domingo, agosto 28, 2011

You go to my head


Pedro Lago me propôs mais um desafio, e eu topei de novo: Algo sobre a crise de uma cineasta que ama um poeta e um trompetista ao mesmo tempo. (E eu li que era um, em vez de umA cineasta... e quanto ao poeta e ao trompetista ao mesmo tempo, bem, mais uma pequena subversão de minha parte.)
Voilà. 

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Um poema por dia. Como num programa de reabilitação. 240 páginas de sonetos, 3360 linhas de palavras escolhidas com esmero, candura, dicionário. Nunca um final. Poemas entreabertos, pontos que poderiam ser reticências.

Eu não pensava ser possível filmar literatura. As ruas já têm assunto demais. Nos becos, nos muros, nos prédios, os meus roteiros tantas vezes escritos com pedras portuguesas, britadeiras, spray ou areia da praia pro final feliz. Sempre gostei do final feliz. Eu era triste demais pra matar alguém, pra fazer alguém sofrer por amor, ainda que fosse ficção. Ainda que fosse prêmio pro ator principal, ainda que fossem as resenhas elogiando a pungência da câmera, ainda que fosse um plano-sequência arrebatador. Meu cinema era de risos. Meus filmes eram de prosas.

E então aquele cara gordo, sempre apressado, descendo do elevador no andar abaixo do meu. Aquele cara cujo nome agora estampava a capa da antologia que habitava sempre qualquer lugar que fosse à minha frente.  Um nome gordo também, quase parnasiano. Triste como o meu rosto. Com algumas rugas tomando os cantos dos olhos. Era difícil acreditar que aquele cara era o dono daquele nome e autor daqueles versos. E ainda.

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Sobre como o livro veio parar nas minhas mãos era bem simples. Inspecionando a prateleira de uma livraria, o nome. Gordo e parnasiano, o mesmo da etiqueta da caixa de correio na portaria do prédio. E pronto. No sofá de casa, na primeira página: música.

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Um trompete ardia toda vez que eu abria o livro. A música parecia vir justamente do apartamento do poeta gordo, em sopros que pareciam ser encaminhados diretamente à minha janela. O repertório era de grandes canções americanas, daquelas que todos os cantores pop já gravaram, daquelas que hoje em dia a gente escuta no elevador de grandes prédios comerciais, daquelas que nunca deixam de ser tão bonitas quando sopradas e sopradas e sopradas. Sem letra ou palavra, sem sussurros, sem bateria, baixo ou piano. Porra, cara, daquelas que Chet Baker tocava só pra gente pensar que podia furar o peito sem sangrar, sem morrer. Daquelas que eram melhores que gozo. Os poemas do poeta gordo eram melhores que gozo.

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Comecei a ficar obcecado com aquele livro e com todos os outros que consegui comprar do mesmo autor. Era um jorro. Os prazos se encurtando, os produtores telefonando, o roteiro que eu não escrevia. Aos poucos entendi que era a minha primeira grande crise criativa. Estava impotente, invadido por estrofes. Não queria mais escrever filmes, queria ler e ler e ler. E soprar minhas ideias no ouvido de alguém que pudesse fazer delas deslumbramentos do tamanho dos poemas do trompetista do andar de baixo.

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Espairecer, andar, ver os rostos nas ruas, inventar que aquela gente que passeia pelas feiras de antiguidade volta pra casa cheia de quinquilharia e felicidade. E então, ali, de novo. O nome gordo e parnasiano na capa de um disco de vinil. Eu nem sequer tinha vitrola. E lá fui, metrô adentro, aquela poeira na sacola. Era óbvio que se escutasse o disco ia ouvir poesia declamada. Era óbvio demais, mesmo. Um livro que toca música, um disco que toca o corpo. Eu estava me apaixonando pelo poeta gordo sem nem mesmo ter trocado com ele um bom dia burocrático no elevador. Eu precisava inventar um filme, não uma paixão gay pelo meu vizinho.

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Expliquei a algumas pessoas que precisava de férias, e tão logo me livre de telefonemas e cobranças, comecei, sozinho, o meu filme. Um poema por dia. Filmar as linhas. As letras tipográficas impressas, as minhas escassas anotações nas margens das páginas, minhas risíveis tentativas de transformar eu-lírico em personagem: nenhum nome poderia. 240 páginas de sonetos. E a minha câmera apontada pra cada conjunto. Parada, contemplativa, ligada o tempo suficiente que cada poema precisava pra ser lido. 3360 linhas, quase rimas. E aquela música subindo. E eu pensando como dar final feliz àquelas páginas quase estáticas, fotografias. Eu não estava mais fazendo cinema. Tinha dias, parecia, que eu fazia um filho.

Dormia e acordava com livro, disco e toda a confusão de melodias, acordes e arranjos que rasgavam páginas. Eu rasgava páginas. Diante do elevador, rasgava páginas e os meus dentes. No andar de baixo, diante da porta, rasgava mentalmente tudo o que me separava do poeta gordo, do tapete da minha sala ao concreto e às vigas do prédio. Se tudo desabasse, se eu conseguisse explicar.

O cara não me convidou pra entrar. 240 dias depois e o cara não me ofereceu nem um copo d’água. Justificou-se com pressa, pegou as caixas que entreguei com pressa, fechou a porta com pressa. Foi com pressa também que interfonou-me, depois de mais exatos 240 dias em que assistiu, um a um, seus poemas filmados. Olhei minhas malas no corredor, enfileiradas, quatro meses de tudo o que eu precisaria enquanto estivesse numa cidade do interior de São Paulo, filmando o meu primeiro longa-metragem cujo final era trágico. A história era quase banal, um caso típico de intoxicação. Um sujeito se apaixona por outro durante um verão de mil dezembros. A intervenção do poeta gordo, porém, parecia dar outro rumo a toda aquela bagagem.

Uma vez na portaria, diante daquele cara volumoso, seus cadernos e seu trompete armazenado numa caixa de couro, pensei se podia realmente amar aquele homem, se podia deixar de ser triste com aquele homem e suas 240 páginas de sonetos e seus standards e versões sopradas de Cole Porter. Eu podia, pensei. Eu podia.

terça-feira, agosto 23, 2011


Se todas as esquinas fossem habitadas por encontros, se todas as ressacas fossem como as do mar.

terça-feira, agosto 09, 2011

O dia em que Clarice chegou

Aquele pôster ficou enrolado dentro do tubo de papelão muito mais tempo do que devia, com outras duas impressões iguais de um mesmo show que eu teria ido duas vezes, e que teria servido a dois encontros, mas esse era o tipo de coisa que não acontecia por aqui. Ocorria faltar paredes, coração e, eventualmente, gente.

O dia em que Clarice chegou foi o mesmo em que o cachorro morreu pela primeira vez, e a partir desse dia toda a dúvida poderia recair sobre ela. Houve quem tentasse me convencer de que não convinha ter Clarice emoldurada na parede do quarto, que era carga demais, e não só literária. Houve quem tentasse me animar com o fato de que ela poderia me inspirar a investir na minha carreira de escritora. Houve quem achasse que eu era escritora.

Houve, também, quem sentasse ao meu lado na cama e ficasse pasmado admirando Clarice. Parecia haver certo repouso ali, uma calma de ver que há muito só praticava quem tinha intimidade com o mar. Era uma calma parecida com aquela que se têm na arrebentação, aquele momento em que ficamos à deriva com as pernas pendendo para os lados da prancha, pouco antes da manobra que nos coloca no centro de onde se deve estar para deslizar, tal qual uma canção meio cafona dos anos 90, o sol abraça o meu corpo, meu coração etc. A calma de quem brinca com as mãos na água salgada, vendo os dedos enrugados e a praia do melhor ângulo, de quem tem o nascer do sol como religião. A calma que se escuta de algumas vozes. Um altar.

Ter Clarice ali aliviou a perda diária do cachorro, que insistia em morrer ao menos uma vez num intervalo de 24 horas. Chegar em casa passou a ser um suplício cotidiano. No caminho eu tentava decidir o que fazer se o cachorro morresse de fato. Ele começava a perder os dentes, o que resultava conclusões bem mais simples. Eu fazia todo o barulho possível ao entrar: de chaves, dos pés, da bolsa, da prancha. Eu voltei a surfar no dia seguinte ao que Clarice chegou, porque eu precisava de um conforto improvável pra quando o cachorro realmente morresse, um desses confortos que te roubam os pensamentos por alguns minutos, algumas horas.

Eu o chacoalhava entre as almofadas, lágrimas a postos. Clarice parecia indiferente na parede, nem era possível atribuir-lhe a função de velar o sono do cãozinho. Ela escreveria toda uma obra caso se deparasse com mais um bicho morto, eu não saberia nem mesmo inventar uma oração. Eu comecei a inverter a lógica das coisas, e me empenhava em sentir a maior quantidade de felicidade possível toda vez que o cachorro não estava morto. Comecei a entender também que eu não precisava pegar todas as ondas que invariavelmente eu perdia por falta de fôlego, que a mim bastava aquele tempo silencioso de boiar sobre a prancha, olhando a areia, tentando assoviar.

Um mês depois do dia em que Clarice chegou eu decidi abrir a garrafa de Seacher’s Gin que veio junto com ela, porque eu estava exausta de todos os dias de sol e de checar de hora em hora os sinais vitais do cão. Adormeci diante de Clarice, depois de contemplação, três garrafinhas de água tônica e meio limão siciliano, e aquela placidez que eu sentia ao sentar na areia, depois de passar uma hora dentro do mar. Acordei no dia seguinte, o cachorro ao pé da cama me chamando pra brincar.