terça-feira, novembro 18, 2014

Bilhetinho para M.P.

Toda vez que novembro chega eu acho que a progressão do cansaço está diretamente ligada com o passar dos meses, como se o calendário, afinal, fizesse algum sentido cumulativo sobre a minha disposição, quiçá da humanidade. Não deveria ser: o meu ano novo em 2013, por exemplo, foi ali entre setembro e outubro, ainda que tenhamos estourado fogos e quebrado taças no Reveillon.

Estou tão gasta que fiquei até cafona, simplesmente não tenho capacidade de abrir o armário e entender o que se pode combinar com o quê. Eu percebo nessas coisas: todo arroz gruda na panela, faço suco com os ingredientes que encontro, mesmo que fiquem pela metade, deixo o mesmo disco no repeat, desisto de brigar com e/ou de me render a ele e fico nesse limbo em que nada acontece. Nenhum beijo, nenhuma ruptura dramática, uma sucessão de ponderações, análises, dúvidas, livros que nunca serão publicados e quando me dou conta perdi as chaves da casa de M. Parece aquele filme em que todas as manhãs o sujeito acorda no mesmo dia, um em que alguém fatalmente ficará sem chaves, sem saco e sem saber. É claro, o chaveiro estava numa outra bolsa, mas por um momento pensei que havia alguma espécie de maldição.

Você sabe diferenciar cisma de paixão? Ou é a mesma coisa? Hoje vi num site de listas um par de brincos redondos com a cara da Sylvia Plath estampada e é claro que pensei em você e gargalhei. Hoje vi, também, um farol onde as pessoas podem se hospedar, e agora me pergunto por que nunca pensamos nisso antes. 

Talvez seja bom sair de férias em dezembro, ter a perspectiva ilusória de que janeiro será janeiro e que alguma coisa, como naquela primavera, vai mudar. Ainda que tudo acabe voltando.


Por favor, não se tranque pra fora de casa. Mas caso o faça, me chame pra esperar o chaveiro com você. Ele pode querer esquartejar duas pessoas. 


quarta-feira, novembro 12, 2014

Panorama - dias 2 e 3

Um a um, seguindo as instruções da mulher sentada na mesa de som à direita do palco, os atores do teatro Hora adentram a cena, se posicionam no centro e encaram a plateia por cerca de um minuto – um ou outro se vira e dispara em direção à coxia em questão de segundos. Outra vez, e ainda individualmente, os mesmos atores voltam ao palco para dizerem seus nomes, idades, profissões e deficiências. A maioria dos atores da companhia suíça têm síndrome de down e reencenam em Disabled theater a relação que estabeleceram com o anticoreógrafo francês Jérôme Bel, também chamado por críticos e especialistas de um “provocador” da dança.
As instruções seguintes, então, determinavam que os atores escolhessem uma música e executassem uma coreografia. Bel escolheria as melhores para compor a performance. Todos os atores permanecem no palco, sentados em cadeiras em semicírculo, enquanto os eleitos dançam.

A trilha vai de Charleston a Michael Jackson. “They don’t really care about us” é dançada ipsis literis por Julia Häusermann, que até o momento de seu solo tentava chamar a atenção do rapaz sentado a seu lado, o mesmo que tem um certo grau de autismo. Julia se joga languidamente no colo do garoto, depois de demonstrar uma energia pélvica de dar inveja, arrancando ainda mais aplausos. Os atores também se agitam nas cadeiras em movimentos ora sincronizados, ora espontâneos, marcando batidas ou frases das canções escolhidas com os pés ou erguendo braços e punhos, às vezes cantando trechos.

Em seguida, os atores voltam ao centro do palco para dizerem o que acham da performance e do trabalho com Bel. Um deles reclama que queria dançar também, expondo sua mágoa com o diretor, que acaba cedendo aos apelos e dá mais tempo para a execução das coreografias que haviam sido deixadas de lado. Julia aproveita o momento para reclamar que queria mesmo dançar ao som de Justin Bieber, ao que é atendida. Ela canta “Baby” com emoção: é a grande estrela da noite. Saímos do (xexelento) Carlos Gomes encantados por ela.

Por fim, eles agradecem com a vênia habitual, o público delira e eu não sei o que fazer. Fico atenta aos comentários da plateia à saída do teatro, converso com um casal de amigos que também estava lá, leio mil críticas e mando os links para eles, porque teremos tempo suficiente do Centro à Cidade das Artes, no dia seguinte, para debater tudo o que for pertinente. A única coisa que concluo é que morro de preguiça, e então para mudar de assunto conto para eles que uma vez, há uns anos, denunciei um foco de mosquito que havia no lobby do teatro. Era o auge da dengue e havia uma espécie de disque-denúncia de focos de mosquitos, o que provavelmente ainda existe, e você podia acompanhar o desenrolar das ações municipais.

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A Cidade das Artes é quase tão desoladora, numa outra esfera, quanto o Carlos Gomes, e nunca sei se as obras estão prontas ou se ainda faltam coisas – grama, acabamentos e afins – mas também nunca sei se a Travessa de Botafogo está completamente concluída.


Drumming é uma coreografia de 1998 do Rosas, a companhia belga de Anne Theresa de Keersmaeker. Com música de Steve Reich e figurinos de Dries van Noten. Drumming é exaustiva, composta de uma sequência de movimentos e gestos espiralados, e te coloca num transe, parte por causa da música, parte por causa da dança. Uns acham datado, outros saem da grande sala reproduzindo braços e pernas aqui e ali e eu não sei o que fazer, mas por outra razão. Drumming, para mim, é até meio simples: gente dançando num patamar de excelência bonito de se ver. É mais ou menos o que eu quero, sempre. 


domingo, novembro 02, 2014

Panorama - dia 1


"You were born naked and the rest is drag."
Ru Paul 

Trajal Harrell está na porta do Teatro Café Pequeno cumprimentando cada um que chega para assistir seu número. Ele é um negro americano baixinho com olhos que ocupam quase todo o seu corpo e que imagina o que teria acontecido se alguém da tradição Vogue tivesse encontrado os bailarinos pós-modernos da Judson Church em 1962, em NY. Por acaso eu mais ou menos sei um pouco das duas coisas, e o que me leva até ali numa tarde quente de 2012 é justamente a expectativa de ver uma possibilidade desse encontro impossível. Poucas pessoas têm a mesma curiosidade que eu e quando fica evidente que ninguém mais vai aparecer ele nos convoca a sentarmo-nos em círculo no chão, explica sua ideia e nos distribui textos em uma espécie de apostila. Ele nos avisa que treme em função da intensidade dessa performance e da proximidade com o público. E numa quase escuridão nos entrega a versão XS de seu “20 looks or Paris is burning at the Judson Church”.

Dois anos depois entro num taxi com um casal de amigos e comento que sim, sei mais ou menos do que se trata o espetáculo para o qual nos encaminhamos num novembro não menos inclemente. Pouco depois o mesmo Trajal, com seus olhos engolidores, mas agora de cabeça raspada, está na entrada do acesso à plateia do Teatro Municipal, e logo no palco, microfone em punho, contando para todos nós que a versão L de “20 looks or Paris is burning at the Judson Church” não tem qualquer intenção de recriação histórica, mas que se trata de uma hipótese imaginativa que só pode acontecer hoje e agora, conosco. É bom se sentir especial, mesmo que.

Trajal treme. Seu espetáculo pode variar de tamanho e duração dependendo das condições e locais de apresentação. O que nos espera é uma versão que ainda mistura Antígona em cerca de duas horas que ele nos garante que passarão mais rápido do que possamos perceber. Um de seus bailarinos entoa, à capella, o hino da casa deles: “Hit me baby one more time”, da Britney Spears, arranca risadas. A minha solidão também está me matando.

Bailarinos vestidos discretamente de preto e branco dançam músicas pop alternadamente, iluminados por um foco de luz sobre um quadrado branco e já desconfio de que passarei o domingo todo ouvindo repetidamente uma canção da Tori Amos que é quase uma intimação para se jogar. Além de Trajal, são mais 4 em cena, e todos são um acontecimento, especialmente aquele que, calçando saltos vertiginosos e exibindo um peito de pé inverossímil, encarnará o apresentador do desfile de príncipes, sem se dar por satisfeito. O desfile das “mães” vem logo em seguida, e é um pouco mais alentador assistir a tudo isso se você tiver visto Paris is burning, o documentário de Jennie Levingston que retrata os bailes do Harlem dos anos 80, movimento de um submundo gay e transgênero em que a dança Vogue surgiu, em alusão à revista de mesmo nome. O clipe da Madonna ajuda a entender um pedacinho, mas tudo vai muito além, inclusive a performance de Trajal.

À parte qualquer didatismo ou escola de dança envolvidos nesse encontro imaginário, o show de Trajal é louco, divertido, interminável e lá pelas tantas faz pensar que uma versão tamanho M poderia ser melhor. Confesso que a poucos minutos do final abandonei o barco, otimista com a perspectiva de fazer xixi sem fila e divertida com a mensagem de uma amiga que me perguntava “você também está neste suplício travecoso?” – e que, depois que furei o jantar, me desejaria mais 5 horas de “travestis convulsionantes”. Realmente, que canseira. Realmente, que liberdade, e eu que achava que ter cortinas em casa te dava aval para qualquer coisa.

Entre narrações, músicas cantadas pelo próprio coreógrafo, jograis insanos (“Se fossem alunos da CAL num teatro obscuro a gente ia achar uma merda, Julia!”, disse alguém no caminho de volta, e eu ri), fios que se estenderam das mãos de Trajal até os fundos da plateia do teatro por sobre nossas cabeças graças ao bailarino francês pulando de cadeira em cadeira, mitologia, questões de gênero, sexualidade e recortes culturais de coisas que amaria ter visto ao vivo o que sobressai é um mundo tão de Trajal que muitas coisas soam como piada interna. Mas todo mundo se contorce quando ele afirma que deveríamos reivindicar uma Uniqlo à Dilma.

Deveríamos ter tirado fotos do grupo de drag queens que causou furor no Teatro, possivelmente deveríamos ter nos entregado mais quando Trajal conclamou uma festa em todos os setores do teatro e parte do público, resistente, levantou, dançou, gritou, aplaudiu enquanto outra parte se sentiu obrigada a, na expectativa de que aquilo fosse o encerramento tão aguardado.Outros já tinham ido embora há tempos.

Deve ser anarquia. E depois de revirar os olhos seguidamente, eis que fiquei parte do dia seguinte atormentada. Deve ser aquilo que o Salinger diz nas últimas frases do Apanhador: “Don’t ever tell anybody anything. If you do, you start missing everybody.”

 

quinta-feira, outubro 23, 2014

Whatsapp


-       Definitivamente a vida de uma pessoa pode ser dividida entre antes e depois de você.
-       Antes era quando ninguém te perseguia, né?
-       Antes era quando ninguém me amava com o teu padrão de excelência. Não tem comparação, todos viram amadores perto de você.
-       Minha analista tá te dando dinheiro?
-       Taí um bom freela.
-       Se ela aumentar o preço da consulta eu já sei a razão.
-       Eu posso ser o HD externo da sua autoestima!
-       Então posso transcrever isso e colar na porta da geladeira?


segunda-feira, outubro 20, 2014

NY - vol. 5

É engraçado, ontem me dei conta: paixões começaram fulminantes e terminaram idem nesse tempo em que você esteve fora, e parece que tanta coisa aconteceu na sua vida e em outras que quando você me perguntar das novidades eu só poderei te contar que queimei um risoto, quebrei tapiocas e fiz sopas sem gosto, porque acho que foi isso mesmo o que aconteceu comigo. A minha vida culinária é como a minha vida amorosa: eu digo que está tudo bem, mas no fundo não tenho tanta certeza, e é fácil botar a culpa na panela, às vezes. Tenho dormido com fome, mas ainda não emagreci. Às vezes, também, quero falar com você o tempo todo. De certa forma já o faço, mas é melhor quando é de verdade.


Poderia te contar, também, de como os antúrios ficaram esquisitos, mas é melhor você ver com seus próprios olhos, e eu juro que não tenho nada a ver com isso, assim como não tenho nada a ver com o fato da porta da frente ter voltado a se abrir quando estou por aí – mas há controvérsias. Portanto mais um motivo pra voltar logo, preciso de ajuda para evitar os desvios.    


sexta-feira, outubro 10, 2014

NY - vol. 4


Tenho percorrido supermercados, feiras e barraquinhas de plantas atrás de vasinhos de temperos e ervas e hoje, ao perguntar a um sujeito que tinha pimentas em abundância se por acaso ele teria hortelã a resposta foi “não, mas tenho begônia” e eu fiquei pensando se era uma piada que eu tinha perdido, ou só uma tentativa de compensar pelas coisas que a gente não encontra.

Sinto os braços doloridos da ginástica, e outro dia, ao ficar meio flutuando de cabeça para baixo e perceber como as outras 3 pessoas ficaram me observando enquanto não conseguiam chegar na postura, fiquei pensando sobre essas partes de nós que a gente não enxerga. Dançar é um pouco assim. É claro, nem sempre, você sabe as linhas do balé e tem sempre um espelho pra denunciar seu arabesque torto. Mas com as outras danças, as que eu gosto, você dá forma ao corpo sem ver, e é só quem está do lado que pode avaliar se a sua falta de jeito pode virar outra coisa. O tempo todo você dança com a hipótese de uma “deformidade”, ou no mínimo de uma imagem inapreensível, e é esse o motivo: descolar da cabeça essa busca por um movimento bonito, simétrico ou belo, porque o que vale é o gesto.

Acho que é por isso, também, que pra mim é tão difícil me desligar de algumas pessoas. No meu desktop ficou um arquivo inconcluído chamado “é menos você no mundo”. Foi uma conversa com C. Falávamos de alguém que morreu, mas com os vivos também é assim, porque o outro tem uma parte de nós que só ele tem, que só existe com ele. E a gente vai perdendo pedaços. Sei que isso não deveria servir como justificativa para certas reincidências. Mas serve. Tenho medo de perder pedaços que eu ainda nem sei direito que cara têm. Acho que é por isso, também, que talvez a oferta de begônias faça mais sentido do que pareça.

domingo, setembro 28, 2014

NY - vol. 3


Tenho feito tentativas estúpidas de frequentar festas sem você. Mesmo que as músicas às vezes sejam as minhas, as danças nunca são as nossas. Sábado terminei o livro, faltei compromissos, distribuí desculpas para lá e para cá, e parte da noite delirei com 3 músicas no repeat e um componente ilícito. Domingo não tem erro: leio poesia na rede, penso em ficar para dormir, mas tem toda a problemática do meu café-da-manhã homeopaticamente correto e já penso em te comprar uma centrífuga de presente.


sexta-feira, setembro 26, 2014

NY - vol. 2

"Retrospectivamente, é inacreditável: quando Michel me anuncia que passará dois meses fora de Paris no verão e me pergunta se quero ficar em seu apartamento durante esse tempo - e apresenta a proposta como sendo uma ajuda minha, as plantas da varanda precisam ser regadas todos os dias -, aceito sem pestanejar. No entanto, novidade desse tipo não faz meu gênero. Tenho a impressão de que o apartamento já vive em mim. Ele é dos mais espaçosos, dos mais luxuosos, não há melhor. Morar ali é morar na própria juventude."


Comecei a ler o Mathieu Lindon e queria que leitura fosse algo que se pudesse fazer a dois ou a muitos, como uma sessão de cinema. O Michel a que ele se refere é o Foucault, que em algum ponto da história pouco se importa por todas as plantas terem morrido. Não se preocupe, eu jamais faria isso. 

quinta-feira, setembro 25, 2014

NY - vol. 1

Verdade seja dita, é tanta ida e vinda que eu já nem sei mais onde você está, quando volta, se a diarista vai aparecer, se devo repor as laranjas que bebi, se tudo bem deixar os papeis espalhados pela sua mesa mais alguns dias. Sua orquídea me parece bem morta e todo sábado considero os copos-de-leite numa esquina próxima, mas há muitas variantes como todas as acima, afinal não sei qual é o prazo de validade deles, menos ainda quando te devolvo suas chaves.


Sonhei que íamos a Búzios ou outra cidade litorânea para a inauguração de uma filial da Shakespeare and Co. Na praia ela era uma mistura de Saraiva com a seção infantil da Travessa de Botafogo. Sim, um pesadelo. Acordei e comprei 12 livros na Amazon.com, alguns dos quais já estavam no meu carrinho há meses. Ok, confesso, é o que tenho feito na sua rede: compras imaginárias em carrinhos virtuais, nunca vou até o fim do processo, até porque o wi-fi não chega muito bem ali. Os papeis na mesa são apenas cenário, não pense que estou escrevendo. Mas quem sabe. Ainda temos tempo. Temos, né?


segunda-feira, setembro 15, 2014

Vitória - vol. 1


O cachorro já não anda e saí prejudicada da última aula de ginástica: estas seriam razões suficientes para ficar gripada, perder todas as festas, as mostras, os acontecimentos e me recuperar somente a tempo de assistir a uma peça de teatro que vocês também odiaram. Outras desculpas possíveis têm a ver com aquela série que finalmente comecei a assistir, mas algo me diz que o verdadeiro motivo para a minha voz constipada é esse deserto simultâneo em Gávea e na Pompeu Loureiro. Sinto falta de cuidar das plantas e dos bichos alheios e de ficar imaginando o que eu copiaria de outras casas caso tivesse a minha.

Tomo o meu cappuccino preferido sozinha, aquele industrializado o suficiente que me esquenta sempre com o mesmo sabor. É só comigo ou é reconfortante poder confiar em alguma constância na vida?


Quando acordar na segunda-feira vou me render a um Neosoro, outra coisa que sempre dá certo. Vou almoçar kafta, talvez. Desejar uma recaída para ver o quarto episódio com o poodle roncando na minha barriga. 


quarta-feira, setembro 03, 2014

Ou o jeito que você erra

“Um dia eu vou ficar bem
Só pra te querer mais”
Marcelo Camelo em Pode ser, da Banda do Mar

Todo aquele disco, afinal, despertou em mim uma vontade maluca de fazer cafuné em alguém, justamente na semana em que eles disseram que era ótimo que eu não escrevesse sobre amor e afins, e a essa altura da conversa eu já estava distraída demais pensando se aqueles cabelos à minha frente eram propícios a todo o carinho que eu poderia oferecer. A possibilidade de me apaixonar naquela semana ficou totalmente condicionada ao que a minha imaginação construía ao redor dos cabelos das pessoas com quem eu me deparei. A textura certa e a quantidade ideal de ondas, além do controle dos índices de oleosidade, poderiam me levar a um enamoramento daqueles que põem medo.

Põe medo quando ele se levanta para ver alguma coisa na parede e aproveita para deslizar dois ou três dedos pelo meu braço apoiado no espaldar da cadeira: para, faz um comentário e esquece a mão ali no meu ombro esquerdo, como se fosse muito natural arranjar qualquer desculpa ou ameaça de mosquito no meio da sobremesa só pra encostar em mim neste lado onde tenho mais sardas. Calculo mentalmente o tempo que ainda falta para ser plausível dizer a ele que já está tarde, assusto-me ao perceber.


Assusta a quantidade de uvas em nossos copos cheios de cachaça, nossa incapacidade com furadeiras, pregos e parafusos e a variedade de padrões de tomadas e lâmpadas que há neste mundo. A única decisão que podemos tomar, afinal, é a disposição dos quadros, quase todas as serigrafias e desenhos a carvão invadidos por fungos, apesar de todas as blindagens e químicas prometidas numa etiqueta no verso das molduras. Desenhamos nas paredes os retângulos, levamos as obras para o carro e antes que eu fale qualquer coisa – e pra você eu nunca falaria – você diz que já está tarde, que eu preciso dormir, que amanhã, nem dá tempo de treinar na sua cabeça as linhas e rabiscos que eu iniciaria depois de fingir que havia alguma coisa presa nos cachos dele, peraí, vem cá. E nem comeríamos as entradas, emaranhados em nossas ferrugens e saudades, isso sim põe medo, isso sim. 

Eu não suporto OS DEPRIMIDOS. Parece um emprego, é a única coisa que merece algum esforço da parte deles. Olá, minha depressão vai muito bem hoje. Olá, hoje estou com outro sintoma misterioso e vou estar com um diferente amanhã. Os DEPRIMIDOS são cheios de ódio e bile, e quando não estão tendo ataques de pânico estão escrevendo poemas. O que eles querem que seus poemas FAÇAM? A depressão é o que há de mais VITAL neles. Seus poemas são ameaças. SEMPRE ameaças. Não existe sensação mais aguda ou mais ativa do que o sofrimento deles. Eles não têm nada exceto sua depressão. É só mais um serviço de utilidade pública. Como eletricidade e água e gás e democracia. Eles não poderiam sobreviver sem isso. MEUS DEUS, EU ESTOU MORTO DE SEDE. ONDE ESTÁ CLAUDE? 

Deborah Levy em Nadando de volta para casa



segunda-feira, agosto 25, 2014

Plateia

Era novembro e eu estava num lugar remoto e molhado na Alemanha quando recebi um email da Paula perguntando quem queria ver uma peça do Bob Wilson na semana seguinte. Àquela altura das férias, com 31 anos de escoliose nas costas, qualquer perspectiva de ficar sentada por mais de uma hora era um alento. Viajar é um elixir da juventude: você anda o que não caminharia uma vida inteira, é capaz de arrastar malas pesadas por estações de trem em língua estrangeira e qualquer incompreensão faz parecer que o mundo é um lugar apaixonante – mesmo que o seu quadril sofra dores semelhantes às de uma agulha repetidamente espetada num boneco de vodu que tenha a sua cara.

Eu vinha de uma apresentação do Nederlands Dans Theater em Haia, num programa irregular belamente encerrado com Gods and dogs, uma coreografia hipnotizante de Jiří Kylián. De lá rumei para Wuppertal, onde em meio a lágrimas irrepresáveis assisti Nelken e Wiesenland, ambas peças de Pina Bausch, a segunda com direito a esbarrão em Dominique Mercy à saída da Opernhaus. Pelos meus cálculos eu só viveria algo próximo disso outra vez se a própria Pina reencarnasse e dançasse Café Müller no Theatro Municipal do Rio. Pelos meus cálculos, portanto, eu estava praticamente liberada do meu papel de plateia pelo tempo que durasse esta vida. Por outro lado, se esta vida melhorava a cada entrada num teatro europeu, a chance de que no penúltimo dia antes de voltar pra casa eu fosse fulminada por alguma coisa não me fez hesitar. E era o Bob Wilson. Em Paris. No Louvre. Com a Paula e mais 2. E sem baldeação no metrô.

Lá fomos nós, então, pirâmide adentro numa noite que prometia mágica, nunca sono. No centro de um palco azul, tomado por cartazes com palavras e pedaços de frases, estava Bob Wilson, de branco, com uma maquiagem carregada que deixava seu rosto tão engessado quanto o ritmo da peça. Sentado a uma mesa ele monologava A lecture on nothing, de John Cage: “More and more I have the feeling that we are getting nowhere. Slowly, as the talk goes on, we are getting nowhere, and that is a pleasure.” O trecho era repetido em looping, em nuances que iam do enfado à exasperação, quando Wilson gritava e despertava risadas nervosas na plateia, possivelmente num reconhecimento de sua própria angústia. Eu mesma procurava o sinal luminoso da saída de emergência, uma que de preferência me levasse diretamente ao encontro de alguém que pudesse me explicar todo o entusiasmo do mundo em torno do diretor, porque naquele momento eu me sentia, sobretudo, burra. Porque se alguém estava achando tudo aquilo chatérrimo, era essa a única explicação possível: burrice crônica.

Mais burra ainda, calculei, quando fiz o caminho até a Barra da Tijuca para ver The old woman, no fim de semana. Eu gosto de dança, pensei, não de toda essa exatidão de luz e sons. Gosto da respiração e dos baques dos corpos, do peso e dos improvisos de quando os pés se desencontram. Gosto dos esbarrões. E ali naquele palco de Bob Wilson, me parecia, nada disso cabia. Mas era o Bob Wilson. No Rio. Na Cidade das Artes. Com o Marcelo e mais quantos? E com o Willem Dafoe e o Baryshnikov.

Lá fomos nós, naquele monumento de concreto e vento, numa noite que prometia tédio, e tudo ia bem com a coluna e o quadril, eu poderia até recusar ficar sentada. Em todos os cantos de um palco que exibia cores desconhecidas, o que vi tinha tudo daquilo que eu já tinha visto: uma precisão desconcertante de luz, palavra, música. Mas era absolutamente outra coisa, apesar de ser quase a mesma. “This is how hunger begins”: uma comédia com tintas de palhaçaria, melancolias e um nonsense pontuado por estalos, gestos marcados e tão sincronizados que é difícil acreditar que Dafoe e Baryshnikov façam outra coisa que não passar o tempo juntos, se aprendendo. Também existe ali a possibilidade de uma narrativa, mas seu roteiro é constantemente torcido, te desviando para lugares opostos - ora incômodos, ora familiares - sempre absurdos.

Como da primeira vez, não falta chatice a The old woman, tampouco histrionice ou repetição. Falas são executadas como um mantra, à saída do teatro decoramos trechos. Em seu Exercises de style, Raymond Queneau escreve a mesma história 108 vezes. É cansativo como as repetições de Wilson, até quando se gosta delas, até quando as escolhas cênicas e inflexões, como as palavras e ritmos de Queneau, transformam o que está sendo dito. É aquela máxima levada à exaustão na prática: haverá tantas histórias para se contar quanto existam leitores para ler, e tantos palcos para desvendar quanto cadeiras numeradas na plateia.

Perseguir Wuppertal é a minha ambição, e não apenas no que ali havia de deslumbramento, mas no que havia de viver uma experiência em que se é tragado para um universo do qual se torna difícil sair. Ainda que fosse insuportável, a Leitura sobre o nada de Wilson me fisgou de forma tão absoluta que ficou marcada. Dificilmente vou esquecer aquela noite, e quando me lembrar ou falar dela sentirei todo o incômodo físico, me contorcerei na cadeira em que estiver sentada, elevarei a voz e farei caretas. Quando conversar com alguém sobre A velha, tudo voltará pro corpo de outra forma: sorriso, mãos que tentam desenhar movimentos de luzes e toda uma mímica do gostar, com uma breve interrupção, talvez até bufe para concluir que, apesar de tudo, tem uma ameaça de de repente tudo se tornar chato de aturar. 

Perseguir essa desmedida das coisas, nem tanto pela perspectiva do aplauso ou do choro, mais por habitar durante algumas horas esse mundo instável e tão vivo, esses mundos efêmeros aos quais queremos nos agarrar. Em alguns casos funciona. E então começa a fome.   


quinta-feira, agosto 14, 2014

obs.


Mariano Marovatto, meu agente literário preferido, levou minha Flip para passear pelo Ornitorrinco, o site do Gabriel Pardal, que eu nem sei muito bem quem é, mas sei que por lá estou em companhia de uma turminha. Paralelamente ressuscitei um blog, aquele onde volta e meia eu choro minhas pitangas. O caminho é este aqui

quarta-feira, agosto 06, 2014

Paraty para malogrados - ano 2


Saiu a programação da Flip 2014 e meu primeiro pensamento foi “quem são essas pessoas?”. Meu segundo pensamento foi que eu deveria saber quem eram aquelas pessoas, afinal trabalho numa editora e supõe-se que eu seja bem informada sobre o que acontece à minha volta. Meu terceiro pensamento, então, foi na verdade um levantamento de hipóteses, sendo a primeira delas a de que eu estaria no lugar errado, e nem quero comentar as outras, mas mais ou menos todas levavam a crer que no mínimo eu andaria lendo as coisas erradas. Basicamente, que eu estava perdida. 

Uma vez começada a Flip, meu desbaratinamento só piorou: eu não estava lá quando todo mundo se emocionou com o Marcelo Rubens Paiva na mesa da ditadura, tampouco fui plateia da elogiada mesa de Eduardo Viveiros de Castro e Beto Ricardo. Não vi Fernanda Torres dominar uma das últimas mesas da festa (nem li seu romance, aliás), não testemunhei o primeiro russo a participar do evento e, claro, não entrei na festa da concorrente onde Xico Sá deveria estar causando na pista. Nem no Banana da Terra eu consegui comer, nem um cappuccino no Café Pingado eu consegui beber, e se sentei no Coupé uma noite foi mais por acidente que intenção. O que, então, eu fiz nessa festa, além de discordar de que esta tenha sido a “Flip das Flips”?  Pois bem. 

Frustrei-me com o que mais esperava, como geralmente acontece: entrei na tenda dos autores para assistir à mesa que reunia Davi Kopenawa e Claudia Andujar. (Importante assinalar que pouco tempo antes eu saíra da mesa do Michael Pollan com desejo de moqueca e acabei caindo no conto do “a moqueca fica pronta em meia hora”, ou seja, cheguei ao pavilhão subnutrida.) Paulo Werneck – com pintura indígena no rosto – chama ao palco o líder ianomâmi e a fotógrafa. A fala de ambos é pausada, lenta, e a dele bastante elementar, ingênua, até. Davi Kopenawa quer salvar o seu povo, proteger a floresta e conta com nosso apoio. Entre aplausos, frio, fome e a projeção de imagens sem contraste e distantes demais mesmo para os míopes em dia com seus óculos (o que não é o meu caso), saí da sala antes da conversa terminar, derrotada por constatar como são mundos e tempos completamente diferentes os nossos e os dos índios, e consequentemente pensar como parecem distantes as chances de conciliações das partes, muito mais por intolerância dos não-índios. No dia seguinte, conversando com uma amiga que bravamente não abandonou o barco, falamos justamente dessa pressa maluca que colocamos em tudo, e em como o ritmo devagar do outro cansa por evidenciar em nós a calma que desaprendemos. 

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Fiz alguns acertos literários (falarei dos acertos turísticos mais à frente), convém dizer, dentre eles acompanhar a participação de Etgar Keret no evento, autor de quem venho falando há cerca de um mês para um grupo de amigos que já nem deve me aguentar mais. O israelense subiu ao palco de bermuda, andando com os pés en dehors e uma aura meio estropiada de bailarino contemporâneo que acabou de sair de um ensaio. Dividiu a mesa com o mexicano Juan Villoro, apenas um pouco menos impecável que Ángel Gurría-Quintana, o mediador. Incentivados por este a falarem de seus pais, Villoro contou uma boa história sobre a taqueria marxista que seu pai abriu e que faliu em tempo recorde. Keret emendou com uma narrativa que poderia ser um de seus contos hilários e absurdos. Sobrevivente do holocausto, seu pai resolveu que viveria várias vidas, e para isso mudava de profissão a cada X anos. Em alguns ofícios era ótimo e a família fazia viagens internacionais; em outras ocupações era péssimo e mal tinham dinheiro para comprar sapatos, o que fazia o pequeno Keret perguntar “pai, estamos pobres agora?”. Keret é seu texto, parece. Falou, também, do humor como forma de protesto contra a realidade, e de como ele funciona como uma espécie de pano que é o que te permite tocar algo muito quente, como uma panela. Gosto dessa imagem e converso sobre ela mais tarde com Luciana, na casa Rocco. 

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A casa da editora é uma das muitas belezas do Centro Histórico, situada bem pertinho ali daquela confusão da rua do Comércio, o Champs-Elysées local. É ampla, tem um mezanino de madeira onde habita uma cama de outros tempos, tem bancos compridos que acolhem, tem um jardim interno com plantas e janela para a cozinha. Principalmente, tem um espaço de encontro com Luciana, Diana e Florencia, para citar apenas 3 autores da casa com quem troco e-mails há meses. É uma alegria dar corpo às pessoas, e é curioso o vínculo que se cria com alguém em cujo livro você mexeu. Há um afeto e uma cumplicidade espontâneos e é como se o processo de edição virasse entre nós um segredo, uma história que tecemos juntas e que se torna especial, como se essas coisas que compartilhamos longe dos olhos do público fossem uma preciosidade. É bom ter um ponto de encontro e de respiro nessa margem direita tão tumultuada. E é sempre sol quando vejo R. barriguda, microfone na mão apresentando ao público escritores e livros que ela mesma ajudou a parir. 

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É igualmente bom encontrar Antonio e José na Rive Gauche paratiense – e arrancar uma risada do Gregorio Duvivier ao denominar assim as coisas – a caminho do que chamamos Saint-Germain, vindo do que chamamos de Pigalle, certos de que terminaremos o dia no que chamamos de Marais. 

E não é só com eles que rio, ao contrário: Antonio Prata está no mundo para potencializar nossa endorfina e rio duplamente, uma vez na casa do IMS onde ele fala sobre Campos de Carvalho, e outra vez na mesa que divide com o paquistanês Mohsin Hamid. No IMS, Antonio fala da decepção de entrar na casa de Campos de Carvalho – “uma empresa de demolição” – e dar de cara com um tapete de peixinho no banheiro, uma entre outras mediocridades da decoração. Na mesa da programação principal ele provoca gargalhadas descontroladas na plateia pela menção que faz a uma crônica de 2008. Antonio é seu texto também, parece: ágil, cheio de tiradas e tão fluido, tão natural, faz parecer que alguma coisa pode ser fácil e ótima. 
 
No IMS, painéis com diversas frases de Millôr causam alegria e likes no instagram. A minha preferida, contudo, é ouvida na mesa bônus, que reúne Mathieu Lindon e Silviano Santiago: “Esnobar é pedir café fervendo e deixar esfriar.” É um pouco o que eles fazem, talvez, especialmente o francês. Pense: Foucault emprestava o apartamento ao amigo para experiências com LSD e ópio, nos anos 1970, na rue de Vaugirard, na Rive Gauche – essa sim - parisiense. Em seu O que amar quer dizer ele conta da amizade com o filósofo, e na mesa diz do privilégio de ter vivido esse encontro. Supomos que sim, mas Lindon é vago, rodeia o assunto e escapa de nos revelar tudo o que gostaríamos de saber. Silviano é medroso, ele mesmo confessa, mas tem algo ali que o deixa mais desarmado, e o que diz do trecho de Montaigne que deu título à mesa (“Se me obrigassem a dizer porque o amava, sinto que a minha única resposta seria: porque era ele, porque era eu.”) é tão bonito que já não anoto mais nada no caderno, fico pensando nessas amizades decisivas. 

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Um carneiro de para-quedas – é o que Lev, de 9 anos, pede ao pai para desenhar na minha dedicatória, e quando termina, Etgar Keret rouba a minha caneta. O menino come a mesma massa que eu no jantar e diz “thank you” quando eu o ajudo a arrastar sua cadeira para trás. Ele tem os mesmos olhos da mãe, que é uma dessas figuras fascinantes com um rosto poderoso do qual quase não consigo desviar. Nos despedimos com a perspectiva de mar, e antes que o domingo chegue tento entender a conversa entre dois jornalistas – Graciela, a argentina que fala loucamente, e David Carr, o colunista do NY Times que parece um astro do rock pós-rehab. Já não entendo mais nada, a cidade ferve de gente, decidimos jantar pela segunda vez no mesmo dia, e o domingo já vem.  

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Glaucimara, a traineira com almofadas em forma de coração, nos leva para uma prainha pequenina, um mar da cor dos olhos de Lev e uma mansidão quase ianomâmi, não fosse o horário de voltar. L. e eu falamos abobrinhas, praticamos nossa imitação de tradução simultânea, nadamos até a areia e planejamos comprar cachaça mais tarde, almoçar crepe, viajar para o México em dezembro. É um bom encontro, eu penso, no sentido spinoziano, mesmo que eu não tenha credencial para fazer citações. Em retrospecto, concluo, são bons os outros também, mesmo a fuga. São pedaços de uma história, e organizar as anotações e papeis que estufam a bolsa é procurar o meu texto, procurar um lugar possível em meio à balbúrdia de tudo que Paraty se tornou. 
Num próximo ano, talvez, apostar em tudo o que for completamente estranho, tudo o que parecer meio perdido, como eu. Comprar mais um colar de índio. Certamente navegar. 




terça-feira, julho 15, 2014

Onde eu possa plantar meus amigos

É tanto cabelo que a gente encontra pelo chão que já penso em usar touca dentro de casa, disse M. quando foi morar em Barcelona com uma amiga. O chão branco deve ter a ver com isso, eu pensei, vai ver meu cabelo já caía assim. O caso é que quando você mora sozinho começa a lidar com coisas nunca dantes enfrentadas, como a poeira inclemente que parece entrar por todas as frestas, os fios de cabelo que parecem multiplicar-se bem mais na sua cozinha que na sua cabeça, o fato de que o tapete do banheiro que você acabou de lavar não vai secar nunca, nem se o verão chegar. E os legumes e verduras na geladeira.

Já na segunda semana a minha Brastemp virou um cemitério de hortaliças e eu acompanhei, desolada, o apodrecimento de beterrabas, folhas e raízes. Aquela gaveta ingrata, além de dor nas costas, agora me dava corpos putrefatos quase que diariamente: as coisas não morrem ao mesmo tempo. O prazo de validade dos verdes é pequeno, sim, e se agrava quando você é adepta dos orgânicos e inapta a se organizar emocionalmente para amanhecer na feira de sábado. Sendo assim, você vira refém das bandejinhas de abobrinhas que nunca tem menos que três exemplares, e o mesmo se dá com tomate, pepino etc. e é batata (rá!): você percebe que também é inapta para montar uma logística de aproveitamento e apenas não dá conta de consumir 6 rabanetes em 5 dias.

Numa outra esfera da cotidianidade, B. adotou a política de, numa mesma semana, usar apenas roupas brancas, na seguinte apenas roupas pretas, na outra apenas roupas estampadas/coloridas, numa tentativa de otimizar sua lavanderia caseira. Tenho procurado fazer o mesmo, mas há algo de hipnotizante e terapêutico em observar as roupas girando na máquina de lavar e quando dou por mim estou lavando panos de chão, panos de prato e o que mais estiver ao alcance. Num destes momentos de ausência do mundo em que toalhas e lençóis rodavam à minha frente pensei até em deslocar o sofá para a área de serviço. E pensei, também, em me unir a alguém, porque fui tomada pela certeza de que o casamento só pode estar situado numa interseção entre o amor e uma bandeja de couve-flor.

Num desabafo com L., que assim como eu é inapto da feira, da lógica alimentícia e do coração, confessei que todo o meu histórico amoroso vinha me assombrando violentamente ao percorrer os corredores do Hortifruti. Eu me lamentava não poder dividir o brócolis orgânico com a pessoa amada e portanto evitar o desperdício, ao mesmo tempo que via que um buquê de alface poderia abastecer três residências de solteiros por uma semana sem qualquer percalço. Lamentava, também, o destino cruel que a vida me reservava: sem agrião ou acelga para o tempo que dure a minha solidão. Segundo L., havia, porém, uma saída para o gengibre e bastava quebrá-lo em pedaços menores na gôndola do super. É óbvio, pensei, e diante do fato reavaliei toda a minha ética hortifrútica.

Foi assim que passei a surrupiar folhas de alface e escondê-las nos maços de couve que compro e que só são consumidas graças ao suco verde diário. Ramos de agrião e de cheiro verde foram incorporados ao espinafre. E outro dia, numa festa, me dei conta de que estava há 15 minutos revoltada com 2 amigos que também não se conformam com o tempo de cozimento das beterrabas, e discorremos sobre legumes durante 5 ou 6 músicas, sendo uma delas do Daft Punk, enquanto à nossa volta as pessoas normais ficavam bêbadas e/ou lânguidas.

É uma obsessão, não sei como controlar, e apesar dos furtos terem dado certo, o grau de tensão que eu senti não compensou o crime. A questão já virou pauta de análise, e fico feliz da minha psicóloga entender que as picuinhas da vida a um podem ser muito mais eloquentes do que crises de identidade. As pessoas esperam que você apareça no divã toda semana com uma grande questão e uma série de abstrações e indagações existenciais, ou no mínimo com uma dor de cotovelo avassaladora: a minha dor é a privação de aspargos, berinjelas e repolho. 


Na tentativa de remendar tais agruras, convoquei B. e L. para o super. Fomos munidos de tupperwares, facas e saquinhos, e uma vez que tudo havia sido computado dividimos nossos verdes, embalamos nossas porções e recebemos olhares duvidosos dos caixas e consumidores locais. Se naquela noite alguém pensou em se aproximar de um de nós para dar aquela cantada ali perto dos congelados, desistiu para sempre. Pouco importa: em nosso devaneio, criamos um site de compra coletiva apenas de comida: nunca mais um ramo de hortelã murchará em vão. 


quarta-feira, junho 18, 2014

Casas Bahia - vol. 3


Era maio de 2001 quando li Alta fidelidade pela primeira vez: eu tinha 18 anos e estava em Oxford por dois meses. Reli o livro outra vez há 5 anos, numa época em que eu era xiita demais e não acumulava pilhas de títulos não lidos, e portanto reler coisas era uma realidade. Era um tempo também em que eu tinha critérios suficientes para não deixar livros pela metade: eu acreditava muito em autores e tinha um otimismo genuíno em tudo o que eles tivessem para escrever, da primeira à última página, mesmo que as histórias desandassem e os personagens idem. Eu ia até o fim, era o meu dever. De lá para cá vi surgir uma nova categoria nas minhas estantes, uma espécie de necrotério que abrange suicídios, abortos e toda sorte de crimes literários, sem nem bem saber quem é o culpado. Fato é que mudanças implicam exumações, e algo muito mais complexo que é enfileirar lombadas e agrupar os livros – os sobreviventes – outra vez.

Mas antes disso: as estantes. Estava no jornal essa semana a foto típica do autor em frente à sua biblioteca, e nela um Silviano Santiago todo prosa sorria em primeiro plano. Às suas costas as estantes iguais às minhas, possivelmente mais antigas, certamente mais eruditas, coalhadas de letras, erguidas simetricamente em ângulos retos com o chão. Num extremo oposto, estavam elas também numa oficina mecânica em Botafogo, exibindo óleos, pastilhas de freios, fluidos e outros que tais automobilísticos em igual equilíbrio. E ainda: na casa de um casal de amigos vizinhos que, num ato desafiador à minha incapacidade, declararou com orgulho que não só havia montado as estantes, mas também tinha pintado de vermelho o complexo de metais e parafusos imponente que guarda um acervo invejável – talvez algo entre as minhas posses e as de Silviano.

Os meus livros ficaram dias empilhados no chão da sala, em montinhos desconexos que explicitavam a anarquia temporária advinda do frete, enquanto todos os sábados, pelas manhãs, eu me agarrava a ferramentas e a uma fé cega que me iludiu: as minhas estantes nunca ficarão retas. Entre palpites e diagnósticos de gente tão leiga quanto eu (mas muito convincentes), estabeleceu-se que as estantes vieram empenadas, e que o melhor seria trocá-las, e eu não perdi tempo tentando convencer ninguém de que o melhor mesmo seria jogá-las fora, de preferência em cima da cabeça do vendedor de vassouras que nunca me deixa dormir aos domingos de manhã, quando estou nitidamente derrotada, cansada e descrente de que um dia as minhas estantes serão como aquelas de Silviano ou do casal vizinho – a nível técnico, jamais intelectual.

Quando seu Severino, o porteiro, num veredicto de extrema preguiça avaliou o cenário (“É melhor deixar assim mesmo.”), não tive dúvidas: era hora de ocupar as estantes tal qual a gravidade as deixara: completamente tortas. O que se provou bolinho, visto que tá tudo em pé e carregado com a minha coleção nada ortodoxa. E então o real problema apareceu.

Em maio de 2001 eu achei lindo quando Rob Flemming (no livro ele era Flemming, no filme ele era Gordon) disse para alguém que sua discoteca estava catalogada em ordem autobiográfica. Em 2009 eu achei lindo de novo. Ele poderia se lembrar de eventos de sua vida, dos foras mais doídos, das traições mais estúpidas, das viagens mais longas e dos shows mais embriagantes de sua existência ao percorrer seus vinis nas prateleiras. E então achei que eu também poderia organizar as minhas memórias assim, e que bastaria um rasante nas estantes para entender como passei do diário de Bridget Jones para o Grande Sertão: Veredas. Mas me pareceu positivista demais. Então comecei a agrupar os autores por uma espécie de linha afetiva que começava com os maiores impactos literários que sofri. A linha ia perdendo potência até dar em outros que, eventualmente, foram embora, dada a pouca importância que tiveram. Para não parecer a festa da uva, separei nacionais de estrangeiros, prosa de poesia. E aos poucos fui criando subdivisões e nichos que vieram dar nessa encruzilhada.

Eu sei, todos já escreveram sobre o dilema das estantes, assim como todos os colunistas escrevem sobre falta de assunto – exceto Silviano, é claro – afinal, é de angústias que vivemos. O que fazer, então, com Rimbaud? Ele entra na prateleira de poesia ou na turma dos franceses? Uma antologia de artigos e ensaios de Alan Pauls deveria se juntar à ala de teoria e crítica ou permanecer junto das edições de ficção da Cosac, ali no andar da prosa latino-americana? As raras peças de teatro, que ainda não configuram uma categoria em si, se juntam aos livros de dança para juntos formarem o canto das artes cênicas? Mas o que fazer com as duas ou três peças de Pirandello que já estavam ao lado do Calvino, anunciando um território italiano tímido? E aquele casal que se separou e que antes ficava coladinho na até então bem resolvida prateleira de poesia? 31 canções, do Nick Hornby, fica junto com os ingleses ou vai pro rol dos livros de música? E quando, por obra do destino, sobram 8 livros escritos em inglês que têm de se apertar ao lado do César Aira? É um jogo de Tetris aparentemente sem solução e enquanto alguns amigos são sensíveis à minha causa, outros me sugerem dar um pulinho na Travessa pra ver como eles fazem, e com isso meus dias têm se dividido entre compras na Amoedo e contemplações solitárias em livrarias diversas.

O que está bem acertado, no fim das contas, é o andar dos livros mortos: um abandono comum a temas díspares e autores que jamais se encontrariam reúne sem constrangimento uma turma crescente e aparentemente aleatória. Não ouso citar nomes, mas me parece que um ou outro está em paz com suas estantes. Essa parte da biblioteca talvez seja, curiosamente, a mais autobiográfica de todas: uma coletânea de desistências e julgamentos meus sobre o mundo, tentativas bem sucedidas de deixar de fora o que eu quero que fique fora. Os poucos momentos em que o leitor realmente têm controle são esses em que abrevia seus desgostos, ergue uma cruz, encaminha para o sebo. Há controvérsias, mas gosto de pensar assim enquanto, inutilmente, tiro da caixinha de ferramentas a chave de boca, me alongo um pouco na posição do cachorro invertido e inicio mais uma batalha perdida contra a física. 



segunda-feira, junho 16, 2014

Porto Alegre - vol. 3

Querida,

Foi só quando abri a terceira caixa que encontrei o meu bloco meio amassado – e ainda não sei onde foi parar o caderno de receitas, não consigo achar – com o começo de um bilhetinho que ficou inacabado. Eu pensava que aproveitaria a calmaria do Horto para escrever, estudar e começar uma horta. Mas a vida prática se impõe e eu já acho que a qualquer momento um vizinho vai bater na minha porta pedindo encarecidamente para que eu pare de passar aspirador a todo momento: é tanto silêncio que o menor ruído torna-se agressivo.

Meus ombros doem como se eu tivesse nadado quilômetros: sinto falta daquela piscina, de passar pela praia todo dia e de algumas pessoas que ficaram pra trás. E do cachorro: morro de saudades do cachorro, e toda visita que faço a ele é só uma confirmação de que cada vez terei menos dele, e isso me dilacera, acabo sempre chorando no elevador.

Tem sido difícil trabalhar ou gostar de qualquer coisa que não ficar em casa e outro dia mesmo pensei em simular um desmaio ou pedir demissão: pintar uma mesinha, comprar mais flores para encher as garrafas de espumante que ficaram, provar todas as frutas da minha feira delivery e mais uma vez tentar aparafusar as estantes (tem uma foto no jornal de um escritor na frente de suas estantes, iguais às minhas, mas todas retas, e eu me pergunto como? J. acha que elas estão empenadas.). Ou, sei lá, ver um jogo de futebol esparramada no chão da sala, devorar brigadeiros.


É bom ter você de volta e poder fazer um pouco de tudo isso juntas. Fique por aqui.