tinha idéia do que era um plano-sequência, quando eu disfarçava paixão, quando eu era mais parecida com o que eu achava que seria em algum futuro.

De repente o Paul McCartney parece ser o único sujeito confiável do mundo e só o que faz sentido são caixas empilhadas de tylenol sinus sendo consumidas diariamente ao volume ensurdecedor de silly love songs.

Você se assusta ao encontrar vaga-lumes e entra em Cosmococas aguardando acontecimentos ou revelações, controla ansiedade tirando fotos em câmeras antigas de filmes, chora dias a fio olhando pros quadros que pintou na infância, compara a venda da casa de campo com a morte da goiabeira, desmarca o dentista com medo de que morra sufocada por causa da sinusite e pensa que tudo, tudo mesmo, pessoas, memória, lugares e ideias estão acabando rápido demais, e até dor de cotovelo tem aparecido menos, ou incomodado menos, ou talvez seja só uma questão de aprender a ignorar mais: os dias de sol, os chamados dele, o fato de que já compuseram músicas novas desde 1976, a superexposição, o amor.

Você se sente meio idiota porque nunca consegue preencher o pedido de visto pros EUA, sonha que está em NY comprando todos os livros do Avedon sem se importar com o peso: da mala, da moeda, da obsessão, e isso é o que existe em comum entre viagens e sonhos.

De repente você confessa ciúmes e descrenças com a mesma facilidade, planeja se mudar pra fora do país, dá palpites em roteiros alheios, lê biografias em francês e fica tão completamente só nadando crawl na piscina, e quando se dá conta já é quarta-feira de cinzas e o ano, parece, começou. De repente você entende que precisa começar também.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

(sem título)

Vou de encontro aos teus suspiros urgentes, rasgo um pedaço da tua calma, mas não sei como seguir adiante porque tropeço, sempre. Sinto falta dos teus sorrisos, de cochichar no ouvido e de quase cair da cama. Sinto falta de ternura. Nunca soube te dar respostas, nunca te convidei pra entrar. De novo. Abro a porta sozinha porque já não acredito mais nos teus desejos. Acordo quatro horas depois sem saber o que aconteceu. Mas imagino brigas, tua brabeza entre dentes serrados, tuas mãos vazias de mim, e vejo os paetês do meu vestido caídos no chão, nenhum sinal dos teus cabelos.

Construo justificativas possíveis, mas já é tarde demais pras tuas vontades efêmeras. O comprimido aplaca a ressaca. E o teu silêncio, quem cura?




:: but darling when I hold you, don't you know I feel the same?
Axl Rose in November Rain

sexta-feira, janeiro 22, 2010

As tangerinas do meu tempo

Era sempre primavera ou verão, e especialmente os meses de outubro e novembro, que era quando as jabuticabas estavam prontas para serem devoradas. Antes disso era esperar pacientemente, dar pulinhos quando as primeiras bolinhas verdes apareciam nos galhos, e torcer pra que pipocassem logo nos três pés da fruta, além de condicionar todo o nosso desejo por elas, pra que casassem com os meses certos em que poderíamos colhe-las. Por sorte, havia uma mãe bastante convincente que nos incentivava a saborea-las ali mesmo, ao pé da árvore, sem água ou lavagem. “É da natureza”, ela dizia, e seu argumento era o suficiente. Subíamos o mais alto que alcançassem nossas perninhas para pegar os frutos gordos, e escapavam suspiros quando elas estavam já murchas, bicadas por passarinhos: felizes por eles, e com uma pontinha de inveja.

O mesmo com as goiabas: é da natureza. Mas também eram da natureza os bichos que eventualmente as habitavam, e por isso eu nunca comi goiabas. Por via das dúvidas, nunca comi, também, goiabadas ou qualquer derivado da fruta. Gostar de goiabas, como se pode deduzir, era bem mais complicado que gostar de jabuticabas.

Amoras, então! Quase sempre azedas e fazendo ameaças de manchas nas roupas e biquinis, só dava uma vez por ano e era um salve-se quem puder: crianças afoitas ao redor do pé que era alto demais pros nossos bracinhos. Comer amoras começou a ser legal depois dos 12 anos, ou a partir de 1m40.

Mais convidativas eram as mangueiras, cheias de galhos grossos que pareciam ter sido esculpidos pras nossas aventuras de escalada, e que ficavam bem mais atraentes com a ajuda de uma cadeira estrategicamente posicionada. As boas eram as mangas Carlotinha, que eu jurava terem sido batizadas assim pela minha mãe (que então tinha a mania de cantar músicas que eu também jurava terem sido inventadas por ela, mas isso é outra história). E sim, já sabíamos que as mangas eram da natureza, e por isso cravávamos os dedos casca adentro e comíamos as Carlotinhas lá no topo das árvores, e deixávamos o líquido laranja escorrer, e chupávamos o caroço, e às vezes até o roíamos um pouquinho até sentir os dentes cheios de fiapos. E se desse preguiça era só sacudir um pouco os galhos que caíam as mangas, e tinha dias em que nem precisava e que descobríamos as frutas esparramadas pelo gramado, ou entre os dentes dos cães sortudos que as atacavam com igual prazer.

As mangas em abundância viravam uma sorte de produtos que comíamos depois do almoço: sorvete, suco e doces que a minha avó preparava, e que lotavam o freezer e a geladeira, e todos tão naturais que nos restavam fiapos nos dentes também.

Difícil mesmo, e bem mais complicado que gostar de goiaba ou alcançar as amoras, e bem mais saborosa que qualquer manga, era a tangerina. Eu nunca me conformei com a sazonalidade da tangerina, e vivia perguntando se já estava na época. Janeiro, fevereiro, março, abril, maio, todo mês eu perguntava, na esperança de que algo pudesse ter alterado o curso da tangerina na história do mundo, ao menos do meu mundo. Pra piorar, não havia pés de tangerina na casa de campo. A época de tangerina, portanto, era a mais aguardado do ano, e passava tão rápido que dava vontade de chorar. Eu perseguia o sorveteiro (Itália) na praia, e na maioria das vezes era obrigada a um confronto cruel (e suado) com a realidade: tangerina não tem, serve manga? Era tão frustrante que eu comia o sorvete de manga desbaratinada enquanto, sem querer, levava à morte por pisões meus pobres castelos de areia.

27 anos se passaram até eu dar de cara com tangerinas no supermercado em janeiro. Eu nunca cogitei que se pudesse comer tangerinas em janeiro, mais dramático, até: eu me conformei que não comeria, nunca, tangerinas em janeiro, e condicionei todo meu amor por tangerinas para a época em que elas floresciam.

De repente pareceu que eu não precisava mais gostar de jabuticabas só em outubro, e que poderia ser viável comer, sei lá, morangos em março. O gosto da liberdade, ainda que eu estivesse meio escondida atrás de uma gôndola de carnes, foi tão mágico quanto alcançar sozinha a primeira amora, tão surpreendente quanto se dar conta de que havia comido mais de cem jabuticabas em meia hora, tão delicioso quanto ter o rosto inteiro besuntado de manga, só que muito mais, como dizer, espontâneo, porque isso sim, ah isso sim: comer tangerinas no supermercado em janeiro foi uma enorme transgressão.

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Aprender a ser só

O banheiro, outrora abrigo constante de borboletas, hospeda agora gordos mosquitos que não saem de lá nem às custas de SBP, e em algum lugar do quarto, provavelmente atrás de todas as coisas empilhadas, eles fazem casa também: minhas pernas indicam que ando pela selva. E não pode ser coincidência que o autor do livro que agora leio seja a) escritor de um personagem que é igualmente devorado por mosquitos, b) filho da Sophia de Mello Breyner Andresen, c) português, d) narrador de solidões.

Sei que parece impossível sentir solidão com tantas picadas de mosquito, e que é incongruente isso em janeiro, inexplicável, até. Mas sim, me acomete às vezes sentir uma que parece pior que todas as outras, que dá junto com uma saudade desconjuntada de pertencer a algumas vidas que me deixaram de lado, que vem junto com o balanço de mar em praia lotada, que me angustia tanto quanto boiar sem óculos e, portanto, sem saber ao certo a distância das ondas que a qualquer momento podem me engolir.

E são tantas as solidões que me aparecem, não só as minhas, mas as de pessoas que eu pensei que pudesse consolar, as de gente que eu achava que sabia ouvir, as de amigos que eu jurava que se soubessem acolhidos por aqui, e as de finais tão fortemente anunciados que só podiam ser mentira, e que não eram, e ai que dor.

Solidão de filme de ficção, de capa de revista semanal, das manchetes, das missas, de mais de quinhentas páginas na mesinha de cabeceira, de acordes e ritmos lentos que se demoram mais que o sol, e uma certeza de ser tão só que escorrem lágrimas genuínas de pequenos roxos que se acumulam nos joelhos.

Logo passa. É verão e já se fala em carnaval, já se pensa em fantasia e nas irresponsabilidades consentidas, nos disfarces e máscaras necessários, nas serpentinas e alegrias já tão treinadas que aplacam chororô, pelo menos até a quarta-feira de cinzas. Até lá, aumentar a lista de resoluções de ano-novo: 1) evitar as pancadas no box do chuveiro, 2) entender o final das coisas, 3) tomar complexo B ou mudar a marca do spray repelente, 4) jamais entrar no mar desacompanhada.