quinta-feira, novembro 18, 2010

Esta noite sonhei com um verso de Sophia. Sonhei que o tinha escrito eu. Fiquei tão feliz que continuei a sorrir mesmo depois de acordar. 'O senhor professor parece que viu Deus em toda a sua glória. Ter sido Sophia durante alguns segundos não anda muito longe, parece-me, da glória de ver Deus.'

José Eduardo Agualusa em Milagrário Pessoal, páginas 19 e 20.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Domingo no Parque

Brotam flores das cabeças nesse domingo, estamos no Parque sob uma árvore, tomando notas mentais, alheios às milhares de lagartas que nos olham por entre os galhos e folhas, possivelmente atropelando formigas. Tudo derrete lá fora, desde o sol até as solas emborrachadas dos nossos sapatos de verão, as saias rodadas das moças e as vozes encolhidas nas sombras. Dedos no botão de disparo, frames ensaiados antes de começar um balé. Ainda existe centopéia? Onde? Alguns vaga-lumes dançam à noite na minha sala, para espanto do cão e de todas as crianças que ainda vão chegar. As pessoas aguardam num círculo, um homem de meia-idade parece dormir recostado num tronco, uma toalha cretinamente xadrez cobre parte do chão, provavelmente atropelando formigas também. Não tem sorvete nem rosa nem roda-gigante nem faca. Em vez de amor, cobiçamos alguns doces e espumas cor de champanhe. Tudo parece tão surreal que se a era de aquário despencar sobre nossas cabeças talvez a gente entenda e aprecie toda a performance que se desenrola diante de nossos olhos. Agora além de flores brotam espessas gotas de suor de nossas têmporas, jorra água do chafariz e percebemos como o verão é cruel em nos fazer sair mais cedo. É mais fácil gostar das coisas no inverno. Saímos do Parque sem conseguir enxugar da testa toda a incompreensão, com a triste lembrança de que em vez de voar ou nos enfeitiçar com seus passos de dança, a bailarina, coitada, desabou no chão.

terça-feira, novembro 09, 2010

Migrações


(para cinco ou seis pessoas que me ensinaram a dançar)

É uma coleção de adeus temporários, desconfiança e temor de que um dia seja definitivo, piruetas cada vez mais sem eixo, desequilíbrios, braços que se atrapalham no ar. Há muito que deixamos de escrever nomes e inventar pessoas com os pés, nos últimos anos a gente substituiu a enorme seqüência de saltos por alongamento, xingou todas as gerações passadas e futuras tentando melhorar o posterior de coxa e carimbou os cotovelos de roxos e rolamentos quase senis.

Ficamos velhos. Não aquela velhice dos anos que passam, não aquela cronologia lógica do tempo, mas outra, ferrugens que se alocam nas engrenagens mais especiais, as que faziam minhas pernas parecerem infinitas, as que faziam minhas mãos parecerem sublimes. Ficamos tontos. Giros toda terça e quinta, ensaios e contagens confusos, poesia pra delinear o espaço, frases tão bobas que nos faziam dançar: sopros, setas, músicas, fechar de olhos, pausas, qualquer estímulo, no fim aquele sofá, uma lata de coca-cola gelada ou outra contravenção.

Ficamos tão distantes... Ceará, São Conrado, Barra da Tijuca, Copacabana, NY, até a Gávea agora parece um país para o qual não tenho visto ou passaporte. Não sei me entender sem as pedras, sem uma ou duas faixas arranhadas daquele disco, sem o chão que de repente deixou de escorregar, sem os tapetes que protegem o cóccix.

Ficamos tão magros, criamos joanetes, eu tirei os óculos e agora nem sei onde te procurar. Ficamos abandonados de todas as coisas que eram nossas e agora parece que falta gente pra entender minhas piadas. Falta gente pra você? Te faltam descontroles?

É uma sucessão de lutos. Eu nunca quis todos os recomeços que busquei, eu encontrei o lugar onde queria estar desde muito cedo, segui porque foi tão fácil encontrar casa em outras vozes e deslocamentos, tão natural e confortável, sempre obedecendo as ordens que eram dadas depois do tchau: continua. Sempre a mesma recomendação dada em tons semelhantes de fascínio. “Não pare” mais uma vez. Mas foi ficando tão mais complicado, as possibilidades foram se esgotando, os intervalos se alargando e quando me vi tão suada e só, tão sem todos, eu parei.

terça-feira, novembro 02, 2010

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Eu não gostava de ler biografias, na verdade sempre as abandonava às metades e montava torcida secreta e solitária pro biografado morrer logo, por que é que essa gente precisa amar tanto assim, eu perguntava, e com essas justificativas eu podia vislumbrar todo o falatório que eu poderia ter com o sujeito de óculos e casaco verde que se aproximou pra conversar, mas não, me desculpe, eu não socializo em livrarias, não com 3 livros no colo, costas curvadas pra frente, banco de madeira e o Jimmy Page sem ter ainda idéia de quem era Robert Plant.
Pouco depois ela disse que eu estava ranzinza e velha, e eu estava mesmo e além disso estava também sonolenta, alérgica, chata, sem assunto e com uma quantidade inaceitável de cabelos brancos, vibrando com a descoberta de uma prateleira intitulada “autores lusófonos” e indisposta a qualquer tipo de abordagem, fosse do sujeito de óculos e casaco verde ou do vendedor me oferecendo ajuda, o que ali, naquele lugar, nunca acontece, ufa. Eu poderia ter concordado quando ele disse que ficava sempre à espreita pra ocupar uma das poltronas caso elas se esvaziassem, mas o achei bobo por pensar que alguém seria generoso assim, dei um risinho condescendente, peguei os livros, fui ao caixa, deixei dois pelo caminho e voltei pra casa com uma certa dose de som e fúria.
Ela disse que eu poderia ter sido menos ríspida, eu disse que não fui ríspida, ela insistiu que sim, eu respondi que ela nem estava lá pra ver e que as pessoas que iniciam conversas com desconhecidos devem saber, ou ao menos aceitar, que tem gente assim feito eu: ríspida.
Bandeira branca pra ela, eu não estava em condições de discutir, eu não tinha argumentos pra nada, eu não tinha mais nada além de uma preguiça e de uma apatia que eu não sabia como vencer, pior, que eu não queria vencer. Ela disse que também andava assim, e combinamos jantar pra resmungar juntas e maldizer todas as pessoas felizes de batom e visão política, salto e óculos e casaco verde, será que todo mundo que trabalha demais fica chato assim como nós? Será que todo mundo que tem o coração quebrado recorre a “autores lusófonos”?
Eu tomei muito gin tônica aquela noite, até o meu drink parecia ultrapassado e demodê, eu sentia calor e minhas bochechas ficaram rosadas no primeiro gole, eu dormi atravessada na cama sem nem um lençol, esqueci de mandar uma mensagem pra ela avisando que tinha chegado bem e ela esqueceu também, cheia de ice-tea no sangue, e acordei vomitando tanto que resolvi dar um mergulho no mar.
Naquele dia o sol não durou muito, eu encontrei três pessoas na praia e inventei outras duas que não eram reais. Naquele dia eu fui ao cinema e depois conheci um novo Baixo, conversei bobagens com amigos que há muito não via, bebi moderadamente e respondi a tantas perguntas que fiquei besta de ver. Naquele dia as pessoas queriam saber se eu tinha gostado daquele balé (não), porque eu continuava de óculos ( ), como estava o Roberto (eu não sabia, mas eu estava com saudades do Roberto), quando a Cissa ia embora (e eu não queria pensar ainda que a Cissa ia embora), onde eu andava saindo (em casa), se eu gostava do Mia Couto (coração) e o que eu estava lendo (autores lusófonos).
Aquele dia me deu vontade de voltar a escrever, de encontrar as pessoas, de, quem sabe, voltar à livraria e responder com mais boa vontade as possíveis perguntas do sujeito de óculos e casaco verde e de repente saber o que ele gostava de folhear por lá. Naquele dia eu percebi que as coisas continuavam boas, era eu que tinha desaprendido de gostar. Naquele dia derrubei todas as paredes flácidas que eu tinha erguido, dancei e gargalhei como se ouvisse música, comi feijão com arroz como se fosse o máximo.