sexta-feira, outubro 26, 2012

Lanterna dos afogados - capítulo VII


Foi uma professora de dança que descobriu: escoliose. Havia uma escápula muito mais pontuda que a outra, um lado das costas mais alto. Uma perna era mais en dehors que a outra, um braço girava mais pra trás que o outro. Minha sequência de piqués era melhor pra um lado do que pro outro. Observando bem, meu olho direito é mais escuro que o esquerdo, e tenho mais cabelos brancos de um lado da cabeça, além de mais pintas e sardas numa das bochechas que na outra. O novo paradigma poderia até mesmo justificar escolhas afetivas, gosto musical, ideologia política. Posição pra dormir, certamente. Não demorou muito até a escoliose começar a dar problemas. 

Um belo dia, a fisioterapeuta decretou, e lá fui eu. E quando, meses atrás, decidi largar a natação, por tantos motivos mais que autoexplicativos, dei de cara, na seção de quadrinhos da Travessa, com um livro que era minha biografia. Um fisioterapeuta dá um ultimato a seu paciente, que passa a encarar o mundo das piscinas. Desavisado, ele começa a nadar sem óculos. Despreparado, atropela gente na água, morre de falta de ar e usa as bordas da piscina para sobreviver. 

É tudo tão lindo no livro, e tudo começava a se enferrujar em mim. Senti que eu estava encolhendo e percebi que, em todas as idas à praia (e foram muitas, porque tive férias e sol), me atirava no mar com muita urgência, e que até os banhos ficaram mais demorados. Morri de saudades da água sem nem saber que isso era possível. 

 Munida de um novo maiô, consciente de que minha pele e meus cabelos voltariam a ficar opacos, mas ao mesmo tempo esperançosa de que poderia pegar meu sobrinho no colo outra vez, voltei, e tudo parecia mais aprazível desta vez, a começar pelo horário da noite. Terrível engano. A natação noturna logo mostrou sua verdadeira face, e quando me dei conta a atividade tinha virado uma piscina cheia de gente conhecida. 

Começou por M., que um dia apareceu exclamando “Julieta!” e desde então R., o odioso professor de natação se achou no direito de socializar também, ainda mais depois que encontrei S. Eis que R., que por semanas me chamou de Juliana (e eu não podia argumentar, porque durante 2 meses eu pensei que ele se chamava Eduardo), perguntou se eu trabalhava com produção. Quando respondi que era editora (tem sido minha resposta preferida nos últimos tempos, e desconfio de que tenho respondido “editora” mesmo quando me dão bom dia), ele pareceu felicíssimo por poder dizer “então você deve conhecer Z., que é editora também, ela nada aqui!”. Z. é alguém da alta hierarquia de uma editora que fica a uma quadra da natação. Além dela, S., designer de jóias, M., diretor de fotografia, Fulano, do Bangalafumenga, e, pasmem, Paulão/Carlão (!) que trabalha com produção sei lá onde. De repente concluí que eu nadava nas águas mais fucking cool da cidade. 

Seria fácil se esse fosse o único defeito de R. (falar). 

Há uma ou duas semanas atrás, quando encontrei M. numa festinha, aproveitei pra desabafar e perguntei se ele não concordava que o R. era um bunda. Foi preciso argumentar: R. passou semanas me chamando pelo nome errado; começa a aula atrasado; é meio grosso; é preguiçoso e não tem criatividade; só me manda nadar crawl. Eu que achava que a natação já era uma definição de chatice, e que portanto não tinha como piorar, vi que tudo se supera: não dá pra ser feliz nadando uma coisa só a aula inteira. A escoliose, porém, pôs fim à discussão: quando ela aperta, o ombro cai pra frente e o elevador da escápula logo se contrai – “você precisa nadar costas”, disse a fisioterapeuta, e repeti a fórmula para R. A essa altura, M. já estava convencido: passei a nadar só costas e R. é um bunda.

Talvez R. não seja o único culpado pelo bode de nadar à noite. Falta a música da hidroginástica ao lado (nesse horário não tem mais aula), falta democracia na faixa etária dos alunos. De repente me vi nadando sempre em meio a 3 homens de barba, sem nenhum sexagenário pra me consolar, ou sem a iminência do xixi e dos brinquedinhos da turminha infantil. Pra piorar, quando estou nas séries finais (embora a aula não pareça ter começo, meio e fim, vide que nado a mesma modalidade o tempo todo), um sujeito começa a estender sobre a água uma capa de proteção. É muita solidão. Quando chego em casa posso imaginar o silêncio. Água não foi feita pra ficar parada. Talvez seja isso que R. não tenha entendido, e por isso se agarra ao marasmo da mesmice. É triste. 

Eu tinha decidido voltar a dançar. Mas nós, portadores de escoliose, não temos livre arbítrio. Tentei caminhada e corrida, e foi um desastre lombar. Comprei o passe para as bicis, que simplesmente desaparecem das baias nos fins de semana. Quando a homeopata me pesou na quarta-feira e calculou 4 quilos a mais, o desespero de encontrar outra atividade me fez entrar no site da Bodytech, mas logo recobrei o juízo (ou parte dele). Agora que eu já me acostumei a encontrar gente de touca, decidi: aumentei a natação para 4 vezes por semana. 




segunda-feira, outubro 01, 2012

Paraty para malogrados

Tenho uma pilha de trabalhos acadêmicos pra fazer, um amor pra conquistar e a Carol ainda me pede que eu atualize o blog. Então recorro a uma canastrice das piores, e deixo aqui as minhas anotações pós-Flip pela metade, além de uma dedicatória (for dummies) enquanto um novo texto não vem. (Gustavo, por favor, não me abandone.)



1. Da alimentação

Cada 3 quadradinhos de Passatempo recheado contem 140 calorias. Multiplique esse valor pelo equivalente a 2 pacotes e teremos o total de calorias ingeridas em substituição a 2 almoços que nunca chegaram. Comer em Paraty é um desafio peloqual eu havia passado em 2008, e de lá pra cá já era possível ter havido uma intervenção do SEBRAE, SESC ou SENAC (ou outro órgão afim) no sentido de estruturar a cidade para receber seus visitantes, especialmente durante o período em que ela fica mais cheia. Antes mesmo. A média de espera por um prato é de 1 hora e 15. As ameaças de cancelamento de pedidos chegam a 90% por refeição. Contei 3 panelas no restaurante tailandês onde um garçom tatuado cometeu de 5 a 7 grosserias em 3 horas (das quais, duas esperando: mesa, comida, Godot), e pedi uma banana de tira-gosto porque tive a certeza de que iria desmaiar de fome. Numa conversa com amigos livreiros, igualmente subnutridos como eu, pensamos que em tempos de Flip devia haver pequenas ilhas de alimentação rápida espalhadas pelo centro histórico, com barracas de temaki, uma versão express da Bruscheteria, sorvete Itália, crepes de palito etc. Para 2013, já planejo levar um personal cozinheiro, equipado de fogareiro, sopas e que tais. E o Itaú, em vez de distribuir aqueles bancos de papelão, pintando inutilmente a cidade de laranja, devia oferecer cachorro-quente Geneal. Fica a dica.

2. Das pedras

 O Itaú podia distribuir, também, fisioterapeutas. Eu comentava com a Rosana que Paraty era excludente, e que devia haver uma Para-Flip. Pouco depois, recebemos a notícia de que a chefe de nossa delegação quebrara o pé em acidente ocorrido dentro da tenda dos autores, quando Zambra dizia que Emilia tinha morrido e Julio não tinha morrido e o resto era literatura. Para além da escuridão e da falta de grades na tenda dos autores, as depressões e desnivelamentos das ruas são um suplício para qualquer flâneur, e se Flaubert fosse caiçara a história da literatura ocidental seria outra. Poucos sapatos resistem, muitas torções nos espreitam, não há coluna que se sustente, e na segunda-feira, passados alguns quilômetros de olhos mirando o chão, decreto: estou em frangalhos. Tivesse o Itaú distribuído bolas de pilates, massageadores de madeira que deslizam bolinhas pelas costas e relaxantes musculares, ou mesmo mucamos para carregar os mais escolióticos, nem precisaríamos de repouso no primeiro dia útil pós festa literária. 

3. Das dedicatórias

Ao começo da mesa de Laerte e Angeli, anunciaram que seriam distribuídas apenas 50 senhas para autógrafos após o debate. É um processo de seleção natural e cruel que exclui automaticamente os tantos sentados nas tendas dos autores e do telão. É cruel, também, quando o autor, em vez de fazer uma dedicatória, por mais boba e impessoal que seja, declara que só vai assinar seu livro. A caminho de um almoço, desolados sob o sol do meio-dia, carregando 2 livros com apenas duas assinaturas, pensamos em falsificar as mesmas. Inserir um “to Julieta”, seguido de um “love your glasses” ou algo do tipo, algo que desse testemunho do encontro pífio entre leitor e escritor. Era só ter a mesma caneta, copiar a letra, quem ia saber? Nós que gostamos de ficção temos um acordo tácito com a vida: estamos dispostos a ser manipulados e iludidos por toda espécie de manobras. Mas no caso da dedicatória, talvez a mentira perdesse mesmo o sentido. O sonho acabou, disse John. Acho que agora entendo...



A simpática dedicatória de Enrique Vila-Matas (juro).