terça-feira, março 31, 2015

A última baguete do Garcia & Rodrigues

1.      Éramos 3 pra uma canga numa tarde meio nublada porque Fernando não havia pagado a conta de luz. Numa Ipanema pré-Smartphone, passamos o dia na praia comendo os iogurtes que estragariam porque Fernando estava atraído pela ideia de viver um tempo sem eletricidade. Marcelo e eu pensávamos na parte prática e o que mais nos preocupava eram possíveis topadas – dedões, joelhos, testa – nos móveis, o sangue seco que ficaria no lençol, porque a luz da vela não seria suficiente para uma assepsia adequada. Camisas amassadas, um relógio antigo de parede que com o passar dos dias transformaria os gestos de Fernando em movimentos pendulares, ceras de vela que esculpiriam candelabros meio sinistros. Não conseguimos chegar a um final: nossa narrativa ia ficando cada vez mais suja e amarrotada, Fernando tornava-se um ser esquisito e anacrônico e a única saída possível para aquilo tudo era alguém, finalmente, regularizar a situação junto à Light. Anos depois Marcelo me telefonaria com uma proposta: “vamos ter um roteiro juntos?” Mas já tínhamos, só não estávamos muito seguros de nosso amor por ele.

2.     A melhor baguete do bairro era aquela da padaria que ficava na esquina, diziam, isso antes das obras que deixaram o cenário com cara de filme de zumbi. Quando anunciaram que o lugar viraria uma churrascaria houve até protesto; talvez se soubessem que de fato aquilo viraria mais uma Americanas tivesse havido quebra-quebra e vândalos. As filas daquela última tarde de funcionamento davam a impressão de que o negócio poderia se sustentar por meses só com aquelas vendas e o clima, contam, era de desolação e declarações de amor ao fatiador de frios, ao garçom e a quem mais trabalhasse no estabelecimento. Lucas ficou para o gran finale e saiu de lá carregando a última baguete do Garcia & Rodrigues. Passei dias fazendo a cabeça dele para vende-la no Mercado Livre. Mas o pão estava congelado aguardando uma ocasião especial para ser comido. Por alguma razão – possivelmente a mesma do Fernando – Lucas ficou sem energia uns dias, e ainda que tentasse desesperadamente se reconectar com a luz o impensável aconteceu: a burocracia deixou a última baguete do Garcia & Rodrigues intragável e passamos uma tarde no Talho comendo empadinhas para esquecer.

3.     “Teve torcida gritando quando a luz voltou”, diz aquela música da Legião Urbana, e teve mesmo. Lá em casa falta luz toda semana, parece que vivemos numa propriedade rural do começo do século XX. Ou parece que vivemos no Rio de Janeiro do século XXI, já não sei mais. “Você sabe que o fogão funciona mesmo quando acaba a luz, não é?”, dizia a última mensagem que consegui ler – porque o sinal de telefone também some nesses dias escuros – depois de dizer melancolicamente a uma amiga que eu estava jantando as duas gelatinas que estavam na geladeira. “Eu sei”, escrevi, “mas se com tudo funcionando já produzo refeições desastrosas, imagina assim”, mas o desabafo ficou pra sempre preso no whatsapp. Eu tinha acabado de chegar do balé e tinha lido uma matéria sobre o músculo psoas, que em certas culturas é considerado o “músculo da alma”. A minha, a julgar pelo psoas, não parecia que voltaria a funcionar antes que a conta de luz chegasse. Resolvi, portanto, fazer 3 ou 4 alongamentos pra ver se alguma coisa melhorava.

4.     Fiz uma lista mental de tudo o que se pode fazer em noites assim, e pensando no meu psoas avacalhado e em tudo o que isso acarreta, fui prática e excluí utopias como sexo, drogas ou gato mia: escrever uma carta para Isabel, tomar banho, iluminar o globo de espelhos com a lanterna até minha sala parecer uma discoteca em fim de festa, ouvir música até acabar a bateria do computador. A luz voltou depois que eu já estava havia uns 15 minutos abraçada à bola de pilates. Fiz um estrogonofe. Ficou uma bosta.