sexta-feira, agosto 11, 2017

Horto

Hoje comecei a ler um livro
que é a correspondência
entre dois poetas.
Dela, gosto muito,
dele, não sei nada.
Sei que ela escreveu seus versos
enquanto morou no apartamento
dele,
por um tempo.
Como eu fiz com M.,
há dois anos,
mas em prosa.

Você achou que aquele livro,
o meu primeiro,
era sobre o vizinho.
Eu ri, embriagada,
negando com a cabeça,
que tola.
É que o vizinho
não merecia
e nem merece, ainda,
e ainda mais assim,
na estreia,
e nem merecerá.
A única coisa
que deu certo com ele
foi uma planta.
E desconfio, aliás
que tenha dado certo
porque não depende dele,
e ficou só minha,
aqui,
nesse apartamento que planejo abandonar
e que você queria
povoar de antúrios.

Hoje, também,
comprei antúrios.
Não por sua causa,
é claro,
mas porque
os antúrios de M.
estão incríveis.
E porque antúrios,
dizem,
podem viver muito bem
dentro de apartamentos.

“Eu queria ter te dado aquela planta
cujas folhas têm formato de coração”
e desenha no guardanapo de papel,
e do meio do coração sai uma flor
que mais parece uma espiga,
ou um pau,
depende.
Mas não digo.
“Nossa relação é muito erótica”,
você dizia.
Agora
é só muito triste,
ou muito nada.

Teria feito aquele livro,
o primeiro,
de outro jeito.
Sem o vizinho,
nunca o vizinho.
Teria quebrado tudo,
pelo menos,
pra tentar fazer versos,
pra tentar parecer
alguma outra coisa.

Hoje comecei a ler um livro
que é a correspondência
entre dois poetas.
E comprei um vaso de antúrios,
corações vermelhos que trouxe pra sala,
onde você queria
deixar alguma coisa
“que ficasse, sabe?”.
Eu lia sentada à esquerda, no sofá,
onde antes a sua fala,
arrematada por uma última olhada
ao redor,
quase um suspiro,
certamente uma despedida,
como se alguma coisa,
que não você,
pudesse ficar
e ser suficiente.

Você jamais saberá dos antúrios,
já não me escreve,
não me responde,
não nada.
O quinto livro 
talvez comece de alguma dessas entrelinhas,
ou de todas que,
assim como a casa,
penso em abandonar.
Não quero que tudo que eu escreva
tenha que se tornar alguma coisa.
sobretudo não quero
que tudo que eu escreva
seja sempre
endereçado.
Afinal,
você sabe melhor que eu,
como é fácil inventar o personagem,
que ficção é se apaixonar.

Se eu der enter entre uma palavra e outra já é poesia?




quarta-feira, agosto 09, 2017


Você não dorme porque eu construí um argumento que estremece a sua análise, a perfura, a atravessa. Nos custa dormir entre a dificuldade dos ossos também atravessados pelo incômodo das calcificações, calcificações que estão ali e que não precisamos que os exames certifiquem. Somos uma célula, estamos atentos a nós mesmos como a célula que somos. Podemos até diagnosticar a nós mesmos. Não precisamos de nenhuma tecnologia nem chegar até as câmeras médicas ultrassofisticadas , das quais você não, não quer saber e muito menos entender para garantir que temos calcificações nos ossos, que os ossos estão prejudicados e que doem as suas costas e os quadris estão quebrados pela artrose e, ainda que saibamos que poderíamos ter acesso a um quadril ou a um joelho de plástico de última geração, conectados microscopicamente por fios de metal quase ilegíveis, não o faremos, esperamos demais dos nossos ossos, apostamos neles, na história mais óssea que não deve ser interferida ou atravessada e cujo gasto é parte de um processo materialista que é necessário e, mais ainda, imperativo cursar.

Diamela Eltit, Jamais o fogo nunca (tradução: Julián Fuks)