sábado, dezembro 22, 2012

ho ho ho

 A tirinha veio daqui.

Um bom fim de ano a todos, obrigada pela audiência e até logo!


terça-feira, dezembro 18, 2012

retrospectiva 2012


Envoi

O tempo, que a tudo distorce,
às vezes alisa, conserta,
e a golpes cegos acerta:

em seu tosco código Morse
de instantes sem rumo e roteiro
então dá forma a algo de inteiro.

Não um verso, que em folha esquiva
a gente retoca e remenda
até ser coisa que se entenda,

mas algo que na carne viva
se esboça, se inscreve
bem mais a fundo, ainda que breve –

pois todo poema é murmúrio
frente ao amor e sua fúria. 

Paulo Henriques Britto, Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.  

E se alguém objetar que não vale à pena tanto esforço, citarei Cioran: "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', pergutaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer.'"

Italo Calvino, Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.

segunda-feira, dezembro 10, 2012

Danço eu, dança você


Ficou tudo muito complicado pra mim esse ano: perdi os 2 shows da Baby, não frequentei o Arpex, não fui a nenhum comício político, não vi o Stevie Wonder ao vivo e não me empolguei com a ideia da Praça São Salvador como local de socialização, mesmo porque lá estão todas as pessoas que certamente me achariam boçal, visto que moro no Leblon e sou proprietária de um veículo automotivo. Pra piorar, não acho tanta graça assim no Fábio Porchat, não postei nenhum almoço no instagram e outro dia, ao rapidamente conhecer a dupla que lançou a moda das plaquinhas “respeite: um carro a menos”, sugeri que eles deviam lançar uma campanha pelo uso de capacete dos usuários de magrelas. Ficaram desarmados com meu mau humor.

Senti a exclusão na pele: os convites para chopes foram ficando cada vez mais escassos, a praia cada vez mais solitária, as idas à livraria cada vez mais diárias. Não é fácil ser equivocada nessa vida, e numa tentativa desesperada de integração, comprei um smartphone. Julguei que tal ato fosse me colocar no centro da pós-modernidade onde todo mundo usa whatsapp, twitter da Lei Seca e fotos mirabolantes de seus pés, pugs e plantas. Eu, que ainda vivo na era dos poodles, achei que bastava um pacote de dados para me atualizar.

Os primeiros sinais de infelicidade pós-smartphone vieram no mesmo dia que saí com ele na bolsa pela primeira vez: não pude me comunicar com ninguém por incapacidade de teclar. As poucas palavras que acertei foram prontamente corrigidas pelo aparelho, e rapidamente “lindona” (a nova cadeira da minha irmã), virou “linfoma”, o apelido da Julia – “xará” – virou “cara” e eu nem pude atualizar meu status do facebook com um versinho porque o meu Samsung jamais entenderia minha poesia. Às 3 da tarde a bateria já dava sinais de falência e eu resolvi comprar um relógio. No dia seguinte, depois de uma noite na tomada, o alarme, batizado de “todo dia” (no smartphone você pode nomear seus alarmes, veja só), não tocou, eu perdi a hora e às 10h15 estava no camelô que me vendera o relógio de pulso, dessa vez procurando por um de mesa, daqueles cuja pecinha você levanta antes de dormir e abaixa quando se põe de pé. Salve a tradição.

Os segundos sinais de que algo não ia bem vieram na praia de sábado, quando o celular transformou-se num espelho: não se via nada na tela além do meu rosto refletido. Eu fazia sombra com as mãos, colocava o aparelho e a minha cabeça dentro da bolsa e nada, não se enxergava nada. Eu queria telefonar pra Bruna pra avisar que estava ali em frente à JL, que o mar parecia um presente, mas nada parecia possível e só um milagre nos reuniria naquela manhã de sol. Fui pra casa e liguei o ar-condicionado no máximo, mandei 3 mensagens pra ver se descolava companhia pra jantar, mas acabei comendo uma salada do Gula-gula em frente à tv, desejando que Elaine e George fossem reais, porque nem as séries certas eu assisti esse ano.

Veio domingo e uma chuva de espantar os habituais bailarinos, digo, skatistas da orla, e calcei os tênis para sair à caça de uma bici. Na terceira estação havia algumas disponíveis, e um crowd de gente na disputa. Perdi qualquer chance quando, depois de discar o número praticamente debaixo de um carro que me dava sombra suficiente pra enxergar a tela, a mocinha eletrônica disse “digite o número da estação” e não havia teclado disponível. Derrotada, me arrastei pra fora do carro, me levantei com dificuldade e fui me consolar comendo waffles na Argumento: eu estava ficando patética e gorda, e a possibilidade de fazer amigos no Vigilantes do Peso me deu ânimo. Quem dera. Depois de 15 minutos esperando uma mesa, tomei o caminho de casa, rumei ladeira acima e postei uma foto da capa de um livro no instagram.

Faz 2 dias que choro sem parar pensando no meu velho Nokia, na minha velha vida, naqueles dias românticos pré-3G em que eu conseguia falar com as pessoas. Meu único consolo tem sido a faixa 3 do novo cd do Caetano, uma tão miserável quanto a minha conversão à tecnologia e que diz: “estou triste tão triste / e o lugar mais frio do Rio / é o meu quarto.”

segunda-feira, novembro 05, 2012

Meus subúrbios


Tem essa tosse que vem de tempos em tempos. Explode junto com uma mancha rosada na bochecha. Todas as soluções disponíveis, das sementes ao silêncio, não vão resolver: a tosse é a tentativa de expulsão, ainda que você não esteja mais aqui. A mancha na bochecha, dizem, não tem cura. Como se alguma coisa tivesse. 

É lindo como os portugueses não usam gerúndio e precisam do infinitivo do verbo.  Outro dia, em aula, alguém disse: o infinito do verbo. Não só o texto, mas a palavra também: descosturada, a esfiapar: sem ponto de chegada. 

Tem essa tosse que me deixa sem voz, e ainda que eu quisesse conversar com alguém. Sem fala,  sem o seu barulho e sem o seu me enxergar: passo em branco, eventualmente acordo a chorar, como é que te deixei morrer assim? 

Implosão sobre travesseiros, saudade entranhada, lembranças que não desgrudam, e essa tosse a insistir na impossibilidade. Você, infinito: a única coisa que eu sei.


sexta-feira, outubro 26, 2012

Lanterna dos afogados - capítulo VII


Foi uma professora de dança que descobriu: escoliose. Havia uma escápula muito mais pontuda que a outra, um lado das costas mais alto. Uma perna era mais en dehors que a outra, um braço girava mais pra trás que o outro. Minha sequência de piqués era melhor pra um lado do que pro outro. Observando bem, meu olho direito é mais escuro que o esquerdo, e tenho mais cabelos brancos de um lado da cabeça, além de mais pintas e sardas numa das bochechas que na outra. O novo paradigma poderia até mesmo justificar escolhas afetivas, gosto musical, ideologia política. Posição pra dormir, certamente. Não demorou muito até a escoliose começar a dar problemas. 

Um belo dia, a fisioterapeuta decretou, e lá fui eu. E quando, meses atrás, decidi largar a natação, por tantos motivos mais que autoexplicativos, dei de cara, na seção de quadrinhos da Travessa, com um livro que era minha biografia. Um fisioterapeuta dá um ultimato a seu paciente, que passa a encarar o mundo das piscinas. Desavisado, ele começa a nadar sem óculos. Despreparado, atropela gente na água, morre de falta de ar e usa as bordas da piscina para sobreviver. 

É tudo tão lindo no livro, e tudo começava a se enferrujar em mim. Senti que eu estava encolhendo e percebi que, em todas as idas à praia (e foram muitas, porque tive férias e sol), me atirava no mar com muita urgência, e que até os banhos ficaram mais demorados. Morri de saudades da água sem nem saber que isso era possível. 

 Munida de um novo maiô, consciente de que minha pele e meus cabelos voltariam a ficar opacos, mas ao mesmo tempo esperançosa de que poderia pegar meu sobrinho no colo outra vez, voltei, e tudo parecia mais aprazível desta vez, a começar pelo horário da noite. Terrível engano. A natação noturna logo mostrou sua verdadeira face, e quando me dei conta a atividade tinha virado uma piscina cheia de gente conhecida. 

Começou por M., que um dia apareceu exclamando “Julieta!” e desde então R., o odioso professor de natação se achou no direito de socializar também, ainda mais depois que encontrei S. Eis que R., que por semanas me chamou de Juliana (e eu não podia argumentar, porque durante 2 meses eu pensei que ele se chamava Eduardo), perguntou se eu trabalhava com produção. Quando respondi que era editora (tem sido minha resposta preferida nos últimos tempos, e desconfio de que tenho respondido “editora” mesmo quando me dão bom dia), ele pareceu felicíssimo por poder dizer “então você deve conhecer Z., que é editora também, ela nada aqui!”. Z. é alguém da alta hierarquia de uma editora que fica a uma quadra da natação. Além dela, S., designer de jóias, M., diretor de fotografia, Fulano, do Bangalafumenga, e, pasmem, Paulão/Carlão (!) que trabalha com produção sei lá onde. De repente concluí que eu nadava nas águas mais fucking cool da cidade. 

Seria fácil se esse fosse o único defeito de R. (falar). 

Há uma ou duas semanas atrás, quando encontrei M. numa festinha, aproveitei pra desabafar e perguntei se ele não concordava que o R. era um bunda. Foi preciso argumentar: R. passou semanas me chamando pelo nome errado; começa a aula atrasado; é meio grosso; é preguiçoso e não tem criatividade; só me manda nadar crawl. Eu que achava que a natação já era uma definição de chatice, e que portanto não tinha como piorar, vi que tudo se supera: não dá pra ser feliz nadando uma coisa só a aula inteira. A escoliose, porém, pôs fim à discussão: quando ela aperta, o ombro cai pra frente e o elevador da escápula logo se contrai – “você precisa nadar costas”, disse a fisioterapeuta, e repeti a fórmula para R. A essa altura, M. já estava convencido: passei a nadar só costas e R. é um bunda.

Talvez R. não seja o único culpado pelo bode de nadar à noite. Falta a música da hidroginástica ao lado (nesse horário não tem mais aula), falta democracia na faixa etária dos alunos. De repente me vi nadando sempre em meio a 3 homens de barba, sem nenhum sexagenário pra me consolar, ou sem a iminência do xixi e dos brinquedinhos da turminha infantil. Pra piorar, quando estou nas séries finais (embora a aula não pareça ter começo, meio e fim, vide que nado a mesma modalidade o tempo todo), um sujeito começa a estender sobre a água uma capa de proteção. É muita solidão. Quando chego em casa posso imaginar o silêncio. Água não foi feita pra ficar parada. Talvez seja isso que R. não tenha entendido, e por isso se agarra ao marasmo da mesmice. É triste. 

Eu tinha decidido voltar a dançar. Mas nós, portadores de escoliose, não temos livre arbítrio. Tentei caminhada e corrida, e foi um desastre lombar. Comprei o passe para as bicis, que simplesmente desaparecem das baias nos fins de semana. Quando a homeopata me pesou na quarta-feira e calculou 4 quilos a mais, o desespero de encontrar outra atividade me fez entrar no site da Bodytech, mas logo recobrei o juízo (ou parte dele). Agora que eu já me acostumei a encontrar gente de touca, decidi: aumentei a natação para 4 vezes por semana. 




segunda-feira, outubro 01, 2012

Paraty para malogrados

Tenho uma pilha de trabalhos acadêmicos pra fazer, um amor pra conquistar e a Carol ainda me pede que eu atualize o blog. Então recorro a uma canastrice das piores, e deixo aqui as minhas anotações pós-Flip pela metade, além de uma dedicatória (for dummies) enquanto um novo texto não vem. (Gustavo, por favor, não me abandone.)



1. Da alimentação

Cada 3 quadradinhos de Passatempo recheado contem 140 calorias. Multiplique esse valor pelo equivalente a 2 pacotes e teremos o total de calorias ingeridas em substituição a 2 almoços que nunca chegaram. Comer em Paraty é um desafio peloqual eu havia passado em 2008, e de lá pra cá já era possível ter havido uma intervenção do SEBRAE, SESC ou SENAC (ou outro órgão afim) no sentido de estruturar a cidade para receber seus visitantes, especialmente durante o período em que ela fica mais cheia. Antes mesmo. A média de espera por um prato é de 1 hora e 15. As ameaças de cancelamento de pedidos chegam a 90% por refeição. Contei 3 panelas no restaurante tailandês onde um garçom tatuado cometeu de 5 a 7 grosserias em 3 horas (das quais, duas esperando: mesa, comida, Godot), e pedi uma banana de tira-gosto porque tive a certeza de que iria desmaiar de fome. Numa conversa com amigos livreiros, igualmente subnutridos como eu, pensamos que em tempos de Flip devia haver pequenas ilhas de alimentação rápida espalhadas pelo centro histórico, com barracas de temaki, uma versão express da Bruscheteria, sorvete Itália, crepes de palito etc. Para 2013, já planejo levar um personal cozinheiro, equipado de fogareiro, sopas e que tais. E o Itaú, em vez de distribuir aqueles bancos de papelão, pintando inutilmente a cidade de laranja, devia oferecer cachorro-quente Geneal. Fica a dica.

2. Das pedras

 O Itaú podia distribuir, também, fisioterapeutas. Eu comentava com a Rosana que Paraty era excludente, e que devia haver uma Para-Flip. Pouco depois, recebemos a notícia de que a chefe de nossa delegação quebrara o pé em acidente ocorrido dentro da tenda dos autores, quando Zambra dizia que Emilia tinha morrido e Julio não tinha morrido e o resto era literatura. Para além da escuridão e da falta de grades na tenda dos autores, as depressões e desnivelamentos das ruas são um suplício para qualquer flâneur, e se Flaubert fosse caiçara a história da literatura ocidental seria outra. Poucos sapatos resistem, muitas torções nos espreitam, não há coluna que se sustente, e na segunda-feira, passados alguns quilômetros de olhos mirando o chão, decreto: estou em frangalhos. Tivesse o Itaú distribuído bolas de pilates, massageadores de madeira que deslizam bolinhas pelas costas e relaxantes musculares, ou mesmo mucamos para carregar os mais escolióticos, nem precisaríamos de repouso no primeiro dia útil pós festa literária. 

3. Das dedicatórias

Ao começo da mesa de Laerte e Angeli, anunciaram que seriam distribuídas apenas 50 senhas para autógrafos após o debate. É um processo de seleção natural e cruel que exclui automaticamente os tantos sentados nas tendas dos autores e do telão. É cruel, também, quando o autor, em vez de fazer uma dedicatória, por mais boba e impessoal que seja, declara que só vai assinar seu livro. A caminho de um almoço, desolados sob o sol do meio-dia, carregando 2 livros com apenas duas assinaturas, pensamos em falsificar as mesmas. Inserir um “to Julieta”, seguido de um “love your glasses” ou algo do tipo, algo que desse testemunho do encontro pífio entre leitor e escritor. Era só ter a mesma caneta, copiar a letra, quem ia saber? Nós que gostamos de ficção temos um acordo tácito com a vida: estamos dispostos a ser manipulados e iludidos por toda espécie de manobras. Mas no caso da dedicatória, talvez a mentira perdesse mesmo o sentido. O sonho acabou, disse John. Acho que agora entendo...



A simpática dedicatória de Enrique Vila-Matas (juro).






segunda-feira, setembro 10, 2012

Sei que nada será como antes, amanhã*


Não sei como soube da existência de Inhotim, mas lembro de um dia, num bar com amigos, ouvir um deles contar que uma amiga recém-chegada de lá tinha definido o lugar como a Disney das artes. Também não sei se ela foi a curadora do termo, que apareceu depois em diversas reportagens e virou lugar-comum para descrever o instituto. 

Quando fui a Inhotim pela primeira vez, no carnaval de 2010, constatei a pertinência do adjetivo. Quando fui a Inhotim pela segunda vez, na Independência em 2012, constatei como a expressão havia extrapolado a conotação inicial e tinha virado outra coisa. E entendi como virar uma saudosista nesse intervalo de 2 anos. 

Previously, Inhotim era a Disney porque aquele lugar parecia não existir: uma terra de 400 hectares numa cidade do interior de Minas Gerais, sítio de um milionário da mineração, amigo de Burle Marx, que decidiu construir galerias para abrigar sua coleção de arte contemporânea, e que decidiu abrir seus portões à visitação. Era a Disney porque os pavilhões e galerias eram fruto de sonho, funcionavam à perfeição, eram limpos e cheios de funcionários simpáticos (em Minas isso não é de se espantar), e porque a experiência era sensorial, calma, em momentos até bucólica. Estar em Inhotim era renegociar sua relação com o tempo. Era tirar os tênis, caminhar sem quase cruzar com outras pessoas. Era, também, derramar lágrimas ao entrar em contato com instalações e obras que fogem à compreensão total, deixar de lado o condicionamento de ter que entender e dar conta de tudo, quase como desaprender racionalidade. Inhotim era um vazamento: um ter que administrar sua própria sensibilidade. Sentar na grama, olhar por outro ângulo, tentar ver ilimitado. Como dizem na Academia: ser atravessado por afetos. 

Passados 2 anos, Brumadinho me revelou a Disney sob outros aspectos. Alguma coisa se democratizou, mas não necessariamente a arte. 

O crowd na porta anunciava uma experiência muito diferente da que tive pela primeira vez. Inhotim 2012, usando emprestada uma expressão pejorativa, está infestado de haoles. Filas para a comida, para o banheiro, para a entrada, para os carrinhos que nos transportam aos pontos mais distantes, fila até para os bancos de madeira, para uma ou duas galerias, para fotos no caleidoscópio de Olafur Eliasson, que ganhou ares de entretenimento. A Disney dessa vez se operou nessa vertente: diversão. O que mais ouvi foram comentários irônicos e até debochados a respeito das obras expostas em Inhotim, coisas na linha do “mas isso até eu faria”. Outras falas demonstravam a completa incompreensão diante de trabalhos que parecem mesmo incompreensíveis. Vi guerra de almofadas dentro das Cosmococas de Hélio Oiticica, redutos de famílias inteiras que de certa maneira subverteram toda a lógica daqueles ambientes. Crianças nadando na piscina de abecedário, restaurantes lotados de grupos de amigos, poses e mais poses para fotografias dos belos cantinhos dos jardins, brincadeiras, lanches, instagrams e outras tantas posturas que indicavam que boa parte dos visitantes não estava tendo epifania alguma, tampouco se preocupava com conceitos, ideologias, intenções ou discursos artísticos. A Disney, para eles, é feita dessa alegria descompromissada, de um bonito dia de sol, de achar graça das coisas, e a outra Disney, de certa forma, diminui frente a esta, bem mais barulhenta e caótica, e que acaba se impondo aqui e ali.

Então fico nessa encruzilhada: de um jeito ou de outro, todos estão expostos à arte. Conversando com uma amiga à saída do instituto, caímos naquele papo cheio de crença nesses encontros: "Ainda que inconscientemente, Inhotim forma um público, a arte ganha adeptos e é melhor pra todo mundo." A gente que mergulha nesse universo tende a achar que é melhor pra todo mundo, porque às vezes o que parece não fazer sentido é indiferença, ou ficar longe de toda essa produção, não querer entender o processo, passar batido por cores e sons, ignorando toda e qualquer possibilidade de redenção. Mas a impressão que dá é que aquele também virou um lugar de lazer, de passeios, de paisagens. Não é pecado nenhum, é só outra coisa, e eu mesma me peguei nadando e rindo numa piscina que, cá pra nós, ninguém me convence de que seja algo mais que uma piscina. 

Não deixa de ser elitista ou preconceituoso achar que meu jeito de viver Inhotim é melhor do que essa nova Disney. Não deixa de ser romântico achar que todo mundo deveria sentir o que senti quando, neste sete de setembro, passei meia hora na galeria Miguel Rio Branco, ou quando voltei ao galpão Cardiff & Miller pela terceira vez, e tudo aquilo veio à garganta de novo. Se todo clichê fosse permitido, diria que é mágico, porque é se esquecer de si mesmo um pouco. 

Inhotim, para mim, é esse estado de suspensão. É cenário onírico, quase utopia. Um súbito gostar de patos.



obs. didática: fui muito feliz em Inhotim ambas as vezes. Mas para pessoas irritadiças como eu, recomendo evitar feriados. 


* Nada será como antes, Milton Nascimento.

 

quarta-feira, agosto 29, 2012


Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Procura da poesia, Carlos Drummond de Andrade. 


 

quinta-feira, agosto 16, 2012

Conclusões # 01


 O trânsito é sempre pior às terças e quintas e é sempre quinta quando sucumbo à Coca-cola e a confissões inconfessáveis, como confessar que não tenho entendido nada, nada mesmo, e que hoje cheguei em casa e não sabia nem se tinha tomado banho de manhã.

quinta-feira, agosto 09, 2012

O novo porteiro da noite


Não passa de três semanas a data do email da professora de literatura em que ela dizia ter gostado muito do meu pequeno trabalho acadêmico, por sua vez enviado cerca de um mês antes da nota 10 que me chegou via gmail. Desconfiei um pouco dos critérios dela, porque no fundo sabia que haveria trabalhos bem mais relevantes que o meu, mas sorri assim mesmo: a nota 10 me tornava oficialmente uma cdf, e justificava as semanas, até mesmo meses, em que vivi uma vida regrada onde quase não havia espaço para refrigerantes, carne vermelha ou badalações. Tudo isso e um outro 10 na disciplina de artes visuais me levaram a uma rotina reclusa, e foi preciso entrar de férias para perceber a presença de um novo porteiro da noiteno prédio.

Eu chegava de taxi de um jantar que me deixou apaixonada por polvo, e um tanto embriagada por causa de duas ou mais jarras de sangria. Desconfio que dois goles de cerveja já teriam sido suficientes para aquele levitar do álcool, frente à abstinência autoimposta dos meses precedentes. Fato é que, antes que eu pudesse encontrar minhas chaves no fundo da bolsa, o novo porteiro da noite abriu a porta para mim. Não era um horário extravagante, confesso, mas já era hora dos bêbados voltarem aos lares, o que automaticamente significava que porteiros da noite estariam adormecidos. Fiquei surpresa, mas julguei que aquela era a primeira semana de trabalho do novo funcionário. Ao me informar sobre o assunto, descobri que o novo porteiro da noite assumira o cargo bem antes do que eu pensava, e já completava seu segundo mês ali. Blame it on literatura, pensei. Meu argumento era mais que justificável pro meu total desconhecimento do novo porteiro da noite.

As férias seguiram animadas, e cada vez que cheguei à portaria depois da meia-noite me surpreendi com o fato do novo porteiro da noite seguir sempre alerta. Foram inúmeras as vezes que saí do taxi ou da carona com as chaves na mão, eventualmente até mesmo com os sapatos na mão pra não acordar o homem, e lá estava ele: de olhos bem abertos, acionando portas, dando bom dia, chamando o elevador. Sem me dar conta, apliquei um teste à resistência do porteiro da noite, chegando em casa cada vez mais tarde. Tão tarde, às vezes, que o turno já havia sido trocado e eu dava de cara com o porteiro da manhã.

O fato do novo porteiro da noite não dormir alterava a ordem das coisas a tal ponto que fiquei ligeiramente obcecada. Toda vez que alguém me dava carona até em casa eu puxava assuntos com a pessoa, a fim de ficarmos estacionados em frente ao prédio, pra que eu pudesse observar o comportamento do porteiro, pra que eu pudesse flagrá-lo acordando. Eu não me conformava, e nesse exercício de arranjar cúmplices, acabei arranjando alguns beijos também, porque os meninos começaram a interpretar essa minha demora em sair do carro como uma tentativa de sedução, mesmo que eu explicasse toda essa história de novo porteiro da noite. Tava na cara que isso só fazia sentido pra mim.

Quando as férias terminaram, descobri duas coisas: todo mundo tinha tirado 10 nos trabalhos de ambas as disciplinas da pós-graduação, o que foi um balde de água-fria em 14 pessoas. A segunda coisa é que tinha havido uma mudança de síndico no prédio, e que ele pensava em eliminar o porteiro da noite, não só o novo, mas a função em si, a fim de corte de gastos. Convocou-se uma reunião extraordinária em que defendi com unhas e dentes a permanência do porteiro da noite, especificamente daquele, que àquela altura só me via chegar de taxi, porque ninguém mais agüentava minha conversa nonsense na porta do prédio, e porque meu ritmo de estudos recomeçava. Em breve, eu nunca mais veria o novo porteiro da noite até dezembro, porque estaria estudando feito louca pra manter meu c.r., mesmo que ele fosse um embuste.

Logo depois da assembléia que votou a favor da permanência do porteiro da noite, assegurado de seu emprego, o novo porteiro da noite sucumbiu: tirou um cochilo justo quando esqueci de levar minhas chaves.

quarta-feira, agosto 08, 2012


And the vampires. You used to know where you stood with them – smelly, evil, undead – but now they are virtuous vampires and disreputable vampires, and sexy vampires and glittery vampires, and none of the old rules about them are true any more. Once you could depend on garlic, and the rising sun, and on crucifixes. You could get rid of the vampires once and for all. But not any more.

Margaret Atwood em I dream of Zenia with the bright red teeth, conto que está no livro dos 10 anos da Flip.

quarta-feira, julho 25, 2012

Espuma


“Também perguntam muito: ‘o que você está fazendo?’ e que é uma maneira de aproximar e afastar as pessoas, porque é a maneira de colocar a pessoa julgando ela mesma. Eu não sei nada, mas sei que estou nascendo, todos os dias.”
Hélio Oiticica, julho de 1978 em entrevista para Lygia Pape (in Encontros / Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009)

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Eu estava no mar enquanto pensava onde é que eu tinha lido que os surfistas são o Sísifo de nosso tempo. Não encontrei a fonte. Eu estava no mar, não tinha como procurar. Eu estava no mar e pensei que isso fazia muito sentido. Pensei em “Como uma onda”, pensei na Bahia, pensei que finalmente posso dizer que sinto saudade da Bahia. Sinto saudade desse lugar também, embora ainda esteja aqui. Sinto saudade de tudo o que gosto imediatamente, e sinto tudo imediatamente: gostar e saudade. Em doses iguais.

A gente também é Sísifo, por um lado, acordando todo dia, repetindo os mesmos gestos. Pensei em “Cotidiano”, em fim das férias. Eu estava no mar e pensei que logo ia sair do mar, e que tudo então seria esperar voltar pro mar, esperar os dias de sol, e esperar os dias de sol em que eu estivesse novamente de férias, e os dias de sol e de férias em que eu estivesse aqui nesse lugar, ou na Bahia.

Eu estava na varando vendo o sol cair, e vendo aquela praia onde ninguém pode ir, e ouvindo ondas, e de repente tudo ficou daquele jeito: a potência de um começo e um esmorecer das forças, porque tudo poderia ser assim: mergulho, orgasmo, ducha, ballet, literatura, fogo, embriaguez, um dia, amor, qualquer coisa que se sonhara.

Eu estava no mar quando tirei os chinelos e os óculos e entrei na água fria. Eu estava no mar quando me deixei boiar e olhei pro céu. Eu estava no mar quando pedi o almoço e sentei à mesa. Eu estava no mar quando comi camarões rosados, e eu estava no mar quando bebi a segunda cerveja, e a terceira, e eu estava no mar antes das 4 da tarde já bêbada. Eu estava no mar quando queimei o pé na sauna. Eu estava no mar quando tomei banho e descobri a marca de biquíni e quando me joguei na cama ainda meio úmida. Eu estava no mar quando descobri que faltavam as páginas 471, 472, 473 e 474 do livro que eu tinha acabado de começar. Eu estava no mar quando bebi toda a água que tinha na geladeira e quando acordei e já era hora de comer de novo. Eu estava no mar quando fechei as janelas e sem precisar de pijama, dormi.

Eu estava no mar e teria perdido telefonemas, e-mails e afins, mas eu estava nesse lugar que não existe justamente porque nos dias anteriores eu era tão ninguém, e o único refúgio possível era esse, onde só eu conhecia, onde eu podia pensar o que quisesse, sem ter de explicar, pedir, insistir e continuar sem. E sem ter de rolar pedra. Eu estava no mar. E quando eu sair e alguém perguntar, embora não haja quem queira saber, vou procurar aquele livro. Eu estava no mar. Eu estava no mar, repito se for preciso. Eu estava no mar. 

segunda-feira, julho 09, 2012

Classificados

Faz uns dias botei no ar um blog novo e que aceita colaborações. O primeiro post é uma espécie de manifesto e traça os rumos da conversa que se pretende estabelecer por lá. Mas não se engane: nem tudo é verdade, nem tudo é mentira. 

Em breve coloco por aqui algumas notas sobre a Flip, e algumas dedicatórias novas da minha coleção.

terça-feira, julho 03, 2012

segunda-feira, junho 25, 2012

Digite sua senha


Fiquei muito gripada aquele mês, e no seguinte também, e no outro, e na quarta vez que tive que avisar no trabalho que ia faltar, liguei pra homeopata pedindo socorro, porque eu estava com medo de ser demitida por hipocondria, o que pra mim dava justa causa e tudo. A homeopata, entendendo que além de gripada eu estava no auge de uma alergia, me receitou Zyrtec, alopatia pura e tradicional. No dia seguinte, no trabalho, tive que sair mais cedo porque o Zyrtec, apesar de ter me feito voltar a respirar pelo nariz, me derrubou e quando acordei eu estava dormindo em cima de um original da coleção Blanche da Gallimard. E nem era culpa do romance. Zyrtec, concluí, era tão bom pra rinite quanto pra insônia.

Esse foi o início da minha desilusão com a homeopatia, porque se na hora do vamos ver a médica me mandava um tarja preta da descongestão, então é porque até ela se iludia.

Por essa e outras, não recorri a ela quando me bateu uma ansiedade daquelas de atrapalhar o sono. Maio virou e de repente as coisas começaram a não caber: as coisas nos dias, as roupas em mim. Quando junho chegou eu estava num tal estado de nervos e num tal declínio estético que comecei a correr na esteira do prédio da minha irmã, pensando que a medida extrema resolveria dois problemas. Então caiu nas minhas mãos um livro de autoajuda pra editar, agradeci aos céus e perdi meu i-token do banco.

Eu andava comprando livros loucamente, pensava até em voltar pra análise pra tratar de compulsão quando me dei conta de que o i-token tinha sumido há, pelo menos, três dias. Por um lado era bom: significava que eu não encomendava livros desde a sexta-feira, pois não teria conseguido concluir as transações internéticas de pagamento sem o tal dispositivo. Por outro, era um pesadelo, porque a agência na frente do trabalho estava com falta de i-tokens, a Rio+20 ocupava tudo e eu não conseguia nem chegar até a Rio Branco sem ser abordada por todas as militâncias possíveis, tentando angariar mais um pras suas causas.

Imbuída de coragem e absolutamente necessitada de um livro sem o qual não poderia concluir um dos 3 trabalhos acadêmicos sobre os quais me debruço há quatro semanas, lá fui eu.

Quando a mocinha do atendimento me deu um novo i-token, ela exclamou que eu ia gostar muito mais desse novo modelo, que nem tinha nem botão pra apertar. Já fiquei nervosa aí. Eu adoro botões. Grande parte da minha birra com tablets e smartphones vem justamente do fato de eles trazerem em si a extinção dos botões. Eu gosto de apertar. A tecla de espaço é uma das minhas preferidas. Quando a mocinha do atendimento do banco que me deu um novo i-token disse que as senhas apareceriam ininterruptamente no visor, mudando a cada sessenta segundos, senti meu coração apertado, todo meu corpo tomado.

Mas panicar mesmo eu paniquei depois que comprei mais um livro num site e deixei o i-token sobre a mesa, e quando percebi o desespero que aquele aparelhinho ligado para sempre me causava. Ter o novo i-token do banco é como usar um relógio de ponteiros que não te deixa esquecer o tempo nem por um segundo. É um horror.

Eu não telefonei pra homeopata pra falar da ansiedade provocada pelo dispositivo do banco, com medo que ela me receitasse um floral, porque está muito claro pra mim que nesse momento preciso de um bom ansiolítico, de preferência um desses bem controlados. Concluí também que um cartão de crédito poderia resolver a questão do pagamento via internet, evitando com que eu tivesse de fazer docs e pagamentos online, ou seja, reduzindo significativamente o acesso ao i-token. Mas mesmo dentro da bolsa, não consigo esquecê-lo, e só de pensar que ele está ali gerando números que nunca serão usados ou lidos, já me dá uma exaustão enorme.  

Antes que a sexta gripe começasse ou que eu enlouquecesse e comprasse um livro de cada autor da FLIP (ok, comprei 3), corri uma maratona, tomei Zyrtec atrás de Zyrtec e, finalmente, fui demitida por invalidez.

quarta-feira, junho 20, 2012

Tudo que é imaginário tem, existe, é. 

Estamira, no documentário Estamira, de Marcos Prado.





(Essa é uma das muitas frases que, pra mim, poderiam ter saído da Remington de Clarice Lispector.)

domingo, junho 17, 2012

Propriedade

Uma hora mais tarde Julio recebe seu pagamento: três notas de dez mil pesos com as quais tinha pensado em se virar durante as duas semanas seguintes. Em vez de ir para seu apartamento ele faz sinal para um taxi e pede ao motorista que dirija trinta mil pesos. Repete, explica e até dá o dinheiro adiantado para o taxista: siga em qualquer direção, rode em círculos, em diagonais, tanto faz, eu desço do seu taxi quando bater nos trinta mil pesos.

Alejandro ZAMBRA. Bonsai. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Na minha mesa agora habitam, temporariamente, quatro livros que não são meus. Três deles são de alguém que tem manias semelhantes às minhas: nome e data na folha de rosto, marcadores de páginas coloridos, riscos a lápis marcando trechos. O outro tem carimbos de biblioteca, etiquetas laterais de biblioteca, numeração de biblioteca, cheiro de biblioteca e aquela quase virgindade das páginas. Ninguém ousou quebrar a lombada, e me angustia pensar se devo ou não fazê-lo.

Imagino a bronca. O livro da biblioteca tem de ser devolvido exatamente como encontrado dois dias antes. Três dias antes. Pretendo pagar uma multa de R$ 1,50 só pra não ter que ir à biblioteca no dia que não tenho aula na Universidade, segunda-feira, data de devolução do livro. Se for preciso, pago mais R$ 5,00 por ter quebrado a lombada.

Eu quebro lombadas. Imagine ler a biografia da Clarice Lispector edição de bolso sem quebrar a lombada. Seria uma prisão.

Não gosto de coisas que não são minhas. Sou controladora, é por isso que gosto de ler. Gosto de poder rabiscar as páginas. De deixar aquilo meu. De ensaiar garranchos, de ver os sublinhados que dizem que estive ali. Acho que daria pra escrever uma autobiografia colando frases sublinhadas de livros. Talvez à primeira vista não fizesse sentido. Mas pense só.

Ou uma autobiografia feita de assinaturas em livros de presença de exposições.

Joyce Pascowitch foi ao MAM dia sete de abril de dois mil e doze. 

Eu ainda compro lápis, mas fico pensando quem mais. Gosto de cheiro de lápis. Gosto de tudo onde se possa ver a passagem do tempo. É clichê, mas dá pra fazer uma lista: folhas de papel, folhas de plantas, canetas, paredes brancas, sapatos de salto, sapatos sem salto, livros, pele, cabelos.

Gosto de morder os pescoços dos homens que passam pelos meus afetos. São as marcas. Sou controladora, é por isso que gosto de ficar sozinha. E de ler. E de ter as minhas próprias coisas, e de poder, num chilique que nunca acontece, rasgar as páginas, se eu quiser. Ou quebrar lombadas, todas minhas, partidas ao meio, fazendo com que eventualmente a encadernação se danifique, as páginas se soltem, as palavras se percam.  

Quatro livros emprestados, angústia de não poder possuí-los. Depois de amanhã devolvo tudo. Até lá, desenho nas paredes.

quinta-feira, junho 07, 2012

Bartleby


-       Quanto tempo durava a conversa ao telefone?
-       Uns quarenta minutos.
-       E assim foi durante cinco anos?
-       Assim foi durante cinco anos.
-       Você nunca viu João pessoalmente?
-       Não, nunca vi.
-       O entregador chegou a ver ele?
-       Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.
-       Mas isso é piração, Garrincha.
-       Isso é João Gilberto, meu senhor.


Marc Fisher, em diálogo com Garrincha, o cozinheiro que durante anos preparou o steak ao sal grosso que João Gilberto encomendava (Ho-ba-la-lá – À procura de João Gilberto. Companhia das Letras, 2011).

sexta-feira, junho 01, 2012

Por uma "esquerda" menos ensebada

(Agradecimento especial à Eugenia, sempre cheirosa e penteada)


É possível que a terminologia usada neste texto esteja defasada, e que o grupo de pessoas aqui referido já tenha merecido um termo cunhado neste ano de 2012. Para todos os efeitos, creio que tal grupo será identificado facilmente pelo leitor, pois que tal figura está totalmente disseminada no cenário urbano carioca. Vale ainda acrescentar que não pretendo que este “estudo” seja tomado como julgamento, aprovação e/ou reprovação das gentes citadas, e que deve ser lido como uma observação bem parcial desta que vos digita.

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Faz pouco o carioca adotou prática já implantada há dezenas de anos em países avançados, e desde então uma série de discussões e debates toma as redes sociais em prol do uso da bicicleta, da construção de ciclovias, de respeito ao ciclista etc. Uma horda de ciclistas sem via, por sua vez, adotou o pensamento do motorista que estaciona na calçada por falta de vagas. Seguindo essa lógica, os ciclistas se aventuram no meio das pistas de rodagem, ultrapassando carros e motos como se não houvesse amanhã, numa atitude desafiadora ao sistema, e dispensam até mesmo o capacete. Em poucos meses uma verdadeira militância surgiu na cidade, e um ódio a veículos automotivos começa a ser cultivado entre os usuários deste transporte “alternativo”. As aspas são puramente pessoais. Transporte alternativo, para mim, é helicóptero.

O que me interessa nessa deliberação acerca do hábito da bicicleta, porém, é tanto mais um fator que, creio, não seria exagero afirmar como estético, e que assola o grupo sobre o qual pretendo refletir.

A minha geração os denominou “sujinhos”. Um sujinho, basicamente, era um sujeito de barba rala e bigode, mais charmoso que bonito, mais inteligente que bonito, mais divertido que bonito, mais intelectual que bonito, enfim, mais coração que cara, e tudo isso ficava evidente no modo de vestir, de falar, de gostar. Frequentemente um “sujinho” está ligado a alguma atividade artística, e circula por shows, teatros, cinemas, museus, galerias, eventos de poesia, mais recentemente passeia por sambas em pracinhas com coreto etc. Um “sujinho” tem engajamento político, discos de vinil e usa seu perfil na rede para divulgar notícias, reportagens e matérias sérias sobre temas relevantes. Ele não é umbiguista, jamais posta fotos do cachorro e preserva sua privacidade. Check-in é algo que envolve uma companhia aérea, um aeroporto e milhas. Um “sujinho”, ora, é mesmo um pouco sujinho, ou ao menos tem aquela aparência de “fim do dia”, momento em que deve estar se encaminhando pra casa, pra tomar um banho antes de jantar, trepar ou dormir.

Habitualmente, também, um “sujinho” é “contra o sistema”, e portanto, em 2012, nada mais natural que um “sujinho” se converta em ciclista. O que, por conseqüência, o torna oficialmente sujo.

O “sujinho” com sua bicicleta está potencialmente mais suado, oleoso e com cheiro vencido. Faça o exercício: vá à abertura de uma exposição, a um festival de teatro, a uma mostra de filmes e perceba como, à mera aproximação de um “sujinho” te dá um ligeiro tremelique de asco, e seus passos automaticamente andam pra trás, numa tentativa de se afastar desse cara para quem a limpeza ficou em segundo plano. Minhas últimas incursões em ambientes dominados por “sujinhos” foram infelizes, a ponto mesmo de adotar uma postura de recusa, e uma resolução de somente me aventurar de novo em tais domínios sob forte gripe e congestão, o que evitará o mau cheiro (no meu nariz, obviamente).

Quando o anjo torto incitou Drummond a “ser gauche na vida”, ele não fez alusões à falta de aprumo. Ele não estabeleceu parâmetros pelos quais ficava o sujeito isento do ritual de sabonete, xampu, condicionador, desodorante. Também não fez odes ao suor, a peles oleosas, a cabelos ensebados. A sujeira não devia ser intrínseca a essa tribo, mas acabou sendo incorporada por ela, bem antes das bicicletas, que vêm agora sublinhar o caráter inhaca da revolução que, com sorte, será televisionada, evitando portanto o meu contato pessoal e a troca de fluidos com esses militantes.

O que eu não saberia dizer é quando essa “tribo” contestou os valores de higiene que eu julgava até então em voga. É um mistério para mim.

Uma das poucas heranças que temos do nosso “bom selvagem” é o hábito de tomar banho todo dia. Seja você árcade, romântico ou neoconcreto, ao ser indagado sobre o que temos do que ainda é considerada a “origem” do homem brasileiro, citará o banho, ainda que isso não nos aproxime de nossas raízes nacionais. Nem mesmo debaixo do chuveiro os nossos pensamentos se conectam à figura do índio.

Natural seria, portanto, que o banho fosse adotado irrestritamente por todos os que ainda sejam imbuídos de alguma ideologia (e nostalgia), pois que a defesa do legado daqueles que foram massacrados pelo sistema seria a arma-chave para esse pensamento do “sujinho” que quer, justamente, derrubar o mesmo sistema.

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Como disse acima, este não é um manifesto, é apenas uma sugestão em prol da socialização (no sentido de encontros, bate-papo, flertes etc. entre tribos que um dia já foram igualmente cheirosas). Mas se você está de acordo, por favor, assine embaixo.

quarta-feira, maio 16, 2012

Lanterna dos afogados - capítulo VI


Às vésperas de completar um ano de natação, percebi que, en fait, fazia quase dois meses que minha rotina aquática consistia em ir a uma aula e faltar a três: a lógica de uma respiração a cada três braçadas, adotada no estilo crawl, rompeu as fronteiras das raias e instaurou-se nas manhãs de segunda e quarta. Quando me dei conta disso, sentei, ponderei, calculei: meu maiô carcomido precisava ser descartado, o plano trimestral renovado, a fé no esporte restabelecida. Durante duas semanas (nas quais, obviamente, dormi mais do que nadei) só pensava no que fazer, no que poderia substituir tal atividade, no que poderia me fazer feliz, em como seria minha vida sem essas manhãs molhadas, e percebi que, qual um poema de Manuel Bandeira, a natação varria tudo: eu roia unhas, chacoalhava os pés, encharcava o cabelo de cremes, aproveitando os dias sem cloro enquanto tentava restaurar os cachos castigados pela química, e a minha vida ficava cada vez mais cheia de água.

Seguindo os mesmos impulsos que me fizeram mergulhar no mundo natatício pela primeira vez, e tendo como norte uma existência sem contraturas musculares, sem hérnia de disco, quiçá sem dores nos joanetes, o que saboreio desde que toda a saga começou, joguei o velho maiô no lixo e adquiri uma lycra Speedo, pois que me sinto perfeitamente apta a ostentar, não mais apenas um figurino, mas um estilo de vida. E cruzei três cheques. E então, como numa novela onde a mocinha só é feliz no último capítulo, eis que três novos personagens cruzaram meu caminho. Na verdade, cinco. São eles:

1)     O maiô Speedo. O maiô Speedo foi comprado em meio a uma conversa telefônica com alguém por quem talvez eu esteja perdidamente apaixonada, o que já confundiria toda e qualquer decisão. Além disso, o pós compra do maiô Speedo consistia numa enorme tigela de sopa de tomate e queijo gruyere em excelentes companhias que já me aguardavam no restaurante. Ou seja: não experimentei o maiô Speedo, e a ao chegar em casa cortei as etiquetas, lavei o maiô, pendurei pra secar. Quatro dias depois, às 6h15 da manhã, concluí que o maiô Speedo não cabia em mim. Eu já estava de pé, rosto lavado, café da manhã tomado. Lá fora ainda estava escuro, lá dentro eu me atochava num maiô que era um número a menos. E assim fui nadar, socada em elastano, o breu no mundo.
2)     O breu no mundo. É maio, ficou frio, é antes das sete da manhã. Qualquer pessoa com amor próprio pensaria “what the fuck”.
3)     “What the fuck”, diz a voz interna que se faz cada vez mais nítida toda vez que o novo professor de natação conversa, e ele conversa muito, e ninguém me avisou que haveria uma troca de instrutores, o que teria catapultado a minha (agora percebo) teimosia em permanecer nesse (agora entendo) suplício. O novo professor de natação usa chinelo crocs, sunga, camiseta e uma touca pendurada na cintura. Ele depila as pernas. Ele teoriza sobre o fato de que não é a natação que deixa as pessoas gripadas, é esse entrar e sair da água. Ele filosofa sobre uma pixação que por anos habitou um muro na Gávea – “pra que o medo se o futuro é a morte” – afinal, “a única certeza que a gente tem é que vai morrer”. Breu no mundo. Maiô apertado. 6h40 da manhã.
4)     Do outro lado da raia vem nadando a todo vapor, depois de uma “virada olímpica” na margem, uma mulher que logo julgo ser exibicionista, insegura, egocêntrica e carente. Ela nada golfinho como se treinasse pras Olimpíadas de Londres, eu me encolho em meu humilde crawl, mas é batata: a mão esquerda dela me estapeia. Choro dentro dos óculos de natação, dou meia volta ao chegar na borda oposta pra evitar o professor, penso em fazer xixi na água só de raiva da mulher nadando golfinho.
5)     No vestiário, depois da aula, o dia já está claro, já são 7h30, luto pra tirar o maiô, penso “what the fuck”, penso em cortar as alças do meu Speedo preto, penso em sustar os cheques, em comprar uma bicicleta ergométrica, em entrar na yoga, em fazer um curso de meditação, em comprar 10 latas de sopa Campbells, e, quando estou saindo, passo pela senhora que nada antes de mim e que agora seca seus cabelos, e que diz “você é muito rápida, já nadou, já saiu e eu aqui ainda secando os cabelos”. Não seria um problema, mas ela repete a mesma frase, duas vezes por semana. E ainda que já passe das 7, e ainda que eu nem respondesse, mas assumi meu papel e digo “mas eu não tomei banho”, ao que ela responde “ah, vou contar pra todo mundo!”, ao que saio correndo, maiô no saco, minha pele marcada pelo elástico do modelito PP (embora fosse M) que não me veste, meu desespero, minha sede, meu cansaço.

Uma das minhas músicas preferidas dos últimos meses, e que é a única que conheço do Grateful Dead, toca em looping na minha cabeça, e já a culpo pela minha permanência estendida na natação: and it’s just a box of rain. Me apeguei a essa máxima. É só uma caixa de chuva, que mal pode fazer? Mas no fundo eu sei que é muito mais que isso. Hoje, voltando pra casa, confesso: me deu saudade do Carlão.