terça-feira, agosto 18, 2009

A varanda


As plantas

Eu nunca gostei de cuidar de flores, tanto que na minha varanda eu cultivava aquelas plantas atemporais que ficavam verdes o ano todo. Eram poucos vasos, dois ou três apenas, e também havia a árvore do quintal do prédio, e isso me bastava. O meu sonho de varanda era uma rede, mas no fim das contas o que acabou indo parar ali foi um sofá de vime repleto de almofadas coloridas. Era ali o único lugar da casa em que funcionava o telefone, e portanto a varanda foi ganhando acessórios que atendiam às necessidades das longas chamadas: ventilador, tomada, cinzeiro, copos d’água, frutas da estação, baralho e até uma mantinha que aquecia nos dias mais frios. Eu passava horas na varanda, desfiava histórias sem fim ao telefone para os amigos que moravam longe, confessava amores e ensaiava cometer pecados que nunca passaram de vagas promessas. Eu recontava as últimas piadas que tinha escutado a quem precisasse rir, discutia livros com quem era de livros, tentava convencer um alguns a viajarem comigo, persuadia outro a almoçar naquele restaurante novo e disfarçava em calma (e às vezes em doçura) aquela excitação ao falar com ele. Eu acreditava em todos os conselhos que dava ao meu irmão, e eventualmente me debulhava em lágrimas quando o meu melhor amigo me perguntava: como você está?

Quase sempre eu estava de pijama porque gostava de falar no telefone à noite, quando todas as coisas que eram do dia tinham terminado, quando o cabelo ainda estava úmido e cheirando a condicionador, quando o prédio ficava tranqüilo e propício a abrir correspondências, e quase sempre eu sentia esse desamparo, sobre o qual só era possível falar com ele.

O inverno

Aconteceu então que depois de dois anos, pela primeira vez, choveu durante todos os dias daquele inverno, e porque caía barbaramente a temperatura quando chovia, e porque o toldo não era suficiente pra proteger, e porque o chão escorregava, naquele inverno, eu trouxe tudo pra dentro e fechei a varanda. E, ao fechar a varanda, fechei meu mundo, que ficou em suspenso e aflito, ansioso pela primavera.

O aquário

Nos primeiros dias de chuva eu gostava de ver os pingos escorrendo pelas folhas das plantas, e gostava da sensação de estar seca e protegida atrás do vidro. Gostava do barulho também, que apaziguava em parte a falta de notícias do outro lado do interurbano. Eu imaginava que desabava o céu em todo canto, e que todas as pessoas deviam fazer a mesma coisa que eu: tecer cachecóis, colecionar recortes de revistas e encharcar as pernas de cremes. Pela primeira vez reparei nas outras varandas com seus toldos que pareciam ser mais eficazes que o meu. Notei que os meus vasos eram infinitamente mais feios que quase todos os outros, exceto uns de plástico preto que faziam casa a galhos frágeis que já se tinham quebrado desde a segunda tempestade, numa outra varanda. Mas a chuva apertava e em poucos minutos já não se via nada.

Eu pensava distinguir uma brasa de cigarro que se demorava na varanda em frente, mas a noite deixava tudo tão preto, e a chuva tornava tudo tão turvo que eu julgava não ser possível que alguém fumasse do lado de fora.

O encontro

Na quarta semana aconteceu que pequenos papéis cheios de anotações começaram a chegar. Era sempre o mesmo tipo de papel, provavelmente tirado do mesmo caderno. Dobrados e envelopados cuidadosamente, e deslizavam sob a porta em horários diversos. O objeto de escrita variava, e a caligrafia funcionava em tinta azul, preta ou à lápis (a minha letra nunca obedeceu a nada que não fosse bic preta). Eu estranhei que não houvesse selo, e logo ficou claro que os bilhetes só poderiam vir de alguém muito próximo. Mas não eram bilhetes: logo eu entendi que eram respostas, a muitas das perguntas que eu tinha feito durante os anos em que não choveu. Essas respostas continuaram chegando durante todo aquele inverno, e à medida que o volume da chuva crescia, aumentava a quantidade de envelopes pela porta. Eu respeitava o anonimato do remetente, e me mantinha à distância, sempre na cozinha ou no quarto, e espiava a entrada da sala periodicamente, e esfregava as mãos, porque ficavam geladas e inquietas e afoitas, e vibrava a cada “shoop” por debaixo da porta, e me surpreendia ao reconhecer neles respostas e comentários a muitas das histórias que eu tinha contado e inventado, e muitas vezes chorei ao entender algumas daquelas linhas que falavam de coisas que eu já nem lembrava mais. Eu me indagava como era possível que alguém guardasse tantos detalhes, e como era possível que alguém tão absolutamente desconhecido pudesse saber tudo aquilo: que eu não tinha muita paciência para flores, que eu não lidava bem com quem não gostasse de Raduan Nassar, que o meu riso era de nervoso quando falava com ele, e que eu abreviava domingo de manhã porque me distraía da conversa com o barulho das crianças no play.

Só um dos vizinhos poderia saber que eu adorava desligar o telefone aos domingos pra ficar debruçada no pára-peito achando graça dos risinhos chacoalhantes das crianças pequenas do prédio. Mas eu tinha receio em descobrir quem era, e substituí a curiosidade por uma espécie de conforto, e fiz desses acontecimentos um recanto tão macio quanto as almofadas do sofá de vime. A primavera chegou, e fui eu quem escreveu o último bilhete, que deixei sobre o tapete de entrada do hall para que o remetente recolhesse quando viesse deixar seu envelope: amanhã é 23 de setembro e faz tempo que não tomo um sorvete.

O começo

Eu não recoloquei o sofá de vime na varanda. Resolvi levar adiante a idéia da rede. Era o que me aconselhava um dos bilhetes, o penúltimo, pra ser mais exata. Era o único que usava um papel diferente, maior, colorido, num desses envelopes pardos e grandes.O último bilhete trazia a única pergunta à qual nenhum de nós dois sabia responder: o que acontecera com ele, porque ele não viera me visitar esse inverno, onde tinha ido parar aquele amor.

Eu queria me balançar e olhar o pedaço de céu que me cabia, e esperar que soasse a campainha. Perto do meio dia eu abri a porta e parado diante de mim estava um homem que tinha mais ou menos a minha altura, mais ou menos a mesma cor de cabelo que a minha, que também usava óculos, e que também esbanjava para o mundo a possibilidade de, finalmente, usar chinelos. Eu o convidei a entrar, mas ele sabia que no fundo eu não gostava muito de receber visitas. Busquei a bolsa, e embora qualquer um julgasse que essa situação era completamente absurda, não encontrei qualquer susto na chegada do meu vizinho. Após o sorvete percebi que a brasa de seu cigarro queimava no mesmo ritmo daquela que eu julgava distinguir no escuro. Ele explicou que se sentira muito só naquele inverno, que tinha saudade de ouvir minhas histórias, minha voz, meus engasgos. Ele explicou que foi sem querer que tudo aconteceu, e que por minha causa tinha desistido de parar de fumar. Ele explicou muitas outras coisas de sua vida, que gostava de ver filmes na TV, que mascava chicletes em dias alternados, que preferia campo a praia e que eu ficasse tranqüila porque Lavoura Arcaica era um de seus livros preferidos também. Temi que ele fosse voltar à questão principal desses amores perdidos quando ele disse que também tinha um. Seus óculos embaçaram e achei que era hora de voltar pra casa, telefonar praquela amiga que tinha ido morar longe, saber se o inverno tinha sido generoso para o amigo que escrevia um livro, e roer disfarçadamente as unhas esperando que a primavera trouxesse pra mim ele, e mais: ter a certeza de que meu vizinho estaria ali escutando tudo.

Antes de nos despedirmos, meu vizinho queria fazer uma última pergunta. Duas, ele emendou. A primeira foi tão fácil que até hoje rimos dela: posso voltar? A segunda foi uma surpresa, e o verdadeiro começo dessa coisa que aconteceu logo em seguida: qual é o seu nome?

quinta-feira, agosto 06, 2009

No meu descaminho

Passei dois dias na banheira e quando resolvi sair de casa eu tinha trocado de pele. Mas aquele resto de tristeza ficou, porque era anterior, e porque era abstrata demais pra sair na água.

Me dei conta da calamidade no metrô, quando me vi sentada numa cadeira branca a esperar um trem, mas vários vieram e se foram sem que eu me mexesse. Uma sucessão de trens ia e vinha ao passo que por algum motivo desconhecido o ipod repetia exaustivamente a mesma música, uma que parecia com o sofrimento que sentira nas vésperas daquela tarde.

Depois de um tempo que não sei precisar, um senhorzinho metido em camisa e terno xadrez me estendeu o lenço amarelado que carregava no bolso do paletó. Ele tinha ainda uma camiseta de malha, dessas esportivas com tecido furadinho, que ia por debaixo da camisa.

Percebi que as minhas bochechas estavam inundadas, e que minhas mãos largadas no colo tremiam um pouco. O que fez aquele senhor se aproximar de mim foi o fato de que, embora eu não percebesse, eu cantava.

Eu cantava e chorava um choro doído, e as pessoas me olhavam com espanto e se afastavam com pena e pressa para dentro dos trens ou para as escadas. Umas ainda viravam os pescoços, mas todas seguiam seus caminhos enquanto eu continuava fincada, sem parecer saber que Norte era meu.

Quando finalmente tirei os fones dos ouvidos e polidamente recusei o lenço que o senhorzinho me estendia, consegui distinguir que seus murmúrios eram, na verdade, uma tímida e melancólica cantoria: sim, vai e diz, diz assim que eu rodei que eu bebi que eu caí que eu não sei que eu só sei que cansei enfim dos meus desencontros, corre e diz a ela que eu entrego os pontos.

Ele me contou sua história, e soube descrever tudo o que era necessário, e não mais que isso, pra que eu entendesse, e não era muito complicado e a partir de então tudo foi imediato: eu respirei três vezes e coloquei um dos fones no ouvido daquele senhorzinho, e passamos a tarde juntos a ver os trens que partiam e a cantarolar sem vergonha todo o nosso desalento na estação Cinelândia.

segunda-feira, agosto 03, 2009

Top 5 razões para ser feliz num fim de semana

1. A caixa de chocolates que chega junto com um jantar, que chega junto com ela, que chega nesse exato momento da vida em que eu quero e preciso e adoro conversar com ela, mais do que com quase todas as outras pessoas do mundo.

2. A varanda com flores e passarinhos gordos dessa outra casa que eu tenho, e o cochilo no sofá, após o almoço, com sol batendo na cara.

3. Trânsito na Jardim Botânico, o suficiente pra repetir # 41, do Dave Mathews Band várias vezes, e cantar nãnãnãs no solo de sax, e querer que a vida tenha esse ritmo.

4. Lembrar que existia ainda um livro do Nick Hornby que eu não tinha lido, e que é justamente o que fala sobre canções, o que permite descobrir que mais alguém no mundo além de mim mesma não se importa tanto quanto deveria com o Bob Dylan, e que te faz lembrar de uma música meio cafona que o Rod Stewart cantava ("I can tell by your eyes that you've probably been crying forever"), e que te dá essa vontade doida de saber de novo tocar “Come as you are” no violão.

5. Faz um intervalo na chuva e fica verão domingo. Um dia de praia com toda aquela gente semi-nua voltando a ser dourada, as crianças de baldinho na mão, as ondas batendo no pé, as pessoas sorrindo, os sorveteiros contentes, essa vontade bobinha de tirar fotos de celular dos amigos, e até a iminência de caixotes é uma boa perspectiva. A vida é boa quando tem sol.