"You were born naked and the rest is drag."
Ru Paul
Trajal Harrell está na porta do Teatro Café Pequeno cumprimentando cada um que chega para assistir seu número. Ele é um negro americano baixinho com olhos que ocupam quase todo o seu corpo e que imagina o que teria acontecido se alguém da tradição Vogue tivesse encontrado os bailarinos pós-modernos da Judson Church em 1962, em NY. Por acaso eu mais ou menos sei um pouco das duas coisas, e o que me leva até ali numa tarde quente de 2012 é justamente a expectativa de ver uma possibilidade desse encontro impossível. Poucas pessoas têm a mesma curiosidade que eu e quando fica evidente que ninguém mais vai aparecer ele nos convoca a sentarmo-nos em círculo no chão, explica sua ideia e nos distribui textos em uma espécie de apostila. Ele nos avisa que treme em função da intensidade dessa performance e da proximidade com o público. E numa quase escuridão nos entrega a versão XS de seu “20 looks or Paris is burning at the Judson Church”.
Ru Paul
Trajal Harrell está na porta do Teatro Café Pequeno cumprimentando cada um que chega para assistir seu número. Ele é um negro americano baixinho com olhos que ocupam quase todo o seu corpo e que imagina o que teria acontecido se alguém da tradição Vogue tivesse encontrado os bailarinos pós-modernos da Judson Church em 1962, em NY. Por acaso eu mais ou menos sei um pouco das duas coisas, e o que me leva até ali numa tarde quente de 2012 é justamente a expectativa de ver uma possibilidade desse encontro impossível. Poucas pessoas têm a mesma curiosidade que eu e quando fica evidente que ninguém mais vai aparecer ele nos convoca a sentarmo-nos em círculo no chão, explica sua ideia e nos distribui textos em uma espécie de apostila. Ele nos avisa que treme em função da intensidade dessa performance e da proximidade com o público. E numa quase escuridão nos entrega a versão XS de seu “20 looks or Paris is burning at the Judson Church”.
Dois anos depois entro num taxi com um casal de amigos e
comento que sim, sei mais ou menos do que se trata o espetáculo para o qual nos
encaminhamos num novembro não menos inclemente. Pouco depois o mesmo Trajal, com
seus olhos engolidores, mas agora de cabeça raspada, está na entrada do acesso
à plateia do Teatro Municipal, e logo no palco, microfone em punho,
contando para todos nós que a versão L de “20 looks or Paris is burning at the
Judson Church” não tem qualquer intenção de recriação histórica, mas que se
trata de uma hipótese imaginativa que só pode acontecer hoje e agora, conosco.
É bom se sentir especial, mesmo que.
Trajal treme. Seu espetáculo pode variar de tamanho e
duração dependendo das condições e locais de apresentação. O que nos espera é
uma versão que ainda mistura Antígona em cerca de duas horas que ele nos garante
que passarão mais rápido do que possamos perceber. Um de seus bailarinos entoa,
à capella, o hino da casa deles: “Hit me baby one more time”, da Britney
Spears, arranca risadas. A minha solidão também está me matando.
Bailarinos vestidos discretamente de preto e branco dançam músicas pop alternadamente, iluminados por um foco de luz sobre um quadrado
branco e já desconfio de que passarei o domingo todo ouvindo repetidamente uma canção da Tori Amos que é quase uma intimação para se jogar. Além de Trajal, são
mais 4 em cena, e todos são um acontecimento, especialmente aquele que,
calçando saltos vertiginosos e exibindo um peito de pé inverossímil, encarnará o apresentador do desfile de príncipes, sem se dar por satisfeito. O
desfile das “mães” vem logo em seguida, e é um pouco mais alentador assistir a
tudo isso se você tiver visto Paris is
burning, o documentário de Jennie Levingston que retrata os bailes do
Harlem dos anos 80, movimento de um submundo gay e transgênero em que a dança
Vogue surgiu, em alusão à revista de mesmo nome. O clipe da Madonna ajuda a
entender um pedacinho, mas tudo vai muito além, inclusive a performance de
Trajal.
À parte qualquer didatismo ou escola de dança envolvidos
nesse encontro imaginário, o show de Trajal é louco, divertido, interminável e lá pelas
tantas faz pensar que uma versão tamanho M poderia ser melhor. Confesso que a
poucos minutos do final abandonei o barco, otimista com a perspectiva de fazer
xixi sem fila e divertida com a mensagem de uma amiga que me perguntava “você
também está neste suplício travecoso?” – e que, depois que furei o
jantar, me desejaria mais 5 horas de “travestis convulsionantes”. Realmente,
que canseira. Realmente, que liberdade, e eu que achava que ter cortinas em
casa te dava aval para qualquer coisa.
Entre narrações, músicas cantadas pelo próprio coreógrafo,
jograis insanos (“Se fossem alunos da CAL num teatro obscuro a gente ia achar
uma merda, Julia!”, disse alguém no caminho de volta, e eu ri), fios que se
estenderam das mãos de Trajal até os fundos da plateia do teatro por sobre
nossas cabeças graças ao bailarino francês pulando de cadeira em cadeira,
mitologia, questões de gênero, sexualidade e recortes culturais de coisas que
amaria ter visto ao vivo o que sobressai é um mundo tão de Trajal que muitas
coisas soam como piada interna. Mas todo mundo se contorce quando ele afirma
que deveríamos reivindicar uma Uniqlo à Dilma.
Deveríamos ter tirado fotos do grupo de drag queens que
causou furor no Teatro, possivelmente deveríamos ter nos entregado mais quando
Trajal conclamou uma festa em todos os setores do teatro e parte do público,
resistente, levantou, dançou, gritou, aplaudiu enquanto outra parte se sentiu
obrigada a, na expectativa de que aquilo fosse o encerramento tão aguardado.Outros já tinham ido embora há tempos.
Deve ser anarquia. E depois de revirar os olhos seguidamente, eis que fiquei parte do dia seguinte atormentada. Deve ser aquilo que o Salinger diz
nas últimas frases do Apanhador:
“Don’t ever tell anybody anything. If you do, you start missing everybody.”
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