terça-feira, novembro 18, 2014

Bilhetinho para M.P.

Toda vez que novembro chega eu acho que a progressão do cansaço está diretamente ligada com o passar dos meses, como se o calendário, afinal, fizesse algum sentido cumulativo sobre a minha disposição, quiçá da humanidade. Não deveria ser: o meu ano novo em 2013, por exemplo, foi ali entre setembro e outubro, ainda que tenhamos estourado fogos e quebrado taças no Reveillon.

Estou tão gasta que fiquei até cafona, simplesmente não tenho capacidade de abrir o armário e entender o que se pode combinar com o quê. Eu percebo nessas coisas: todo arroz gruda na panela, faço suco com os ingredientes que encontro, mesmo que fiquem pela metade, deixo o mesmo disco no repeat, desisto de brigar com e/ou de me render a ele e fico nesse limbo em que nada acontece. Nenhum beijo, nenhuma ruptura dramática, uma sucessão de ponderações, análises, dúvidas, livros que nunca serão publicados e quando me dou conta perdi as chaves da casa de M. Parece aquele filme em que todas as manhãs o sujeito acorda no mesmo dia, um em que alguém fatalmente ficará sem chaves, sem saco e sem saber. É claro, o chaveiro estava numa outra bolsa, mas por um momento pensei que havia alguma espécie de maldição.

Você sabe diferenciar cisma de paixão? Ou é a mesma coisa? Hoje vi num site de listas um par de brincos redondos com a cara da Sylvia Plath estampada e é claro que pensei em você e gargalhei. Hoje vi, também, um farol onde as pessoas podem se hospedar, e agora me pergunto por que nunca pensamos nisso antes. 

Talvez seja bom sair de férias em dezembro, ter a perspectiva ilusória de que janeiro será janeiro e que alguma coisa, como naquela primavera, vai mudar. Ainda que tudo acabe voltando.


Por favor, não se tranque pra fora de casa. Mas caso o faça, me chame pra esperar o chaveiro com você. Ele pode querer esquartejar duas pessoas. 


quarta-feira, novembro 12, 2014

Panorama - dias 2 e 3

Um a um, seguindo as instruções da mulher sentada na mesa de som à direita do palco, os atores do teatro Hora adentram a cena, se posicionam no centro e encaram a plateia por cerca de um minuto – um ou outro se vira e dispara em direção à coxia em questão de segundos. Outra vez, e ainda individualmente, os mesmos atores voltam ao palco para dizerem seus nomes, idades, profissões e deficiências. A maioria dos atores da companhia suíça têm síndrome de down e reencenam em Disabled theater a relação que estabeleceram com o anticoreógrafo francês Jérôme Bel, também chamado por críticos e especialistas de um “provocador” da dança.
As instruções seguintes, então, determinavam que os atores escolhessem uma música e executassem uma coreografia. Bel escolheria as melhores para compor a performance. Todos os atores permanecem no palco, sentados em cadeiras em semicírculo, enquanto os eleitos dançam.

A trilha vai de Charleston a Michael Jackson. “They don’t really care about us” é dançada ipsis literis por Julia Häusermann, que até o momento de seu solo tentava chamar a atenção do rapaz sentado a seu lado, o mesmo que tem um certo grau de autismo. Julia se joga languidamente no colo do garoto, depois de demonstrar uma energia pélvica de dar inveja, arrancando ainda mais aplausos. Os atores também se agitam nas cadeiras em movimentos ora sincronizados, ora espontâneos, marcando batidas ou frases das canções escolhidas com os pés ou erguendo braços e punhos, às vezes cantando trechos.

Em seguida, os atores voltam ao centro do palco para dizerem o que acham da performance e do trabalho com Bel. Um deles reclama que queria dançar também, expondo sua mágoa com o diretor, que acaba cedendo aos apelos e dá mais tempo para a execução das coreografias que haviam sido deixadas de lado. Julia aproveita o momento para reclamar que queria mesmo dançar ao som de Justin Bieber, ao que é atendida. Ela canta “Baby” com emoção: é a grande estrela da noite. Saímos do (xexelento) Carlos Gomes encantados por ela.

Por fim, eles agradecem com a vênia habitual, o público delira e eu não sei o que fazer. Fico atenta aos comentários da plateia à saída do teatro, converso com um casal de amigos que também estava lá, leio mil críticas e mando os links para eles, porque teremos tempo suficiente do Centro à Cidade das Artes, no dia seguinte, para debater tudo o que for pertinente. A única coisa que concluo é que morro de preguiça, e então para mudar de assunto conto para eles que uma vez, há uns anos, denunciei um foco de mosquito que havia no lobby do teatro. Era o auge da dengue e havia uma espécie de disque-denúncia de focos de mosquitos, o que provavelmente ainda existe, e você podia acompanhar o desenrolar das ações municipais.

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A Cidade das Artes é quase tão desoladora, numa outra esfera, quanto o Carlos Gomes, e nunca sei se as obras estão prontas ou se ainda faltam coisas – grama, acabamentos e afins – mas também nunca sei se a Travessa de Botafogo está completamente concluída.


Drumming é uma coreografia de 1998 do Rosas, a companhia belga de Anne Theresa de Keersmaeker. Com música de Steve Reich e figurinos de Dries van Noten. Drumming é exaustiva, composta de uma sequência de movimentos e gestos espiralados, e te coloca num transe, parte por causa da música, parte por causa da dança. Uns acham datado, outros saem da grande sala reproduzindo braços e pernas aqui e ali e eu não sei o que fazer, mas por outra razão. Drumming, para mim, é até meio simples: gente dançando num patamar de excelência bonito de se ver. É mais ou menos o que eu quero, sempre. 


domingo, novembro 02, 2014

Panorama - dia 1


"You were born naked and the rest is drag."
Ru Paul 

Trajal Harrell está na porta do Teatro Café Pequeno cumprimentando cada um que chega para assistir seu número. Ele é um negro americano baixinho com olhos que ocupam quase todo o seu corpo e que imagina o que teria acontecido se alguém da tradição Vogue tivesse encontrado os bailarinos pós-modernos da Judson Church em 1962, em NY. Por acaso eu mais ou menos sei um pouco das duas coisas, e o que me leva até ali numa tarde quente de 2012 é justamente a expectativa de ver uma possibilidade desse encontro impossível. Poucas pessoas têm a mesma curiosidade que eu e quando fica evidente que ninguém mais vai aparecer ele nos convoca a sentarmo-nos em círculo no chão, explica sua ideia e nos distribui textos em uma espécie de apostila. Ele nos avisa que treme em função da intensidade dessa performance e da proximidade com o público. E numa quase escuridão nos entrega a versão XS de seu “20 looks or Paris is burning at the Judson Church”.

Dois anos depois entro num taxi com um casal de amigos e comento que sim, sei mais ou menos do que se trata o espetáculo para o qual nos encaminhamos num novembro não menos inclemente. Pouco depois o mesmo Trajal, com seus olhos engolidores, mas agora de cabeça raspada, está na entrada do acesso à plateia do Teatro Municipal, e logo no palco, microfone em punho, contando para todos nós que a versão L de “20 looks or Paris is burning at the Judson Church” não tem qualquer intenção de recriação histórica, mas que se trata de uma hipótese imaginativa que só pode acontecer hoje e agora, conosco. É bom se sentir especial, mesmo que.

Trajal treme. Seu espetáculo pode variar de tamanho e duração dependendo das condições e locais de apresentação. O que nos espera é uma versão que ainda mistura Antígona em cerca de duas horas que ele nos garante que passarão mais rápido do que possamos perceber. Um de seus bailarinos entoa, à capella, o hino da casa deles: “Hit me baby one more time”, da Britney Spears, arranca risadas. A minha solidão também está me matando.

Bailarinos vestidos discretamente de preto e branco dançam músicas pop alternadamente, iluminados por um foco de luz sobre um quadrado branco e já desconfio de que passarei o domingo todo ouvindo repetidamente uma canção da Tori Amos que é quase uma intimação para se jogar. Além de Trajal, são mais 4 em cena, e todos são um acontecimento, especialmente aquele que, calçando saltos vertiginosos e exibindo um peito de pé inverossímil, encarnará o apresentador do desfile de príncipes, sem se dar por satisfeito. O desfile das “mães” vem logo em seguida, e é um pouco mais alentador assistir a tudo isso se você tiver visto Paris is burning, o documentário de Jennie Levingston que retrata os bailes do Harlem dos anos 80, movimento de um submundo gay e transgênero em que a dança Vogue surgiu, em alusão à revista de mesmo nome. O clipe da Madonna ajuda a entender um pedacinho, mas tudo vai muito além, inclusive a performance de Trajal.

À parte qualquer didatismo ou escola de dança envolvidos nesse encontro imaginário, o show de Trajal é louco, divertido, interminável e lá pelas tantas faz pensar que uma versão tamanho M poderia ser melhor. Confesso que a poucos minutos do final abandonei o barco, otimista com a perspectiva de fazer xixi sem fila e divertida com a mensagem de uma amiga que me perguntava “você também está neste suplício travecoso?” – e que, depois que furei o jantar, me desejaria mais 5 horas de “travestis convulsionantes”. Realmente, que canseira. Realmente, que liberdade, e eu que achava que ter cortinas em casa te dava aval para qualquer coisa.

Entre narrações, músicas cantadas pelo próprio coreógrafo, jograis insanos (“Se fossem alunos da CAL num teatro obscuro a gente ia achar uma merda, Julia!”, disse alguém no caminho de volta, e eu ri), fios que se estenderam das mãos de Trajal até os fundos da plateia do teatro por sobre nossas cabeças graças ao bailarino francês pulando de cadeira em cadeira, mitologia, questões de gênero, sexualidade e recortes culturais de coisas que amaria ter visto ao vivo o que sobressai é um mundo tão de Trajal que muitas coisas soam como piada interna. Mas todo mundo se contorce quando ele afirma que deveríamos reivindicar uma Uniqlo à Dilma.

Deveríamos ter tirado fotos do grupo de drag queens que causou furor no Teatro, possivelmente deveríamos ter nos entregado mais quando Trajal conclamou uma festa em todos os setores do teatro e parte do público, resistente, levantou, dançou, gritou, aplaudiu enquanto outra parte se sentiu obrigada a, na expectativa de que aquilo fosse o encerramento tão aguardado.Outros já tinham ido embora há tempos.

Deve ser anarquia. E depois de revirar os olhos seguidamente, eis que fiquei parte do dia seguinte atormentada. Deve ser aquilo que o Salinger diz nas últimas frases do Apanhador: “Don’t ever tell anybody anything. If you do, you start missing everybody.”