quarta-feira, dezembro 28, 2011


estou no ar
sem garantia ou validade
em várias estações no ar
o coração vibrando em overbass
não há, não há explicações, não há
sou agora assim
simplesmente
cansei
de ser
como deveria ser

vou agora assim
seguindo em direção alguma
agora sim
partindo
o chão com meus pés

aberto para balanço
vou errando as previsões
quantas danças você me dá?
quantos passos pra pisar?

sem garantia ou validade
sem previsões de tempo
não me espere
vou
sem torre de comando
alço voo
faço
meu próprio vento

Omar Salomão in Impreciso, Dantes Editora.

sexta-feira, dezembro 23, 2011

Fax


Pedro Lago sugeriu um texto sobre beijo na boca, de língua. A Bel me deixou uns quinze dias pensando na inexplicabilidade do fax, entre outros. Voilà. E feliz natal.

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Manual para fazer origamis, porque dobraduras são as primeiras trocas que se estabelecem com qualquer um. Saber o que esconder é vital, se os defeitos, as qualidades, os vícios. Indicações para construir seu próprio pássaro. Ela responde de letra corrida dizendo “ok, deu certo”. Para enviar, aperte o botão verde.

Bilhetinho de bom dia, mesmo que não seja todo azul. Uma foto de montanha, quase não dá pra ver direito. Cartão de visita, trecho de livro, extrato bancário pra programar as férias, página de revista, receita de nirá, versinhos meio bobos sem rima, notícia de jornal, um fio de cabelo, cinzas de um incenso, uma manchinha de sangue da ponta do dedo pra ter certeza de que é real, mesmo que tudo perca a cor.

E tudo o mais que pode passar de um país pro outro com o mesmo mecanismo de apertar o botão, fazer a folha rodar e se materializar tão longe. Até bula de remédio analgésico: perceba como dói minha cabeça só de não estar perto de você.

Letra de música: piscinas de silêncio, hinos do sem lugar.* Tenta imaginar como é o ritmo: é o primeiro bocejo depois de uma tarde toda no mar. A voz: é uma respiração tão funda e quieta.

Ele fica aguando tudo o que não pode reter. Dobraduras gastas, beija a máquina como se a saliva pudesse atravessar, língua frenética, como se ela fizesse o mesmo do outro lado, como se a temperatura das bocas, como se o esbarrar de dentes, como se fogo.

Retalhos de língua, finas camadas colocadas sobre o papel como se fosse um quebra-cabeças. O delírio dos cortes, a mensagem urgente: aqui sou eu, enlaçando a tua cintura. Peles dos lábios nas margens. Se pudesse, arrancava um molar. Te dou uma leve mordiscada no lábio inferior. Gosto de sugar sua língua e depois cravar a boca no teu pescoço. A folha se encharca de sangue. Para enviar, aperte o botão verde. Setas que indicam pra onde a língua roda, duração dos segundos, e começamos um novo movimento. Para enviar, aperte o botão verde. Começo a perder o fôlego. Aperte o bot. (apito). Ap. (FALHA). Para enviar. Aperte.

* in Acalanto, de Arthur Nestrovski e Zé Miguel Wisnik, do disco Indivisível.


sexta-feira, dezembro 02, 2011

André quer transar


Ou melhor, André precisa transar. Não é um palpite, é uma constatação do próprio, que postou tal afirmativa em sua página do Facebook. Ele não escreveu: “quero”, “gostaria de” ou “estou com saudades de” transar. André foi categórico: “Preciso transar."

André disse que precisava transar numa noite de quinta-feira, justamente o dia em que eu já pensava que queria transar também. Segundo uma reportagem da revista Alfa, quinta-feira é o melhor dia para fazer sexo (a mesma pesquisa afirma que a sexta-feira é o melhor dia pra parar de fumar, mas isso ninguém reparou). Não sei se o André leu essa matéria ou não. O fato é que André precisava transar, e eu fui tomar banho. Frio.

Uma ducha fria diária: ajuda na prevenção do envelhecimento; libera pequenas quantidades de endorfina, diminuindo assim a ansiedade, a depressão e a fadiga; melhora a qualidade do sono quando tomada antes de dormir; abaixa ligeiramente a temperatura corporal (pense no princípio do “congelar conserva” e voilà) e tem menos impacto ambiental que um banho quente. Isso eu li num livro naquela tarde de quinta-feira, no trabalho. Por uma razão bem óbvia e consoladora, o autor da obra em questão aborda os benefícios da ducha fria diária depois de ter exposto que: relações sexuais regulares nos protegem, no sentido de moderar a aparição de diversas doenças, como cânceres e doenças cardiovasculares; 3 relações sexuais por semana aumentam em 10 anos a expectativa de vida; 21 ejaculações mensais previnem contra o câncer de próstata.

Minhas endorfinas e eu saímos do banho frio. Mas eu ainda queria transar. E André também. Pior: André precisava transar, e eu começava a concluir que: eu também. Precisava. Transar. Pensei em quantas duchas frias o André devia ter tomado antes de concluir que precisava transar. Quanta água gelada o André teria gasto antes de anunciar aos quatro ventos que precisava transar.

Foi fácil admitir. Difícil seria a conversa que eu teria com André antes de transar com ele. Evidentemente eu não era a pessoa mais indicada pra transar com o André naquela quinta-feira, visto que eu queria, antes de tirar a roupa, estabelecer um estatuto em concordância com as minhas vontades e as vontades do André, pra me cercar de possibilidades de que aquilo seria bom pros dois (porque, cá entre nós, sexo casual comigo nunca dá certo). Achei que era necessário criar algumas regras pra essa trepada, só pra ficar tudo esclarecido: André poderia tirar minha roupa, desde que não rasgasse nada; strip-tease estava fora de cogitação, sou muito atrapalhada; tapas não rolam; mordidas, só no pescoço; evitar posições que possam despertar hérnia de disco (de quatro, por exemplo); evitar preservativos com sabor ou cheiro de frutas (ânsia de vômito); evitar trilha sonora; nunca, em hipótese alguma, ligar o shuffle do iTunes; não dormir de conchinha; telefonar no dia seguinte. Ok, telefonar no dia seguinte era uma cláusula que não fazia o menor sentido pra esse tipo de sexo que o André precisava e eu queria. Precisava.

Escolhi um vestido preto de malha, básico, sem muito desespero ou castidade. Salto alto era indispensável. Sem batom. Quando entrei no carro, uma rádio anunciava exatamente as previsões para o meu signo naquela noite: eu ia encontrar um grande amor. Fiquei confusa. “Amanhã de manhã vou pedir o café pra nós dois”, cantava o Rei quando dei play no cd. Tudo naquele dia parecia um roteiro escrito onde o final só podia ser exaustão a dois numa cama. Em que momento o amor entrava na história ainda não estava claro pra mim.

E foi então que tudo se iluminou: André era um estrategista. Com seu desabafo virtual, André estava arranjando sexo pra muitos e muitos dias. Ia chover gente na horta dele. Por minha parte, eu ia transar com André aquela noite e ia passar o resto do ano tomando banho frio, até no inverno, enquanto ele talvez começasse a recusar trepadas. Numa terça-feira próxima (dia mais propício ao trabalho, segundo a revista Alfa), André escreveria: “Não aguento mais transar.”

Quando cheguei ao restaurante onde meus amigos me esperavam pra jantar, anunciei:
André precisa transar. Eles não tinham ideia de quem era André. Sequer sabiam se André era alto ou baixo, gordo ou magro, e percebi que nem eu sabia mais qual era a cara do André. Fazia meio século desde uma noite em que, bêbado, André enfiou a língua na minha boca e me beijou. Agora parecia até ridícula a ideia de transar com André, porque se a gente não trepou naquele dia, não ia trepar nunca mais.

Minha quinta-feira terminou com a rotina de lavar o rosto, passar creme hidratante e programar o despertador pro dia seguinte. Sem sexo. E sem um amor novinho em folha. Na sexta-feira, antes de sair para trabalhar, lá estava o anúncio de André com muitos, muitos comentários. Cliquei "Curtir" e escrevi: eu também. Entrei no banho. Decidi parar de fumar.

quarta-feira, novembro 30, 2011

Carta a G.


Caro,

Faz dois ou três dias que escrevo na minha cabeça um epitáfio para esse blog. Não é a primeira vez que pego em armas e faço ameaças contra mim mesma. Tampouco é a primeira vez que afirmo que dessa vez é de verdade. Mas dessa vez, receio que seja de verdade.

Vou te explicar.

Estou chata. Embora eu mesma tenha levantado uma bandeira a meu favor, o fato é que, recentemente, nada acontece. Até a natação perdeu o sabor, desde que me convenci de que é inviável morrer afogada na piscina, alcancei certa tranquilidade e hoje saio da aula achando que poderia ter nadado ainda uns 100 metros. Bizarro, não é? Minha nova persona é assim: comprei um par de tênis pra correr na orla, apliquei dinheiro num fundo de investimentos e desenvolvi uma doença de pele cuja causa principal é um “estado psicológico”.  Devo evitar, entre outros, bebidas quentes, álcool e vento. Como é que se evita vento? O tratamento homeopático pra alergia, por sua vez, proíbe cânfora, mentol, eucaliptol, trident, bala halls, salompas. Penso em voltar pra análise. A lista do que não fazer é tão grande que me restam poucas coisas.

Meus novos amigos são bebês que acham graça das vozes que eu sei fazer, e das músicas que gosto de cantar. Eles também riem de coisas bobas. Eles não discutem Belo Monte, USP, crise na Europa, o poder da China e, provavelmente, também acham que esse conceito de fuso-horário não faz o menor sentido.

Tá tudo assim: morno. Em seu Bartleby e Companhia, Vila-Matas cita: “Muitos anos depois, Beckett diria que até as palavras nos abandonam e que com isso tudo está dito.” Em Luz em agosto, Faulkner escreveu: “Quero dizer como eu disse a você uma vez que existe um preço por ser bom como por ser mau; um custo a pagar. E são os bons que não podem recusar a conta quando ela aparece.” Eu sei, não tem nada a ver. Mas tá vendo? Eu poderia fazer um blog só de citações imperdíveis.

Não falo isso em tom de reclamação. Clayton Fabio, o astrólogo, disse que era tempo de ficar empacada mesmo, mas que em breve isso passa. Espero que sim. Espero, também, que esse curto relato do meu paradeiro aquiete suas expectativas.

Cordialmente,

domingo, novembro 06, 2011

This could be the first trumpet*


Uma sexta-feira de julho

Tudo deu errado com os músculos que sustentam e envolvem a escápula direita. Nada mais funciona: pescoço, ombro e mesmo o braço parece que vai despencar de tão pesado. Prometi passar no lançamento do livro de um amigo. Confirmei presença num jantar na casa de uma amiga onde certamente não vou conhecer ninguém. Socializar com contratura muscular é tão complicado quanto fazer baliza em dia de torcicolo. Deixo o livro do amigo pra depois, compro a garrafa de vinho pedida pela anfitriã e rezo, quase me ajoelho, pra que tenha maconha. Faz uns 10 anos desde a última vez que fumei maconha, e depois de ter tentado alopatia, bolsa de água quente, cânfora, fisioterapia, massagem, relaxante muscular e Lexotan, me apego à possibilidade da cura fitoterápica. Um trago (tapa?) na maconha alheia e tenho certeza que tudo vai dar certo de novo nas proximidades dos músculos rombóides. Chego ao Humaitá, o vinho na bolsa, fecho os olhos antes de tocar a campainha. Eu deveria conhecer o homem da minha vida nesse jantar, mas agora só consigo pensar no momento em que alguém vai perguntar “e aí, vamos fumar um?”. Meus passos, de repente, parecem passos de reggae. Meu colar de pérolas poderia facilmente ser substituído por um colar de conchas. Amanhã vou à praia na Joatinga, penso. Com o Bruno. Todo mundo conversa sobre artes plásticas com a propriedade de quem comenta o tempo no elevador. Todo mundo bebe vinho e trabalha com cultura, e eu só sinto uma dor lancinante que me define como alguém que sofre. Muito. Quando o sujeito louro e baixinho sai à caça de um isqueiro, me instalo na poltrona e agarro meu terço imaginário: faz uns 10 anos desde a última vez que fumei maconha, ri feito uma demente, e agora toda essa gente aqui vai testemunhar. Mas que nada. É uma sexta-feira de julho de 2011 e todo mundo está eufórico pra fumar sálvia. Eu pensava que sálvia era ingrediente de pizza, salada ou horta. Um tititi se arma em torno do sujeito louro baixinho, uma euforia maior que a que se desencadeia quando anunciam que o Strokes vem ao Brasil. Esse é o retrato da minha desolação. Não tenho ingressos pro Planeta Terra, não tenho maconha pra fumar. Amanhã não vou à Joatinga com o Bruno porque é inverno e o sol vai embora de lá bem cedo. Aproveito a ocasião pra recuperar minha bolsa e saio de fininho pensando desde quando as pessoas fumam sálvia. Sálvia. Amanhã vou à feira.



Quinta-feira à noite, setembro

É sempre o pior dia pra se chegar em casa, a cidade empaca, o horário de verão ainda não começou e eu li uns 4 livros naquela semana. Tudo ao meu redor alucina, e ao parar na praia de Ipanema quase em frente ao Laura Alvim vejo a menor palmeira do jardim em frente à casa girar. Esfrego os olhos e já não há mais nenhum movimento. Mando uma mensagem pro Lucas, que me garante que não estou tendo visões e que sim, a palmeira do jardim da Laura Alvim gira. Ele é meu chefe, não ouso discordar, seria como desafiar hierarquias. Mas guardo certa desconfiança. Desde então, nunca mais a palmeira deu piruetas e eu não tive coragem de perguntar a mais gente se aquilo era real ou fruto de ervas que sequer ando consumindo.




Quartas-feiras e domingos

Entre um “mengooooo” e outro, ou melhor, verdade seja dita, entre xingamentos débeis como “filha da puta”, “viado” e expressões de mesmo escalão como “chupa ______”, meu vizinho do 202 fuma baseados superpotentes com seus amigos que sempre assistem aos jogos rubro-negros aqui no prédio. O cheiro invade meu quarto, minha mãe já me olha divertida e eu durmo embalada pela marola que bate aqui, enquanto meu vizinho e seus amigos gastam a onda jogando ping-pong no play. E xingando uns aos outros, obviamente.



Uma terça-feira de outubro

Estaciono o carro na Lagoa e descubro um comando que muda a posição do retrovisor esquerdo quando engato a ré. Mostro pra Eugênia, sentada no banco do carona, e repito a operação algumas vezes. Achamos graça e de repente lembramos Beavis e Butthead, mas em vez de AC/DC, ouvimos “Turn your lights down low”, do Bob Marley. O trânsito estava surpreendentemente bom, o que nos fez chegar cedo demais, e portanto fazemos hora no carro antes de subirmos pra aula. Quando “Redemption Song” começa, Eugênia e eu pensamos num pequeno menu da larica perfeita: burrata do Braz, pão-de-queijo da Adriana Lunardi, brigadeiros da tia da Helaine, Kusmi tea. Desde o jantar em que as pessoas fumavam sálvia que eu não pensava mais em fumar maconha, e agora estamos as duas aqui, falando de Laird Hamilton e as ondas de Teahupoo, pensando hibiscos, elencando comidas disparatadas para uma larica que provavelmente não se produzirá e rindo dos efeitos especiais do carro novo. Talvez a gente não precise de drogas mesmo. Por via das dúvidas, porém, já penso em bater na porta do 202, pedir açúcar, talvez seja um bom começo. 


* Bob Marley em Natural Mystic

sexta-feira, outubro 28, 2011

I'm gonna crawl*

Não posso ignorar minhas próprias obsessões, e depois de ler esse texto, tá decidido: passarei as próximas férias em Berlin nadando com Bernardo Carvalho.


* Led Zeppelin

quinta-feira, outubro 27, 2011

Para o Marcelo

 
O processo de digestão das coisas boas é sempre mais complexo que o das coisas ruins. De um jeito ou de outro, com mais ou menos esforço, mais ou menos suor, mais ou menos palavrões, as coisas ruins a gente deixa por aí, porque acabam saindo de alguma forma: no mar, em folhas de caderno, em sapatilhas de ballet, em 3 atos de uma tragédia ou em 4 taças de margarita.  

Felicidade, geralmente, só sei no dia seguinte, quando fico pairando em vez de andar. 

Felicidade é mais caro, me dá muita solidão e um problema que ainda não sei enfrentar. Fico uma tarde inteira sozinha na praia, tentando guardar as sensações e barulhinhos que o corpo faz, numa tentativa de reter tudo o quanto for possível, segurar com os dentes e as mãos, porque não quero esquecer, não quero perder nenhum detalhe, quero guardar. 

Bate um mutismo que parece irreversível. A desconfiança de que ninguém entende. Nenhuma música é possível, e nem mais nada. Felicidade se apropria das entranhas, é latifúndio do corpo. Eu só queria que tivesse um botão que fizesse parar de chorar e então ia começar a te dizer tudo o que eu queria. 



(esses pequeninos parágrafos estão sendo escritos há dias. Ficaram empacados pelo mutismo que a felicidade causa. Hoje o Marcelo ganhou o prêmio de melhor diretor pelo seu primeiro filme, entitulado "Testemunha 4", que foi exibido na Semana dos Realizadores. Tem repescagem dia 5/11 no Instituto Moreira Salles, RJ)

quinta-feira, outubro 20, 2011

Com que roupa

Às vezes a revolucionária que há dentro de mim desperta. Hoje ela acordou aqui.

Hoje, também, seria aniversário de Rimbaud. E ontem de Vinícius de Moraes. Eu ando amando o Paulo Henriques Britto. Fazer o que?

Nenhum sinal da solidão se vê
lá onde o amor corrói a carne a fundo. 
Dentro da pele, no entanto, você
é só você contra o mundo. 

Esta felicidade que abastece
seu organismo, feito um combustível,
é volátil. Tudo que sobe desce.
Tudo que dói é possível.

segunda-feira, outubro 17, 2011

Agora não


And people they don’t understand
No, girlfriends they can’t understand
In spaceships, they won’t understand
And on top of this I ain’t ever gonna understand

The Strokes in Last Nite



Eu sou muito legal. Tão legal que não deveria me justificar no meu próprio blog, e se você vem aqui há muito tempo (ou há pouco tempo também) já deve ter percebido isso. Eu sou imperdível. Se eu fosse enumerar minhas top 5 qualidades, ia ser difícil pacas. Eu falo “pacas”, só isso já faz de mim uma pessoa peculiar, e pessoas peculiares costumam ser bastante engraçadas. Domingo o Marcelo disse que eu sou hilária. Até o Gustavo, que nunca me viu na vida, disse que eu sou diversão garantida. E sou mesmo. Tenho sempre uma história pra contar. E sou muito disponível pros meus amigos: encaro festa falida em play de prédios estranhos, topo ser apresentada pra gente que sua exageradamente, faço cópias de fotos impressas pra eles guardarem de lembrança, mando cds temáticos por correio pra todo mundo ficar de bom humor no trânsito na terra da garoa. Coleciono tirinhas do Snoopy pros momentos em que as pessoas precisam respirar, aviso por email sobre todas as promoções de livros que descubro, aviso por mensagem quando a praia tá esperando. Quer mais? Ajudo a comprar roupa, sempre encontro a ponta do durex, sou boa com molduras, conheço o endereço dos melhores brigadeiros, bebo cerveja ou drinks elaborados, sei um ou dois passos de dança descolados e tenho o sobrinho mais bochechudo e gostoso da cidade. E uma Polaroid. Além de imperdível eu sou também inesquecível. Ontem, no bar, um sujeito que era amigo do namorado de adolescência da minha irmã lembrou de mim. Um francês que conheci num trem a caminho de Paris, no meio de uma nevasca pré-natalina também lembrou de mim quando me encontrou, semanas atrás, na Cinelândia. A minha professora de natação me chama de Juju. Até a Anne Rice me acha lovely!

Então por que eu sou constantemente abandonada é uma resposta bastante complexa de se resolver, possivelmente um mistério sem solução. Além de ser muito legal por todos os motivos acima citados, eu estou sempre cheirosa, bem vestida e dou carona pra todo mundo no meu carro. Dirijo bem, sei fazer baliza e no porta-luvas moram trilhas sonoras confiáveis. Talvez um dos meus poucos defeitos seja não saber a regra dos porquês. Não faz o menor sentido, portanto, que toda primeira vez que eu saia com um sujeito legal ou bonitinho acabe virando também a última. Menos ainda que 45% dos meus amigos mais queridos tenha ido morar do outro lado do oceano. Quando nenhuma criatura tá a fim de dançar a madrugada toda na casa da Matriz ao som de um dj da minha inteira confiança, eu evoco um deus pra tentar decifrar o motivo. Mas o cúmulo da rejeição, dessas impensáveis, é o fato do MAM me ignorar sistematicamente. Quando uma instituição aparentemente falida decide por não te aceitar no círculo de amizades dele, é que alguma coisa está fora da ordem.

Clayton Fabio, o astrólogo, explica. Eu explico também: desde que voltei a trabalhar no centro da cidade, o MAM virou local de peregrinação. Eu almoço lá, decoro minha casa imaginária com os móveis da lojinha, vejo metades de exposições quando sobram 20 minutos da hora de almoço, passeio pelo jardim de pedras e faço planos de voltar no fim do dia pra assistir um filme na Cinemateca. Dia desses, então, porque me pareceu uma solução obvia demais, me inscrevi para ser “amiga do MAM”. Entreguei o panfleto preenchido para o sujeito da chapelaria, que sorridente garantiu que a pessoa responsável entraria em contato comigo pra que eu pudesse efetuar o pagamento da anuidade. Semanas se passaram até que tomei coragem de ir lá perguntar o que estava acontecendo. Preenchi novamente o formulário, entreguei ao mesmo chapeleiro sorridente, e nada. Nenhum contato. Nenhum telefonema. Nenhum email, e eu tenho vasculhado o SPAM diariamente. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro não quer minha amizade. Faz menos sentido que qualquer obra contemporânea concorrendo ao Prêmio Pipa.

Marcelo acha que eu sou a primeira cidadã a me candidatar a tal empreitada, e que Luiz Camilo Osório e cia estão reunidos em cúpula, pensando o que fazer e/ou elaborando uma carteirinha cujo design ainda não sabem se será assinado pelo Cildo Meirelles ou pelo Tunga.

Clayton Fabio, o astrólogo, é mais certeiro: a minha casa afetiva está bem vazia. Isso não explica, porém, os abandonos e a rejeição. Ele não disse que a casa estava sendo evacuada. Ele não disse que eu estava perdendo gente, ele só confirmou que o marasmo nas relações deve durar ainda um tempo. Ele chegou mesmo a empregar a expressão “um longo e tenebroso inverno.” Eu não sei como pode ficar mais tenebroso que o atual quadro, que já está abstrato o bastante.

Sem saber o que fazer, deixei escapar uma lágrima quando Clayton Fabio, o astrólogo, sentenciou minha solidão. Ele sacou que o assunto era espinhento e foi logo passando pro próximo, que tinha a ver com o fato de fazer exercícios. Clayton Fabio, o astrólogo, foi convicto ao afirmar que eu não podia abandonar a natação. Ele disse que preciso de muito alongamento muscular. Mas pra mim é óbvio demais: a abandonada sou eu, e portanto só resta me agarrar com unhas e dentes a tudo o que eu puder reter, especialmente se tal objeto produzir endorfinas. Clayton Fabio, o astrólogo, viu a natação como minha última boia de salvação.

Por alguma razão que, desconfio, pode ter a ver com a posição dos astros no céu, o Tiago me deu um dvd do Peanuts de presente semana passada, e a Eugênia deixou um monte de livros na minha mesa de trabalho, frisando que todos eram para “uso pessoal”, logo a Eugênia, que também ri comigo e me acha engraçada...

O que mais eu posso fazer pra te convencer? Eu sou muito legal. Juro. 

quinta-feira, outubro 13, 2011

Ali onde teu doce voo se detém*


Sem dislexias ou mudanças, dessa vez obedeci ao que sugeriu o Pedro Lago: um texto sobre sexo oral e a Nona Sinfonia (e se isso for contravenção, então confesso que escrevi ouvindo os Noturnos de Chopin por Nelson Freire, que acabaram tendo participação especial no texto). 
::

De onde eu estava, via o topo da sua cabeça. Fios brancos despontavam aqui e ali. Seus dedos cravados nas minhas coxas. De onde ele estava, se levantasse os olhos, poderia adivinhar meu sorriso escapando entre uma ou duas almofadas. Meus pés em suas costas. Pensava se minhas unhas estavam bem cortadas. Sempre pensava nessas coisas quando havia uma cabeça entre minhas pernas, até sentir uma penetração mais profunda, como se algo me espetasse, então esquecia das unhas e fechava os olhos quando o mundo começava a se apagar à minha volta.

Do sofá de onde agora o observo dormir, refaço os passos que nos trouxeram até aqui. 

Alguns dias antes, da mesa do almoço, podia ver que ele tomava a mesma sopa que eu. Não era destino nenhum, era apenas inverno no centro da cidade, e o fato de que a sopa era a melhor sugestão daquele cardápio. Via o caderno de esportes do jornal na cadeira vazia à sua frente, o celular ao lado do prato, certa calma em sua fome, e a barba. Uma barba preta, espessa, impenetrável, e milimetricamente desenhada sobre maxilares fortes, geométricos. 

Poucos dias depois, do fundo de uma livraria ali perto, podia ver seu tamanho, sua camisa jeans, sua nuca. Ele inclinava-se para a frente, folheava alguns volumes. Fiquei imóvel durante os segundos que ele usou para se virar em minha direção. Os olhos negros como os pelos do rosto, em perfeitas linhas aparadas que desciam até onde começa o pescoço. Ficamos ligeiramente mais lentos, como o segundo Noturno de Chopin, trilha sonora daquela tarde modorrenta. Ele franziu um pouco as sobrancelhas, senti minhas bochechas vermelhas e desviei-me do caminho. Espirrou enquanto eu saía pela porta. 

Na quinta-feira ele tomava um café no bar da esquina. Coçava o rosto enquanto lia uma notícia sobre o aumento do dólar. As unhas se perdiam na barba impecável e eu quase ouvia o ruído. Eu trazia um guarda-chuva que deixei cair enquanto repetia seu gesto, e entrei no carro antes que ele pudesse me ver. 

E sexta. De novo. Já não sabia como aquilo tinha virado uma pequena perseguição. Da mesa central do sebo onde agora estava, vi quando ele entrou, sacudindo um pouco o meu guarda-chuva do dia anterior. Sua camiseta tinha respingos, suas olheiras eram mais evidentes e sua barba imaculada continuava ali, preta, cerrada. Senti que meus batimentos aceleravam ao ritmo da Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Beethoven, como se o local tivesse sido invadido por uma horda de violinos. Quando o primeiro solista tomou conta da música e ele me estendeu o guarda-chuva, meu impulso levou minhas mãos diretamente ao seu rosto. Saímos dali quase românticos, pouco antes do coro e do meu coração explodirem, pouco depois que fechei os olhos e o mundo começou a desaparecer ao redor. 

As minhas unhas estavam bem cortadas, concluí. Arranhões marcavam o interior das minhas coxas. Riscos e traços com resquícios de sangue seco. A potência da língua abafada pela barba cortante. Os pelos afiados do rosto dele. A indecisão de saber o que ele tinha bebido de mim, e se as minhas lágrimas eram de prazer ou de dor. 

Sem fazer nenhum barulho, fui até o banheiro e descobri na primeira gaveta uma navalha. Reluzia. Ao pé da cama, calculei: três respirações dele cabiam dentro de apenas uma minha. Eu murmurava aquele mesmo trecho da Nona Sinfonia enquanto seus pelos iam caindo sobre o travesseiro branco. Minha destreza me espantou. Seu rosto ficava liso e branco. No escuro parecia um vampiro. Em questão de minutos, estava feito: passei os dedos lentamente sobre aquele pedaço de carne exposta, a pela macia, escancarada, a antiga barba espalhada sobre a fronha onde ele dormia. 

Peguei minha bolsa, bati a porta no exato momento em que o último compasso da Nona Sinfonia morria em meus lábios. No elevador, passei as mãos entre as pernas, fechei os olhos e senti: não demoraria a cicatrizar.




* tradução (wikipedia) de um dos versos do poema de Schiller, parte da Ode à Alegria, da Nona Sinfonia de Beethoven. 

domingo, outubro 09, 2011

FAQ


But it’s about reading something while you’re working and your heart is just longing for your project, and the joy of reading this book by somebody else is actually what makes you turn up at the desk the next day in the broader sense, you see. If I can just generate the same feeling in the reader that this writer generated in me then I’ll have succeeded. And that is probably the biggest influence.

Ian McEwan em entrevista a Zadie Smith para a Believer, falando de influências que não se veem em sua prosa.

quinta-feira, outubro 06, 2011

Tesouros

(ou: do que se encontra dentro de livros comprados em sebos)

(clique nas imagens para ampliar)

1. Pedaço de embalagem da Kopenhagen;
2. Canhoto de bilhete de ônibus para uma  viagem que foi feita na poltrona 8 do dia 13/10/1970, quando empresa tinha acento circunflexo;
3. Etiqueta de lavagem de uma peça cuja composição era 60% algodão, 30% poliamida e 10% elastano;
4. Páginas 45 e 46, por sorte, vieram dentro do próprio livro a que pertencem (ou pertenciam).

Os dois primeiros itens foram encontrados dentro do livro "Virginia Woolf, a commentary", de Bernard Blackstone, de 1949 pela Hogwarth Press, London. Este é o volume verde que aparece na foto, e que foi originalmente comprado na Freitas Bastos, Livraria Editora, então situada no Largo da Carioca. 



O item 3 estava perdido entre as páginas de "Les Fleurs du Mal", de Baudelaire, em edição presentée par Jean-Paul Sartre, pela Livre de Poche Classique e que pertenceu à Zezinha, que o comprou em julho de 1964, sublinhou 2 frases do prefácio e logo abandonou o poema (creio). 



O item 4 foi (felizmente) achado dentro de um exemplar de "Selected Poems, T. S. Eliot", pela Harbrace Paperbound Library.

Alguns dos itens foram trocados por livros que nunca consegui terminar, por culpa única dos autores dos mesmos. A trilha sonora que acompanhou as escolhas variaram de Cake a Chopin (acho). Um sujeito que vestia camisa jeans olhava a mesma mesa que eu, onde encontrei 2 das obras, mas ele não se animou a espirrar em casa. Os livros chegaram à minha biblioteca no final do mês de setembro.

domingo, outubro 02, 2011

O dia em que tomei champanhe com Adriana Lunardi


Sempre tive medo de conhecer autores e dividir com eles frases, mesmo que cumprimentos educados, bom dia ou boa noite. Achava que ter contato com um deles fosse demais pra um leitor. Que não se podiam misturar as ficções, que talvez fosse até proibido. Tinha medo que os livros como eu os conhecia morressem no momento em que descobrisse as vozes, tamanhos e gestos das pessoas que os escreveram.

Consta que meu primeiro contato com Adriana Lunardi se deu em 2008, em Paraty, portanto 3 anos antes do dia em que tomei champanhe com ela. É o que atesta a data abaixo da sua assinatura, um A em forma de estrela a tinta fraca de uma caneta preta que naquela tarde marcou o meu exemplar de Vésperas. No dia em que tomei champanhe com Adriana Lunardi, ela me perguntou se foi simpática comigo aquele dia, e eu não soube dizer. Pensei em forjar alguma lembrança, mas a verdade é que eu jamais poderia mentir para Adriana Lunardi.

Acontece, então, que por uma dessas coisas que desabam na gente, passei a frequentar a casa de Adriana Lunardi uma vez por semana. E diante dela, um mágica ainda maior se operou.

Até o dia em que tomei champanhe com Adriana Lunardi, não entendia como ela podia ser a mesma pessoa de 3 anos antes, e tampouco achava possível que aquela moça magra de mãos pequenas e pousadas sobre um livro de Virginia Woolf fosse a mesma escritora que me assombrava com palavras e frases que só poderiam vir de alguém que não ela. Aquela moça de vestido, e cujas prateleiras amarelas carregavam uma biblioteca onde era possível habitar, aquela moça de voz mansa, de cadência de outono. Eu achava que Adriana Lunardi era duas, que não dava pra existir aquela Adriana que esquentava pães-de-queijo e servia champanhe rosé em taças de vidro dentro da mesma Adriana que inventava aquelas palavras e frases. Que organizar guardanapos era mundano demais pra quem fazia toda aquela literatura. E mesmo comprar flores.

O dia em que tomei champanhe com Adriana Lunardi foi milagroso porque juntei as duas coisas, porque vi como Adriana Lunardi me olhava com olhinhos brilhando, e como esse brilho abraçava as coisas à sua volta. Eu, que achava não ser possível que Adriana Lunardi desse conta dessa vida tão rotineira de que todos nós nos ocupamos, fiquei maravilhada de entender que ela sim, cuidava do seu mundo e inventava outros tantos. 

O dia em que tomei champanhe com Adriana Lunardi ficou marcado no calendário, com caneta especial e estrela no canto da página.


domingo, setembro 25, 2011

convite


“Falar de sentimentos é o mesmo que explicar o sabor do pão pela receita. Nunca dá certo.”

Adriana Lunardi in A vendedora de fósforos, página 105, ed. Rocco. 


domingo, setembro 11, 2011

Riocentro




"For Julia, you are a lovely person, and you have made our visit to Rio so pleasurable and so memorable, I cannot thank you enough, Anne Rice, september 2011."


Uma Bienal do livro rende tantas histórias que daqui até a próxima eu poderia fazer um blog só desse assunto. Mas tem aquele problema de que a maioria das coisas só tem graça na hora. A maioria das coisas, de fato, só tem a graça que a gente dá. Entre perguntas como “oi, posso ler um poema pra você?” e “moça, você tem algum livro sobre paraquedistas?”(de uma menina de 8 anos), ainda deu tempo pra um chope com Adriana Lunardi, um jantar com Antônio Xerxenesky, um abraço em Thalita Rebouças e um tour por igrejas e pelo Corcovado com Anne Rice. Isso só pra citar os autores da casa. Eu que tinha medo de conhecer as pessoas dos livros, estou achando que estou no lugar certo. E se não estiver, parece que tenho um futuro promissor como figurante.  

quinta-feira, setembro 01, 2011

Burn down the disco, hang the dj*

A minha mais nova obsessão atende pelo enrugado nome de hidroginástica. Mais precisamente, a trilha sonora e a influência da mesma sobre os alunos que às 7 horas da manhã estão fritando na piscina enquanto eu tento não sufocar na raia ao lado, alternando crawl, costas e peito (e lutando contra as infiltrações dos óculos).

Minha cisma começou numa manhã em que “Colombina”, do Ed Motta, tocou à exaustão, num repeat aquático que nem um ser dotado de barba e tridente seria capaz de contornar. Fosse aluna eu já teria organizado uma reivindicação e exigido um DJ. Por esses motivos difíceis de determinar se feliz ou infelizmente, eu sou só uma aluna da natação que escuta apenas relances das músicas, e que nem para mais tanto pra descansar nas bordas da piscina pela mesma razão. Eu que já tenho implicâncias com pierrots, peguei um eca da música do Ed Motta que estendi minha raiva a essas moças cheias de pompons, e duvido que tudo passe até a próxima quarta-feira de cinzas.

Na semana seguinte, preparada para versos como “gata de rua faz ron ron / ao luar” (porque depois de “Colombina” só podia vir mais Ed Motta), dei de ouvidos com uma música clássica remixada. Já é triste o suficiente ter de dançar “I Will survive” remixado em casamentos. Inundar os ouvidos de água clorada e Mozart batidão é algo que só um tarja preta pode resolver no fim do dia. O curioso é que os alunos da hidroginástica pareciam não se abalar. A cabeça sempre pra fora d’água está diretamente relacionada ao fato de eles serem mais felizes que eu na piscina, mas achei que a música pudesse nivelar o nosso sofrimento. Que nada.

Lá estavam eles, na quinta-feira da outra semana, com as mesmas expressões condescendentes enquanto Michael Jackson arrebentava com “Don’t stop til you get enough”. Eu não entendi. Ou melhor: comecei a desconfiar que todos eram surdos, e pela média de idade, devem mesmo ser. Contei pra Rita, não sem espanto na voz, que os velhinhos da hidroginástica pouco se importavam com o Michael. O diagnóstico dela foi mais certeiro: insensíveis.

Achei que Pitty remixado (why, god, why?) com “Uh tererê” seria mais que pretexto pra uma revolução submersa. Eu teria, no mínimo, programado incontinência urinária com meus coleguinhas caso me visse afrontada por tal afronto. Mas lá estavam eles. Tão felizes ou indiferentes ou surdos ou insensíveis quanto antes. A essa altura eu comecei a nadar 1500 metros por aula, tão desesperada estava de não escutar mais nada que viesse daquele canto da piscina. Era um bate volta sem fim, eu comecei a engolir água pacas e pensei, quem sabe, em migrar pra natação dos bebês onde ninguém nunca morreria afogado e onde a música era condizente com a turminha. “A baleia / a baleia / é amiga da sereia / olha o que ela faz / olha o que ela faz / tchi bum chuá, tchi bum chuá”. Decidi que se os professores cantassem a música da “Loja do Mestre André” ou a “Galinha Pintadinha”, era o destino me chamando.

Depois de uma quinta-feira bipolar 80s, em que uma sequência que começou com “Louras Geladas”, do RPM, culminou com Legião Urbana em “Vento no Litoral”, achei que a piada estava indo longe demais. “Eu deixo a onda me acertar” não é recomendável pra nenhuma atividade dentro da piscina, especialmente quando ela envolve gente da terceira idade. Fiquei tão desnorteada que, sem querer, dei braçadas em toda a galera que dividia a raia comigo, saí da piscina sem conferir se estava tudo dentro do previsto na aula de bebês e prometi só voltar àquele caixote de ladrilhos em caso de surdez aguda. Aí, quem sabe, em vez de me unir aos bebês, vou pra turma feliz em que as cabeças nunca afundam na água. 



*Panic, The Smiths. 

domingo, agosto 28, 2011

You go to my head


Pedro Lago me propôs mais um desafio, e eu topei de novo: Algo sobre a crise de uma cineasta que ama um poeta e um trompetista ao mesmo tempo. (E eu li que era um, em vez de umA cineasta... e quanto ao poeta e ao trompetista ao mesmo tempo, bem, mais uma pequena subversão de minha parte.)
Voilà. 

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Um poema por dia. Como num programa de reabilitação. 240 páginas de sonetos, 3360 linhas de palavras escolhidas com esmero, candura, dicionário. Nunca um final. Poemas entreabertos, pontos que poderiam ser reticências.

Eu não pensava ser possível filmar literatura. As ruas já têm assunto demais. Nos becos, nos muros, nos prédios, os meus roteiros tantas vezes escritos com pedras portuguesas, britadeiras, spray ou areia da praia pro final feliz. Sempre gostei do final feliz. Eu era triste demais pra matar alguém, pra fazer alguém sofrer por amor, ainda que fosse ficção. Ainda que fosse prêmio pro ator principal, ainda que fossem as resenhas elogiando a pungência da câmera, ainda que fosse um plano-sequência arrebatador. Meu cinema era de risos. Meus filmes eram de prosas.

E então aquele cara gordo, sempre apressado, descendo do elevador no andar abaixo do meu. Aquele cara cujo nome agora estampava a capa da antologia que habitava sempre qualquer lugar que fosse à minha frente.  Um nome gordo também, quase parnasiano. Triste como o meu rosto. Com algumas rugas tomando os cantos dos olhos. Era difícil acreditar que aquele cara era o dono daquele nome e autor daqueles versos. E ainda.

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Sobre como o livro veio parar nas minhas mãos era bem simples. Inspecionando a prateleira de uma livraria, o nome. Gordo e parnasiano, o mesmo da etiqueta da caixa de correio na portaria do prédio. E pronto. No sofá de casa, na primeira página: música.

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Um trompete ardia toda vez que eu abria o livro. A música parecia vir justamente do apartamento do poeta gordo, em sopros que pareciam ser encaminhados diretamente à minha janela. O repertório era de grandes canções americanas, daquelas que todos os cantores pop já gravaram, daquelas que hoje em dia a gente escuta no elevador de grandes prédios comerciais, daquelas que nunca deixam de ser tão bonitas quando sopradas e sopradas e sopradas. Sem letra ou palavra, sem sussurros, sem bateria, baixo ou piano. Porra, cara, daquelas que Chet Baker tocava só pra gente pensar que podia furar o peito sem sangrar, sem morrer. Daquelas que eram melhores que gozo. Os poemas do poeta gordo eram melhores que gozo.

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Comecei a ficar obcecado com aquele livro e com todos os outros que consegui comprar do mesmo autor. Era um jorro. Os prazos se encurtando, os produtores telefonando, o roteiro que eu não escrevia. Aos poucos entendi que era a minha primeira grande crise criativa. Estava impotente, invadido por estrofes. Não queria mais escrever filmes, queria ler e ler e ler. E soprar minhas ideias no ouvido de alguém que pudesse fazer delas deslumbramentos do tamanho dos poemas do trompetista do andar de baixo.

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Espairecer, andar, ver os rostos nas ruas, inventar que aquela gente que passeia pelas feiras de antiguidade volta pra casa cheia de quinquilharia e felicidade. E então, ali, de novo. O nome gordo e parnasiano na capa de um disco de vinil. Eu nem sequer tinha vitrola. E lá fui, metrô adentro, aquela poeira na sacola. Era óbvio que se escutasse o disco ia ouvir poesia declamada. Era óbvio demais, mesmo. Um livro que toca música, um disco que toca o corpo. Eu estava me apaixonando pelo poeta gordo sem nem mesmo ter trocado com ele um bom dia burocrático no elevador. Eu precisava inventar um filme, não uma paixão gay pelo meu vizinho.

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Expliquei a algumas pessoas que precisava de férias, e tão logo me livre de telefonemas e cobranças, comecei, sozinho, o meu filme. Um poema por dia. Filmar as linhas. As letras tipográficas impressas, as minhas escassas anotações nas margens das páginas, minhas risíveis tentativas de transformar eu-lírico em personagem: nenhum nome poderia. 240 páginas de sonetos. E a minha câmera apontada pra cada conjunto. Parada, contemplativa, ligada o tempo suficiente que cada poema precisava pra ser lido. 3360 linhas, quase rimas. E aquela música subindo. E eu pensando como dar final feliz àquelas páginas quase estáticas, fotografias. Eu não estava mais fazendo cinema. Tinha dias, parecia, que eu fazia um filho.

Dormia e acordava com livro, disco e toda a confusão de melodias, acordes e arranjos que rasgavam páginas. Eu rasgava páginas. Diante do elevador, rasgava páginas e os meus dentes. No andar de baixo, diante da porta, rasgava mentalmente tudo o que me separava do poeta gordo, do tapete da minha sala ao concreto e às vigas do prédio. Se tudo desabasse, se eu conseguisse explicar.

O cara não me convidou pra entrar. 240 dias depois e o cara não me ofereceu nem um copo d’água. Justificou-se com pressa, pegou as caixas que entreguei com pressa, fechou a porta com pressa. Foi com pressa também que interfonou-me, depois de mais exatos 240 dias em que assistiu, um a um, seus poemas filmados. Olhei minhas malas no corredor, enfileiradas, quatro meses de tudo o que eu precisaria enquanto estivesse numa cidade do interior de São Paulo, filmando o meu primeiro longa-metragem cujo final era trágico. A história era quase banal, um caso típico de intoxicação. Um sujeito se apaixona por outro durante um verão de mil dezembros. A intervenção do poeta gordo, porém, parecia dar outro rumo a toda aquela bagagem.

Uma vez na portaria, diante daquele cara volumoso, seus cadernos e seu trompete armazenado numa caixa de couro, pensei se podia realmente amar aquele homem, se podia deixar de ser triste com aquele homem e suas 240 páginas de sonetos e seus standards e versões sopradas de Cole Porter. Eu podia, pensei. Eu podia.

terça-feira, agosto 23, 2011


Se todas as esquinas fossem habitadas por encontros, se todas as ressacas fossem como as do mar.

terça-feira, agosto 09, 2011

O dia em que Clarice chegou

Aquele pôster ficou enrolado dentro do tubo de papelão muito mais tempo do que devia, com outras duas impressões iguais de um mesmo show que eu teria ido duas vezes, e que teria servido a dois encontros, mas esse era o tipo de coisa que não acontecia por aqui. Ocorria faltar paredes, coração e, eventualmente, gente.

O dia em que Clarice chegou foi o mesmo em que o cachorro morreu pela primeira vez, e a partir desse dia toda a dúvida poderia recair sobre ela. Houve quem tentasse me convencer de que não convinha ter Clarice emoldurada na parede do quarto, que era carga demais, e não só literária. Houve quem tentasse me animar com o fato de que ela poderia me inspirar a investir na minha carreira de escritora. Houve quem achasse que eu era escritora.

Houve, também, quem sentasse ao meu lado na cama e ficasse pasmado admirando Clarice. Parecia haver certo repouso ali, uma calma de ver que há muito só praticava quem tinha intimidade com o mar. Era uma calma parecida com aquela que se têm na arrebentação, aquele momento em que ficamos à deriva com as pernas pendendo para os lados da prancha, pouco antes da manobra que nos coloca no centro de onde se deve estar para deslizar, tal qual uma canção meio cafona dos anos 90, o sol abraça o meu corpo, meu coração etc. A calma de quem brinca com as mãos na água salgada, vendo os dedos enrugados e a praia do melhor ângulo, de quem tem o nascer do sol como religião. A calma que se escuta de algumas vozes. Um altar.

Ter Clarice ali aliviou a perda diária do cachorro, que insistia em morrer ao menos uma vez num intervalo de 24 horas. Chegar em casa passou a ser um suplício cotidiano. No caminho eu tentava decidir o que fazer se o cachorro morresse de fato. Ele começava a perder os dentes, o que resultava conclusões bem mais simples. Eu fazia todo o barulho possível ao entrar: de chaves, dos pés, da bolsa, da prancha. Eu voltei a surfar no dia seguinte ao que Clarice chegou, porque eu precisava de um conforto improvável pra quando o cachorro realmente morresse, um desses confortos que te roubam os pensamentos por alguns minutos, algumas horas.

Eu o chacoalhava entre as almofadas, lágrimas a postos. Clarice parecia indiferente na parede, nem era possível atribuir-lhe a função de velar o sono do cãozinho. Ela escreveria toda uma obra caso se deparasse com mais um bicho morto, eu não saberia nem mesmo inventar uma oração. Eu comecei a inverter a lógica das coisas, e me empenhava em sentir a maior quantidade de felicidade possível toda vez que o cachorro não estava morto. Comecei a entender também que eu não precisava pegar todas as ondas que invariavelmente eu perdia por falta de fôlego, que a mim bastava aquele tempo silencioso de boiar sobre a prancha, olhando a areia, tentando assoviar.

Um mês depois do dia em que Clarice chegou eu decidi abrir a garrafa de Seacher’s Gin que veio junto com ela, porque eu estava exausta de todos os dias de sol e de checar de hora em hora os sinais vitais do cão. Adormeci diante de Clarice, depois de contemplação, três garrafinhas de água tônica e meio limão siciliano, e aquela placidez que eu sentia ao sentar na areia, depois de passar uma hora dentro do mar. Acordei no dia seguinte, o cachorro ao pé da cama me chamando pra brincar.

domingo, julho 31, 2011

Corrosão


(um post com 2 epígrafes)

Só não dói mais porque não é preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.

Paulo Henriques Britto in Trovar Claro.

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porque eu não sei o que é uma nêspera
ou como as coisas são sem mim. 

Marcello Sorrentino in Um pequeno sistema de incerteza.

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Quanto mais você não está aqui mais eu te invento neste lugar onde eu nunca estou: uma casa que não conheço, escadas que não sei onde vão dar, discursos que jamais saberei decifrar, músicas que ficarão quietas, coreografias que não vou saber dançar.

Quanto mais eu não consigo chegar até você, mais caminho se abre à frente, mais buracos pelo asfalto, sinais sempre fechados, ausência lancinante em cada esquina em que não estaciono pra te abrir a porta, te ver entrar.

Quanto mais você não volta, mais vai embora. Quanto mais teu CEP desconhecido, tuas mãos organizando estantes e coleções de discos que não compartilharemos. Quanto mais correspondência devolvida, mais cortinas nas tuas salas, e mais poesia nos meus braços.

Quanto mais não ver tua cara, mais desbotam as fotos, e invento outras imagens, quase todas desfocadas pra poder te desenhar no meio. Quanto mais a vida sem você, mais eu sozinha.

domingo, julho 17, 2011

O silêncio das línguas cansadas

Pedro Lago me propôs um desafio e eu topei: contar uma história que tratasse do encontro de um jovem leitor de Dostoiévsky com uma mulher mais velha no Jardim Botânico. Substituí o russo por um português e aí está o resultado.

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Sabe-se pouco a respeito dos encontros, mas que se davam toda terça-feira no banco de madeira perto do orquidário. Foi ali onde ela teve a ideia de enterrar os livros.

Antes que os primeiros quadrados de porcelana brotassem, porém, passaram-se meses em que ela era vista ali sozinha, a olhar fixamente praquele pedaço de chão onde seus sapatos ortopédicos tantas vezes se alongaram ao lado das sandálias de couro dele. Dizem que tinha um ar ao mesmo tempo desolado e econômico: eram escassos os suspiros, os movimentos e mesmo a contemplação foi substituída por uma espécie de nuvem que lhe encobria a visão. A qualquer momento tinha-se a impressão de que poderia chover perto dela. Parecia castigada por uma dor que ninguém adivinhava.

Quando as quinas dos quadrados começaram a perfurar o chão, o rebuliço foi geral. Achava-se que a obra do orquidário poderia ter soterrado antigas fundições. Ou que tesouros da família Imperial tinham sido esquecidos sob o solo, e agora subiam à superfície. Até que nem tanto esotérico assim. Técnicos, autoridades e entidades políticas e espirituais concordaram, unânimes no decreto: aquilo era obra de portugueses. Diante do espanto, decidiram arranca-los pelas raízes e conter, assim, os escândalos e curiosos que se amontoavam para ver os azulejos que floresciam no Jardim Botânico. Um plano de ação foi arquitetado para que se desfizesse tal absurdo, e os jardineiros mais experientes do parque foram requisitados para dar fim ao canteiro. A surpresa maior, porém, ainda estava por vir.

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Conta-se que ela era já uma senhora e que frequentava o local desde o ano anterior. Era discreta em vestes, gestos e palavras, mas emanava alegria. Não uma de carnaval, mas aquela alegria que se evidencia pelas mãos, sempre gentis aos toques, e pelos olhos, ainda ávidos pelos dias, especialmente pelas cores das orquídeas. Seu passeio era religioso. Contornava o roseiral, ia dar no lago de vitórias-régias e aspirava o ar com entusiasmo quando dava o primeiro passo pra dentro do orquidário. Seu prêmio: teria enfrentado tempestades marítimas, teria afundado naus inimigas, teria singrado oceanos povoados das mais monstruosas criaturas para chegar até ali. Morava do outro lado da rua, porém. Sua aposentadoria fora planejada para nutrir o grande amor que tinha por aquelas plantas, e depois de uma existência pontuada por perdas que a esquartejavam por dentro, fez daquele pedaço do Jardim Botânico o seu recanto. Esquecia-se de tudo em companhia das orquídeas.

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Um dia ela entrou no parque carregando uma pá, uma sacola que parecia pesada e óculos escuros que escondiam parte do rosto. Poucas pessoas viram quando ela abriu um buraco no chão. As poucas pessoas que viram quando ela abriu um buraco no chão estranharam, mas nenhuma delas se deu conta de que o canteiro de azulejos que brotava era justamente a pequena cova que aquela senhora havia aberto meses antes.

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Meses antes ela plantou os livros dele, e contou num bilhete a história que é a que se conta até hoje: ela Amália, nome de fado. Ele Gaspar, como um nobre navegante. As orquídeas, bengalas que a mantinham de pé. Os livros de Fernando Pessoa, alicerces dele. Numa terça-feira Amália não foi ver o roseiral, tampouco contornou o lago. Foi direto ao orquidário, e viu aquele sujeito ali, quase inexistente, pela primeira vez. Tão magro e tímido, calçava sandálias de couro, tinha a boca semiaberta e ondas nos olhos. Era jovem, alto, tinha uma ameaça de curva nas costas e parecia ter também todos os sonhos do mundo. Usava um bigode ultrapassado, além de óculos de leitura de molduras levíssimas. E carregava livros.

Sentaram-se no mesmo banco de madeira, ela para descansar, ele para ler. Quando percebeu a curiosidade que se esticava em sua direção, pigarreou, ficou rubro. E leu uma estrofe. Aflito, gaguejou. Ela riu, ele também. E tudo o que se desenrolou após esse primeiro encontro pareceu seguir essa lógica do também. Ela ficou mais feliz, ele também. Ela passou a falar mais, ele também. Ela ria, ele também. Ela qualquer coisa e ele também. Em pouco tempo ele tinha declamado boa parte da obra de Fernando Pessoa. Ao final de cada volume, ele a presenteava com o livro: orelhas, dobras, dedos, todas as marcas daquelas tardes, até mesmo folhas caídas de orquídeas que recolhiam juntos e que manchavam palavras.

Ela montou uma pequena biblioteca na sala de casa, e além das orquídeas, passou a fixar-se também nas lombadas e nas páginas do poeta português.

Um dia, porém, ele não apareceu na hora certa. Noutro dia, porém, ele não apareceu. Ela voltou a ser vista ali, sozinha, olhos fixos na terra do chão, agora sem as marcas dos pés longos e finos dele. Desabituara-se da solidão, e foi ganhando ares tristes, dizem, até, que parecia diminuir de tamanho. Decidiu, então, plantar os livros.

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Foi um cair de queixo atrás do outro. Ao lançarem as armas que revelaram o que havia sob os azulejos, a estupefação foi ainda maior. Antologias, coletâneas, sonetos, odes, rimas formavam um verdadeiro cemitério de livros, e deles brotavam azulejos. Quadrados brancos que iam furando a terra. Bocas se alargavam até quase esgarçarem os rostos incrédulos. Nenhum dos jornalistas e fotógrafos presentes ousou disparar um flash. A gente aparvalhada que estava ali, aos poucos, deu as costas ao canteiro e saiu andando, muda, aos tropeços. Aturdidos, os jardineiros aguardavam as ordens dos superiores. Incapazes de dar voz aos pensamentos, os superiores enxugaram das testas o suor, deram as costas e saíram escoltados pela polícia.

No dia seguinte não se falou mais no assunto. Não se escreveu uma linha nos jornais sobre os azulejos. Não se escutaram sussurros nem cochichos a respeito de tal episódio. Não se buscou explicação, não se consultaram os astros, não se encomendaram estudos. Quando descobriram o bilhete de Amália preso a um vaso dentro do orquidário, acrescentaram nas placas e nos mapas da instituição os caminhos e setas que levavam ao tal canteiro.

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A placa que contava a história da amizade entre Gaspar e Amália foi instalada numa manhã radiante. Fazia muito que Amália não era vista por ali, de fato, desde o dia em que ela chegou carregada com os livros e a pá ela não tinha mais voltado.

Naquele dia, conta-se, surgiram sobre os quadrados de porcelana os primeiros traços de tinta azul. Era primavera, a estação das flores.


quarta-feira, julho 13, 2011

Twitter


“Sempre gostei de ter medo”, disse valter hugo mãe bem no começo de uma noite que todo mundo merecia ter de vez em quando.

Há anos tenho uma queda literária por tudo o que vem de Portugal, e a paixão se estende a Angola e Moçambique. Gosto de tudo dessa língua parecida com a nossa, mas tão diferente no trato. Gosto, sobretudo, do uso do imperfeito. Gostava falar como eles, ter a mesma cadência e a nítida impressão de que prosa e poesia podem se confundir.

Gostava também que todo mundo tivesse, de vez em quando, uma noite tão gentil como a que acabei de ter, e que ainda vou saborear. Meus melhores momentos de valter hugo mãe são os que seguem.

Ele contava como foi quando o filho de Clarice Lispector lhe pediu que autografasse um livro: “Alguém nascer de Clarice Lispector é quase um desrespeito à raça humana que não pode nascer de Clarice. Ia ser maravilhoso se pudéssemos ter várias mães.”

Sobre livros e o fazer artístico, ele aponta a insatisfação como força motriz e norte, e sem ela um escritor deixa de escrever, um pintor deixa de pintar: “Nenhum livro até agora foi capaz de me calar. Nenhum livro foi suficiente.”

“Maridos há poucos, mulheres há muitas.”

Sobre personagens, gosta de livros sobre “pessoas que efetivamente poderiam ser encontradas.” Diz também que ao escrever momentos decisivos ou de grande impacto sobre o personagem, se vê compelido a telefonar para amigos para dizer o quanto os ama, e que chega a sentir inveja dos personagens.

“Nós adultos temos todas as idades dentro de nós.”

Defende a ideia de que deveríamos lidar apenas com pessoas agradáveis, e que deveria haver um esquema de substituição dos que não nos satisfazem.

“Achava os prosadores seres cheios de demasia”, enquanto que a poesia sempre lhe pareceu essencial. Falando sobre sua pontuação e sobre a escolha de escrever somente com letras minúsculas, destacou a vontade de dar velocidade ao livro. “A poesia não perde tempo”, afirmou. Enquanto a prosa se vale de aspas, travessões e reticências, a poesia se livrou de tudo o que parece supérfluo. Não pensamos com todos esses sinais ortográficos, e sua escrita quer se aproximar do fluxo do pensamento e da oralidade. Execrou o uso de reticências, que para ele são uma tentativa de conferir profundidade a uma frase ou pensamento. Se a frase ou pensamento não forem profundos, as reticências não ajudarão. E se as reticências são formas de interrupção, então que um ponto só seja o final.

“Os meus livros vem do que eu quero saber.”

“Dizia as coisas para ter coisas, dizia palácios para ter palácios.”

Pirilampo é a minha palavra favorita.”

A minha é libélula


segunda-feira, julho 11, 2011


Ninguém sabia o que fazer em caso de felicidade. Havia seguro de vida, seguro para veículos e para morte ocorrida dentro de veículos. Mas quem nos protegeria em caso de felicidade?

David Foenkinos in Em caso de felicidade.

quarta-feira, julho 06, 2011

O dia em que jantei com Claire Denis



(para Ana)

Todo mundo precisava de um casaquinho no dia em que jantei com Claire Denis. Passávamos pela temporada atípica de inverno no Rio, aqueles poucos dias em que todos nós desejamos o verão de volta, aqueles poucos dias em que relativizamos o conceito de meio-dia em janeiro, aqueles breves instantes em que todo mundo tem um resquício de naftalina na pele e uma jaqueta de couro no figurino.

Uma semana antes do dia em que jantei com Claire Denis eu não fazia ideia de quem era Claire Denis, ou melhor, não fazia ideia de como era o cinema de Claire Denis. Também não conhecia alguém que viria a me emprestar um dvd de Claire Denis, tampouco imaginava que uma música da Corona viesse a fazer parte da minha lista de Prozac Songs. Uma semana antes do dia em que jantei com Claire Denis, eu não podia imaginar que uma música da Corona coubesse num filme francês inspirado em Melville, e que essa cena se tornaria pra mim o perfeito sinônimo de dancing with myself

Eram tempos bons aqueles que precediam o dia em que jantei com Claire Denis. Eu experimentava novidades que me enchiam de alegria, sorria pelos motivos mais prosaicos, fazia test-drives em concessionárias e lidava bem até com piadas de vendedores da Volkswagen. Eu acordava cedo pra tomar um café da manhã consistente e cantava as curvas da estrada de Santos enquanto era a única babaca a obedecer os limites de velocidade do aterro do Flamengo, e até o trânsito era motivo de felicidade: eu chegava atrasada na natação, deixava de nadar 200 metros e me dedicava à discografia completa do Rei. Eu havia me tornado uma daquelas pessoas felizes e completamente irritantes que tanto detesto, mas nem isso me abalava: a vida era boa no dia em que jantei com Claire Denis, o prato thai preparado por um cineasta era ótimo, e uma ou duas conversas que se iniciavam naquela noite eram ainda mais promissoras.

Mas a vida tem suas surpresas, e no dia em que jantei com Claire Denis eu fui abordada por alguém que não entendeu que eu não estava a fim de elucubrações complexas sobre a vida, a literatura ou a procedência de sotaques. No dia em que jantei com Claire Denis, e em todos os outros dias da minha vida em que nada ou ninguém acontecem, eu não queria conversar sobre bloqueio de escritor, ou sobre seu processo criativo de escritor, ou sobre qualquer outra pauta que envolvesse teorias ou critérios demais sobre o ato de escrever. No dia em que jantei com Claire Denis, eu tentei explicar ao meu interlocutor que eu não tinha qualquer propriedade sobre o assunto, que escrever, pra mim, não era uma Questão que precisasse de maiúscula, que eu nem mesmo iria à Flip e que menos ainda eu sabia porque o valter hugo mãe insiste em só usar minúsculas. No dia em que jantei com a Claire Denis eu estava muito mais interessada em perceber como o efeito físico das emoções arrebatadoras, sejam elas boas ou ruins, causadas por cenas sublimes ou grotescas, são irremediavelmente as mesmas (pernas fracas, revertérios no estômago, levitação). Eu olhava desesperadamente pros lados procurando o Pedro ou o João Manuel, que com sorte entenderiam meu código e iriam me resgatar com a desculpa esfarrapada de consumirmos algo no bar. Até mesmo a Cuba Livre sem gosto que estavam servindo àquela hora me parecia mais atraente do que aquele papo intelectualoide que eu tentava a todo custo evitar.

No dia em que jantei com a Claire Denis lamentei o fato de ter me tornado uma pessoa simpática e comunicativa que não sabe como se desvencilhar de gente mala. Ir ao banheiro teria sido a solução. Eu pensava em como seria boa a explosão de um bueiro naquele momento. Ou um ataque antropofágico.

No dia em que jantei com a Claire Denis deixei duas pessoas falando sozinhas, fiz passos de dança excêntricos quando o dj colocou The Rythm of the Night na pista e não consegui retomar as conversas promissoras que se haviam iniciado antes que eu fosse interrompida pelo tal sujeito. No dia em que jantei com Claire Denis eu não troquei uma palavra com Claire Denis. Voltei pra casa embriagada num taxi com a certeza de que na estrada de Santos eu não vou mais passar.