sexta-feira, novembro 28, 2008

Fale agora ou cale-se para sempre

Eu vou te explicar: o que acontece é que ele queria casar, entende? Casar mesmo, de assinar documentos, mudar de sobrenome, jogar buquê, assumir essa postura de uma vida a dois e tudo o que vem junto dela: segunda via de RG, assinatura nova no talão de cheques, respostas na segunda pessoa do plural, confusão de óculos de grau nas mesinhas de cabeceira e essas coisas todas. Eu teria que dizer que ele é o sujeito a ser comunicado em caso de acidentes. Eu teria que comprar dois tipos de shampoo no supermercado, e avisar sempre que eu saísse do trabalho mais tarde. Eu teria que telefonar da locadora pra saber se ele já tinha assistido a determinado filme. Eu teria que me convencer de que “nós dois somos um”. Provavelmente eu teria que mudar de operadora de celular pra falar de graça com ele até que a morte nos separasse. E essas não são as coisas que mais me apavoram.

Eu teria que dividir com ele as gavetas do banheiro, e fingir sempre achar normal que os meus cremes ficassem ao lado de uma loção de barba. Eu teria que adotar o hábito de deixar espaço no sofá pra ele, deixar algum tomate na salada pra ele e de repente eu teria que entender que os meus livros conviveriam pacificamente numa prateleira ao lado dos livros dele, assim como os meus discos se alternariam nas caixas de som com as músicas que ele guarda e então eu teria que achar normal que música clássica tocasse no mesmo dia em que um ícone do rock fizesse solos de guitarra. Não é pelo gosto, é uma questão de humor, eu teria que faze-lo entender que em domingos chuvosos só tolero o Bolero de Ravel na vitrola, que a poltrona do quarto é na verdade um cabideiro, que meu cabelo nunca funciona de manhã, que não suporto telefone que toca, que sou da corrente que crê piamente que só camas individuais para os seres salvam, que as pilhas de revistas que nunca vou ler de novo um dia servirão para pesquisa e que preciso, sim, de post-its espalhados pelos cantos e que nunca tenho sapatos suficientes no armário, assim como nunca há a quantidade exata de chocolates na dispensa.

É que essas manias são muito minhas pra de repente serem dele também, e as minhas coisas já estão todas certinhas nos seus lugares, e eu sou muito eu pra de repente virar uma mistura nossa. Deve ser essa insistência que eu tenho de tentar prever e de encontrar defeitos antes. Ou deve ser egoísmo mesmo, deve ser porque eu sou realmente egocêntrica, não importa. O que importa é que eu não arrumaria meus discos em ordem alfabética como ele quer que eu faça, e que eu não disfarçaria o mau-humor quando ele insistisse em achar que eu gosto de acordar. E que eu não conseguiria ter por ele o mesmo amor que tenho pelos meus dias sozinhos e calmos, não conseguiria ter por ele o mesmo amor que tenho pelo meu edredom de solteiro, ou pela mesa do escritório cheia de crayons de cera, ou pelo meu pijama de moletom furado e manchado. Ou por você. O problema é que com ele eu não consigo me acostumar a ficar boba, pelada, gripada, mole. O problema é que com ele eu não consigo me acostumar a ficar sem você. E com você eu invento tudo o que ele só quer inventar comigo, filho, tesão, máquina de lavar, mesa para dois. Com você eu sei que daria certo, que não precisaria de manual nenhum, que eu saberia soletrar o sobrenome e que poderia misturar literatura, acordes, cheiros, verbos, pernas. O problema todo é que com você, eu sei: não haveria separação total de bens.




:: este texto está na Revista EmBranco, do meu amigo Thiago.

quarta-feira, novembro 19, 2008

902


Na Fonte da Saudade, joga-se uma partida de pega-varetas antes que se comece um dia de trabalho (sem fins lucrativos). Não são tão bons quanto os da infância porque são feitos de plástico, os de madeira ficaram para trás. Não se sabe quantos pontos vale cada cor, portanto vence quem pega mais varetas, e baixa-se o rigor nas estratégias, afinal o que importa é divertir-se, e não competir.

Ali bebe-se água natural da fonte que cai direto na garagem do edifício, e muitas vezes as garrafas ficam com gosto de cachoeira. E quando o trabalho não anda, come-se chocolate, joga-se paciência, fazem-se pesquisas sem objetivo em sites, revistas e livros, ou fotografam-se bonecos de toy art.

Na cozinha encontra-se um pandeiro, um livro de poesias de Bukowsky ao lado dos livros de receitas, e panelas de cor vermelha, além de xícaras com jeito retrô para tomar café. Come-se comida de qualidade, consome-se vodca e tingi-se tecido também, desde que o ato espalhe água verde (ou rosa) pelo chão, fazendo bagunça e alegria de todos.

Na Fonte da Saudade dá medo quando chove ou há trovoadas, os ventos são uivantes e vê-se as ondas que a Lagoa começa a formar durante tempestade. Tenta-se distrair com uma caixa cheia de lápis de cera, e faz-se desenhos artísticos enquanto o email não envia as fotos. Na Fonte da Saudade o email nunca envia as fotos.

Em cima da mesa faz-se um monte de versos nonsense com ímãs de palavras, ouve-se música na maioria das vezes estranha e canta-se em coro canções de amor com letras de rimas. Ri-se de piadas sem graça ( e gargalha-se três semanas de piadas realmente boas), especula-se que tipo de coisas entupidas uma roto-rooter poderia desentupir (as que entopem, oras!) e planeja-se uma vida em Paris.

No banheiro verde traça-se um roteiro que inclua uma cena para a qual a melhor locação fosse o banheiro verde, seca-se o cabelo com cuidado e vestem-se os vestidos mais fantásticos acompanhados de arcos e laços na cabeça.

No escritório, on parle le français inventado, alguém ama pessoas inventadas e tudo o mais é imaginado também, as vozes idiotas que falam por lá, as peças de teatro que serão escritas em dez dias e as caras de choro quando o telefone não pára de tocar.

Na Fonte da Saudade há grades de proteção nas janelas. Circulam muitas crianças por ali.




segunda-feira, novembro 10, 2008

O fim das vozes no meu rádio

(para Paula)

- Às vezes eu fico enjoada de todas as músicas que eu tenho e então faço isso, fico escutando tudo o que aparece. E de repente alguma coisa faz UAU!
- E quando nada faz?
- Mas faz, acaba fazendo. Algumas músicas batem de primeira, é claro. Mas sem querer eu acabo dando uma segunda chance. Tiro um cochilo, escuto de novo num outro dia, num outro clima. Acho que tem a ver com o humor, dias chuvosos, por exemplo. Algumas músicas parecem ter sido feitas pra esses dias, devem ter sido criadas sob dilúvio.
- De fato. Eu tenho preferido as solares, as que dão vontade de aprender a tocar bateria.
- Eu ando com vontade de tocar baixo. Isso quando eu não tenho vontade de ouvir umas coisas do além. Acontece isso também, uma música que fica martelando na minha cabeça de manhã, geralmente nostálgica, quase sempre duvidosa. E é como se só a execução contínua da tal música pudesse salvar o dia. E é mais que uma vontade, é um precisar muito definitivo.
- É quase drástico, credo!
- É, é drástico...
- Exemplo?
- Ah, não, isso eu não digo.
- Por que não? Qual é o dilema?
- O dilema é que você vai me julgar.
- Você me julgaria se soubesse dos lapsos que eu tenho na vida, e alguns são bastante graves.
- Como?
- Como só ter começado a escutar David Bowie esse ano. Pior: descobrir que eu sempre adorei uma música sem saber que era dele.
- Como você só começou a escutar David Bowie esse ano?!
- Olha aí, julgamento.
- Está certo. Você merece saber: hoje acordei com muita necessidade de ouvir uma música do Kid Abelha.
- Kid Abelha! Na época dos Abóboras Selvagens ou depois? Ou quando eles tentaram se chamar só “Kid”?
- Da fase Kid Abelha mesmo, de quando cantávamos Fazer Amor de Madrugada nas festinhas. De quando jogávamos as mãos para o céu e tal. Quando a gente vivia em show do Kid Abelha no Metropolitan, lembra? Quando o Metropolitan ainda era Metropolitan.
- Claro! Quando o Prince ainda era Prince, o Jota Quest ainda era J. Quest... Por que a gente gostou tanto assim do Kid Abelha, hein?
- Vai saber. Acho que porque a gente achava tudo possível naquele tempo. Se a Paula Toller fazia sucesso com aquela voz...
- Mas por que você queria tanto ouvir Kid Abelha? Qual música? Não vá me dizer que era Grand Hotel...
- Não! Pior...
- Pior do que ter passado a vida toda gostando de O Astronauta de Mármore e deixado um cd do Nenhum de Nós na prateleira só por causa dessa música e só depois de a-nos descobrir que é uma versão do Bowie?! Você tem idéia do que eu passei pra justificar a presença daquele cd ali no meio dos outros?! E ninguém nunca me disse que era uma versão!
- Eu tive um sonho, vou te contar.
- Que sonho?!
- Não, eu tive um sonho, vou te contar, eu me atirava do oitavo andar, a música do Kid Abelha!
- Aaahhh!
- Pois é... Pelo menos eu sabia que música era, pior é quando eu acordo precisando de uma música e não sei qual. Parece que falta inventarem alguma coisa nova.
- Isso acontece sempre nos dias nublados.
- Dias nublados são bons para ouvir Hootie and The Blowfish.
- Você tem escutado alguma coisa desse século?!
-Você tem escutado Ziggy Stardust pela primeira vez na vida. Acho que você não está em condições de questionar meu momento musicalmente adolescente.
- Ok, ok, eu me rendo. E confesso que de vez em quando o Lulu Santos ainda canta por aqui.
- É melhor não resistir e se entregar... A gente tinha o que? 17, 18 anos?
- Por aí. A gente gravava fitas com as melhores músicas.
- A gente escrevia partes das letras na capa dos cadernos. O que será que as pessoas escutam hoje em dia? Às vezes eu coloco na estação de rádio pra ter uma idéia do que as pessoas ouvem. Mas me parece que até hoje todo mundo escuta O Último Romântico ou Como Uma Onda. Mas eu só escuto rádio de mãe, então não sei...
- E Carly Simon. Toda vez que toca Carly Simon no rádio eu sou tomada por um espírito revolucionário, como é que as pessoas se conformam em ligar o rádio e ouvirem essa mulher cantando? Eu fico possessa, xingo o locutor, xingo as pessoas que ainda toleram esse tipo de coisa.
- Vai ver os caras das rádios seguem essa mesma política de acordar impregnados de uma música. Mas o que a Carly Simon te fez?!
- Não é ela, é essa coisa, sabe? Uma seqüência de músicas toscas de 20 anos atrás com tanto artista por aí, então a gente tem que fazer investigações pra descobrir bandas legais e pessoas atuais. Teve uma época que eu me dei conta de que só ouvia gente morta, um horror! Minha coleção de cds só não estagnou porque volta e meia saía uma coletânea póstuma de alguém.
-Cruzes! Se a gente tivesse continuado a escutar o Kid Abelha e o Lulu Santos não teria problema, eles vivem com discos novos.
- Eles morreram também, só não querem admitir ainda.
- Pode ser... Outro dia saí pra dançar com uns amigos e não conhecia nenhuma música. Nem umazinha. Me senti uma tiazona, sabe? Por fora.
- Sei. Acho que é assim mesmo, acho que é assim que se começa a envelhecer, talvez eu esteja sendo dramática, mas acho que é por causa dessas coisas que a gente acaba voltando aos clássicos.
- Ou ao contrário? Por causa dessas coisas que eu fico dias nas lojas ouvindo discos.
- É, só que pra mim isso só piora, é o mesmo que acontece quando entro numa sorveteria, são tantas opções que acabo sempre indo para os clássicos. Acabo me dando conta de que tem tanta coisa nova no mundo e ao mesmo tempo caio na real desses lapsos, penso no Bowie, no Velvet e resolvo preencher as lacunas.
- Faz algum sentido. O problema é que eles já estão prontos pra gente gostar, né? É menos arriscado e aí acontece aquilo, uma discoteca de shows que a gente nunca vai ver.
- Eu sei. Mas imagina se numa dessa tarde de aventuras eu fico escutando as músicas da Katy Perry enquanto eu poderia ouvir todo o Supertramp?
- Ou Hootie and The Blowfish, se tiver nuvem no céu...


:: She's uncertain if she likes him
But she knows she really loves him

David Bowie in Drive-in Saturday

quarta-feira, novembro 05, 2008

Marcha ré

Quando a gente se encontra e você é glacial, quando a gente se encontra sob nuvens esparsas em céu cinzento, quando a pele não gruda e o abraço não derrete e o olho não brilha, quando a gente se encontra e tudo fica turvo, o cabelo fica fosco, quando você olha através pra ver quem vem atrás, quando a gente se encontra e vê que não sobrou nem fagulha nem destroço, quando a gente se encontra e não faz mais diferença, quando a gente se encontra e eu fico à beira do abismo gritando sem escutar meu próprio eco, quando a gente se encontrar de novo finja, cole teus lábios na minha bochecha por mais algum segundo, quando a gente se encontrar de novo disfarce um pouco, quando a gente se encontrar me atordoe, pode ser teatro, não suporto me sentir tão comum.