quarta-feira, junho 18, 2014

Casas Bahia - vol. 3


Era maio de 2001 quando li Alta fidelidade pela primeira vez: eu tinha 18 anos e estava em Oxford por dois meses. Reli o livro outra vez há 5 anos, numa época em que eu era xiita demais e não acumulava pilhas de títulos não lidos, e portanto reler coisas era uma realidade. Era um tempo também em que eu tinha critérios suficientes para não deixar livros pela metade: eu acreditava muito em autores e tinha um otimismo genuíno em tudo o que eles tivessem para escrever, da primeira à última página, mesmo que as histórias desandassem e os personagens idem. Eu ia até o fim, era o meu dever. De lá para cá vi surgir uma nova categoria nas minhas estantes, uma espécie de necrotério que abrange suicídios, abortos e toda sorte de crimes literários, sem nem bem saber quem é o culpado. Fato é que mudanças implicam exumações, e algo muito mais complexo que é enfileirar lombadas e agrupar os livros – os sobreviventes – outra vez.

Mas antes disso: as estantes. Estava no jornal essa semana a foto típica do autor em frente à sua biblioteca, e nela um Silviano Santiago todo prosa sorria em primeiro plano. Às suas costas as estantes iguais às minhas, possivelmente mais antigas, certamente mais eruditas, coalhadas de letras, erguidas simetricamente em ângulos retos com o chão. Num extremo oposto, estavam elas também numa oficina mecânica em Botafogo, exibindo óleos, pastilhas de freios, fluidos e outros que tais automobilísticos em igual equilíbrio. E ainda: na casa de um casal de amigos vizinhos que, num ato desafiador à minha incapacidade, declararou com orgulho que não só havia montado as estantes, mas também tinha pintado de vermelho o complexo de metais e parafusos imponente que guarda um acervo invejável – talvez algo entre as minhas posses e as de Silviano.

Os meus livros ficaram dias empilhados no chão da sala, em montinhos desconexos que explicitavam a anarquia temporária advinda do frete, enquanto todos os sábados, pelas manhãs, eu me agarrava a ferramentas e a uma fé cega que me iludiu: as minhas estantes nunca ficarão retas. Entre palpites e diagnósticos de gente tão leiga quanto eu (mas muito convincentes), estabeleceu-se que as estantes vieram empenadas, e que o melhor seria trocá-las, e eu não perdi tempo tentando convencer ninguém de que o melhor mesmo seria jogá-las fora, de preferência em cima da cabeça do vendedor de vassouras que nunca me deixa dormir aos domingos de manhã, quando estou nitidamente derrotada, cansada e descrente de que um dia as minhas estantes serão como aquelas de Silviano ou do casal vizinho – a nível técnico, jamais intelectual.

Quando seu Severino, o porteiro, num veredicto de extrema preguiça avaliou o cenário (“É melhor deixar assim mesmo.”), não tive dúvidas: era hora de ocupar as estantes tal qual a gravidade as deixara: completamente tortas. O que se provou bolinho, visto que tá tudo em pé e carregado com a minha coleção nada ortodoxa. E então o real problema apareceu.

Em maio de 2001 eu achei lindo quando Rob Flemming (no livro ele era Flemming, no filme ele era Gordon) disse para alguém que sua discoteca estava catalogada em ordem autobiográfica. Em 2009 eu achei lindo de novo. Ele poderia se lembrar de eventos de sua vida, dos foras mais doídos, das traições mais estúpidas, das viagens mais longas e dos shows mais embriagantes de sua existência ao percorrer seus vinis nas prateleiras. E então achei que eu também poderia organizar as minhas memórias assim, e que bastaria um rasante nas estantes para entender como passei do diário de Bridget Jones para o Grande Sertão: Veredas. Mas me pareceu positivista demais. Então comecei a agrupar os autores por uma espécie de linha afetiva que começava com os maiores impactos literários que sofri. A linha ia perdendo potência até dar em outros que, eventualmente, foram embora, dada a pouca importância que tiveram. Para não parecer a festa da uva, separei nacionais de estrangeiros, prosa de poesia. E aos poucos fui criando subdivisões e nichos que vieram dar nessa encruzilhada.

Eu sei, todos já escreveram sobre o dilema das estantes, assim como todos os colunistas escrevem sobre falta de assunto – exceto Silviano, é claro – afinal, é de angústias que vivemos. O que fazer, então, com Rimbaud? Ele entra na prateleira de poesia ou na turma dos franceses? Uma antologia de artigos e ensaios de Alan Pauls deveria se juntar à ala de teoria e crítica ou permanecer junto das edições de ficção da Cosac, ali no andar da prosa latino-americana? As raras peças de teatro, que ainda não configuram uma categoria em si, se juntam aos livros de dança para juntos formarem o canto das artes cênicas? Mas o que fazer com as duas ou três peças de Pirandello que já estavam ao lado do Calvino, anunciando um território italiano tímido? E aquele casal que se separou e que antes ficava coladinho na até então bem resolvida prateleira de poesia? 31 canções, do Nick Hornby, fica junto com os ingleses ou vai pro rol dos livros de música? E quando, por obra do destino, sobram 8 livros escritos em inglês que têm de se apertar ao lado do César Aira? É um jogo de Tetris aparentemente sem solução e enquanto alguns amigos são sensíveis à minha causa, outros me sugerem dar um pulinho na Travessa pra ver como eles fazem, e com isso meus dias têm se dividido entre compras na Amoedo e contemplações solitárias em livrarias diversas.

O que está bem acertado, no fim das contas, é o andar dos livros mortos: um abandono comum a temas díspares e autores que jamais se encontrariam reúne sem constrangimento uma turma crescente e aparentemente aleatória. Não ouso citar nomes, mas me parece que um ou outro está em paz com suas estantes. Essa parte da biblioteca talvez seja, curiosamente, a mais autobiográfica de todas: uma coletânea de desistências e julgamentos meus sobre o mundo, tentativas bem sucedidas de deixar de fora o que eu quero que fique fora. Os poucos momentos em que o leitor realmente têm controle são esses em que abrevia seus desgostos, ergue uma cruz, encaminha para o sebo. Há controvérsias, mas gosto de pensar assim enquanto, inutilmente, tiro da caixinha de ferramentas a chave de boca, me alongo um pouco na posição do cachorro invertido e inicio mais uma batalha perdida contra a física. 



segunda-feira, junho 16, 2014

Porto Alegre - vol. 3

Querida,

Foi só quando abri a terceira caixa que encontrei o meu bloco meio amassado – e ainda não sei onde foi parar o caderno de receitas, não consigo achar – com o começo de um bilhetinho que ficou inacabado. Eu pensava que aproveitaria a calmaria do Horto para escrever, estudar e começar uma horta. Mas a vida prática se impõe e eu já acho que a qualquer momento um vizinho vai bater na minha porta pedindo encarecidamente para que eu pare de passar aspirador a todo momento: é tanto silêncio que o menor ruído torna-se agressivo.

Meus ombros doem como se eu tivesse nadado quilômetros: sinto falta daquela piscina, de passar pela praia todo dia e de algumas pessoas que ficaram pra trás. E do cachorro: morro de saudades do cachorro, e toda visita que faço a ele é só uma confirmação de que cada vez terei menos dele, e isso me dilacera, acabo sempre chorando no elevador.

Tem sido difícil trabalhar ou gostar de qualquer coisa que não ficar em casa e outro dia mesmo pensei em simular um desmaio ou pedir demissão: pintar uma mesinha, comprar mais flores para encher as garrafas de espumante que ficaram, provar todas as frutas da minha feira delivery e mais uma vez tentar aparafusar as estantes (tem uma foto no jornal de um escritor na frente de suas estantes, iguais às minhas, mas todas retas, e eu me pergunto como? J. acha que elas estão empenadas.). Ou, sei lá, ver um jogo de futebol esparramada no chão da sala, devorar brigadeiros.


É bom ter você de volta e poder fazer um pouco de tudo isso juntas. Fique por aqui.