terça-feira, julho 27, 2010

Meus suicídios (vol. 3)

VIII.

Eu me suicido toda vez que tento entrar numa agência do Banco Itaú porque nunca consigo passar da porta giratória, e nem mesmo de quaisquer outras portas que existam pelo caminho. É dar um passo à frente que a porta giratória trava, eu esvazio a bolsa sob olhares que me acusam de crimes gravíssimos e nunca cabe no recipiente toda a quantidade de chaves, os dois telefones, as duas câmeras fotográficas, os dois reais separados pro flanelinha, tanto plural. Suo frio até chegar ao caixa e ali, frente ao sorriso benévolo que me absolve, digo ao gerente que se dane, não quero mais. Encerro a conta, aperto a bolsa mesmo que o saldo seja negativo e numa correria dou de cara no vidro, espatifada me enterro no chão e pronto, fico morta pra não encarar o segurança que arrasta meu cadáver pra fora.

IX.

Eu me suicido toda vez que percebo que já te esqueci, porque às vezes o seu cheiro podre de decomposição me invade e eu percebo que já não sonho mais, já não penso mais, já não faço esforços para descomplicar as coisas que complicamos, já não relativizo, não perco mais o sono, não procuro entender ou ponderar ou adivinhar ou escrever ou inventar sozinha qualquer coisa que permita ainda conjugar “nós”, e me vejo frente a tanto silêncio, escassez de gargalhadas, tanta maturidade e vazio, e então te puxo pra perto de novo só pra me suicidar, porque sinto saudade de construir castelos, refúgios, abrigos, abraços, tanto plural. Eu me suicido toda vez que te esqueço porque não sei o que fazer com o que vem depois e com todo o espaço ao redor, esvazio vidros de medicamentos e agonizo sozinha, a baba escorrendo, e apodreço esquecida, meus restos de carne expostos sendo lentamente devorados por insetos que nunca param de aparecer.

X.

Eu me suicido toda vez que resolvo ler uma biografia, porque putz grila!, haja gente pra não se suicidar no mundo.

domingo, julho 25, 2010

"(...) Você diz:
- Você inventou para mim. Não tenho nada a ver com a história que você teve comigo.
- Você disse o contrário, uma vez, no início.
- Digo qualquer coisa, e depois esqueço. Você sabe - você sorri -, mas estou sempre perto de você no desespero que lhe causo."

Marguerite Duras in Emily L.

sexta-feira, julho 16, 2010

O dia em que engasguei cantando um refrão do Bon Jovi

Disciplinei meus pensamentos pra que eles viessem à tona naquela terça-feira. Primeiro porque ia chover, e angústia combina mais com céu desabotoado que com sol. E depois porque eu sabia que tinha um percurso longo a ser feito de carro, onde há anos dedico-me a cantar e a debater assuntos: em voz alta, com fervor, sozinha.

Preparei-me pra ida ser apenas o ensaio da volta, afinal eu dirigia-me a compromissos profissionais, onde não podia chegar destrambelhada, o que ocorreria caso alguma canção me pusesse a chorar. Evitei o caminho da praia e escolhi uma lista de músicas segura onde a cantoria fosse apenas digna de final feliz, e concentrei-me nas resoluções (agora) tolas: que iogurte também é leite, e portanto deve ser cortado; que gostaria de ter um par de cada cor do modelo dos meus óculos novos; que preciso investir mais que R$4,00 num xampu. E que preciso, oras, decidir um time de futebol pra chamar de meu.

Foi aí que começou o drama. Por sorte eu já estava na recepção, concentrando-me agora nas coisas sérias do trabalho, crachá na mão, atenta às placas das salas, ufa, é aqui. Interrompi qualquer divagação, fiz cara de simpática e fingi que entendia tudo de novela.

Depois de mais de seis horas de encontros eu estava de volta ao carro, confusa porque a praia da Macumba parecia a maior extensão de areia do planeta, enquanto que a orla da praia da Reserva teimava em não acabar, indiferente às minhas investidas no acelerador. O dilema, então se apoderou de mim, e da seleção musical que agora acontecia em shuffle, descontrolada. Me vi frente às seguintes considerações: não era possível a essa idade tornar-me flamenguista, que pra isso precisava ter vocação. E Vasco, bem, era impossível ser vascaína, por todas as razões óbvias que envolvem um ex-namorado e um time que não sai da condição de vice. Verdade seja dita que meu espírito competitivo se esqueceu em algum lugar distante, mas minha tolerância para piadas futebolísticas é baixíssima.

E mais essa. Torcer pra um time de futebol significa que você tem que interagir e enfrentar as risadas e coisas do tipo? Faz parte do jogo?

Pensei no Botafogo, que adotei em algum momento da vida, e guardei por alguns anos uma camisa no armário. Foi a segunda das camisas esportivas que ostentei, sendo a primeira a que levava o número do Romário e que foi exaustivamente usada na Copa de 94, e a terceira uma camisa de remo do Vasco usada nas aulas de surfe. Ok, pano rápido, pula parágrafo.

Daí que só sobra o Fluminense, que muito me seduz, porque acho o conceito todo do time super vintage. Treinos em Laranjeiras cercados por palmeiras, as cores da camisa. Mas será que são argumentos suficientes pra sustentar uma escolha dessa importância? Começo a achar que não se pode ser torcedor impunemente, da mesma forma que não é possível, do dia pra noite, querer que a Mocidade de Padre Miguel ganhe o Carnaval. São escolhas que envolvem convicções, critérios, afinidades.

Estou sendo dramática?

Chego à praia da Barra desordenada: aflição me consome, cheia de indecisões, diante dum impasse. Como é que eu posso resolver o que fazer com as minhas dores de amor se não consigo nem resolver que camisa vestir? Como pode ser possível escolher profissão se não consigo decidir em que lado da arquibancada quero estar?

É assim, diante desse retrato que agora parece tão claro, que entro no túnel em direção a São Conrado e o ipod explode em guitarras, e mesmo que a música não tivesse nada a ver com a questão da torcida (e realmente não tinha), tudo convergia pra um desabafo em choro. Numa tentativa de retardar as lágrimas, enchi os pulmões e comecei a cantar o refrão: ooooh we're half way there, ooooh living on a prayer. Take my hand and we'll make it, I swear... Mas em vez disso engasguei, e num acesso de tosse achei que morreria sufocada sem assumir uma posição, umazinha que fosse, e num nervosismo crescente estendi o engasgo até a porta de casa, sem mais saber se a música era a mesma ou se uma sinfonia de Beethoven tentava em vão me apaziguar.

Meus olhos lacrimejantes e esmagados em meio à tosse avassaladora clamavam por um tapa nas costas. Inundada de água e ar fresco, e respaldada pela futilidade das minhas atividades, achei que poderia usar como único argumento a estética, e estava prestes a anunciar aos quatro ventos que era a mais nova integrante da torcida fluminense quando o Mauro se meteu na conversa e contou uma história tristíssima sobre o time. A Ritinha por sua vez, mandou um email um pouco revoltado sobre o assunto, apresentando queixas consistentes pelas quais eu deveria descartar os argumentos do Mauro.

No dia em que engasguei cantando um refrão do Bon Jovi eu xinguei esses dois por terem tornado a minha escolha tão mais complexa do que parecia, morri de saudades da Copa do Mundo e decretei: sou América desde criancinha.

Anomalia

(Bilhete a M., desses para serem encontrados sobre a pia do banheiro pela manhã.)

Já percebeu que toda vez que você me deixa em casa a gente desata a conversar e fica mais meia hora (no mínimo) a falar? Carro embicado na garagem, o porteiro da noite a roncar no sofá de entrada, música escolhida por mim de pano de fundo.

Deve ser que a gente não entende direito esse lance de despedidas, ou que a gente nunca aprendeu a dizer "tchau".

domingo, julho 11, 2010

Vestígios

As gotas de suor que marcavam o chão de linóleo da sala de dança, aqueles fios de cabelo que grudavam na nuca em questão de minutos, pensar que o mundo estava de cabeça pra baixo, rodar pela diagonal e se apoiar na barra ao final de uma série de piques, bater palmas ofegantes, pegar a blusa que ficou empapada esquecida a um canto da sala, gostar de gatorade às 21h15 de segunda-feira no verão: uma saudade avassaladora de chegar em casa depois da aula de ballet, deitar no chão com as pernas pra cima, entrar no banho e cantar Alanis Morissette embaixo do chuveiro.

Saudade imensa de 14 graus em outubro, vestido novo com meia grossa, trenchcoat emprestado, inspirar e expirar de olhos fechados mais uma vez antes de abrir a porta antiga do prédio, os ecos do salto atravessando a Rue de Mezières até qualquer café na esquina, uma mesa apertada que encoraja nosso encontro, sentados na vitrine sem querer saber das ruas, o caminho de volta, beijos urgentes imprensados na parede, mistura de suspiros, subir os 6 andares de uma escada atapetada refazendo mentalmente todo o percurso que me fez cair naqueles braços: cair naqueles braços.

Ler pela primeira vez as linhas 12, 13 e 14 da página 31 de um determinado livro e ter uma retumbante certeza de que é possível guardar deslumbramentos em prateleiras. Saudade doída de escutar o Bolero de Ravel pela primeira vez e me sentir suspensa.

Trança no cabelo, frio de julho na beira do mar, fechar o zíper nas costas do macacão e sentir gelar toda a espinha quando as primeiras espumas de onda batem no pé. Remar com os braços aflitos, achar o equilíbrio e deslizar suavemente, guardar essa saudade de entender o fim da linha e se jogar pra trás, espatifar-me n’água, buscar a areia, deitar sobre a prancha e ter uma certeza retumbante de que presente bom é fitar as nuvens sem se importar com o tempo.

Perceber-se apaixonada e tentar conter aquele sorriso bobo que não respeita horários, caramba!, que saudade que dá de gostar mais de tudo, de demorar a dormir, de ter uma fome de banquetes, de ter um abraço esperando, de poder beijar sem parar.

Uma saudade que me atravessa, impiedosa, de saltar do carro para abrir o portão, pisar descalça na grama e avistar os cães correndo em minha direção. De ver as marcas das patas imundas sobre minha camiseta tão branca. De estender toalha de pique-nique, folhear o jornal, lembrar do repelente depois de dois ou três mosquitos, adormecer escutando as vozes dos amigos, contar flores nas copas das árvores. Saudade tão forte de correr e pular pra dentro da piscina, de se apoiar em bóias e fica à deriva, da sopa em frente à TV, dos ruídos de lenha queimando na lareira, do ranger da rede. Essa saudade que me alucina: do cobertor que provocava espirros, daquela casa, de nossos dentes manchados de vinho, de dormir só no dia seguinte, daquela parte da estrada onde as árvores, pareciam, nunca iam morrer.

domingo, julho 04, 2010

Blood on the dancefloor

"because my love for you would break my heart in two, if you should fall into my arms and tremble like a flower." David Bowie in Let's Dance


Do sofá tenho a melhor vista da festa: ali no canto pode ser o começo de uma grande paixão, ali na janela pode ser só enfisema, à direita prevejo roncos e sonhos barulhentos, à esquerda, indiscutível: vômitos no banheiro antes de dormir, nenhum engov vai melhorar. À minha frente se abre o espaço sob o decreto do dj e os olhares imperativos dos amigos que exigem minha presença na pista de dança. Desfilo meu mini vestido até o centro das atenções, encontro lugar seguro para os óculos, exibo meus melhores passos de dança e num rompante eufórico começo a pular alucinadamente, quase sacudo a cabeça como num show de rock. Oito saltos depois alguma coisa falha entre L5 e S1, apóio a mão nas costas e me rastejo até a porta de saída.


Dia seguinte, na cama, uma bolsa de água quente como aliada e dois vidros de remédios esvaziados: não sei se salvação ou tentativa de suicídio.