domingo, janeiro 22, 2017

Dupla exposição

“Não fui eu quem viu aquela exposição do Edward Hopper no Grand Palais.” Começa assim o conto, e antes há um que começa com uma frase de um conto de Elizabeth Bishop, e só por isso eu já deveria desistir das tentativas de escrever o que gostaria. Tudo ecoará um plágio. É a segunda vez que leio esse livro. Ou terceira. Talvez mais. Mas por ora, digamos que seja a segunda.

É janeiro, a sensação térmica no Rio ultrapassa a tolerância e amanhã vou à praia com P. Quero ter algo para dizer além de “adorei seu livro”. Até porque já disse, acho. Na primeira vez em que li, na tela de um computador, acomodada numa cadeira desconfortável, num escritório de temperatura pouco variável, o que hoje, por mais que um tanto desbotada, é uma lembrança agradável daqueles dias. O cenário, agora, é o meu quarto, a luminária da mesa de cabeceira acesa, travesseiros, ar-condicionado. E a impressão a cada página é a de que já li isso antes. O que é verdade. Todavia agora o livro está impresso, a ordem dos contos já não é a mesma, a dedicatória de P. é generosa – “para Julia, que percorreu as páginas deste livro deixando suas marcas” – e amanhã vamos à praia.

Nunca imaginei. Não só a praia com P., mas tudo o que pareceu tão... mudado? esses dias, e que ao mesmo tempo imprimiu na pele essa sensação de repetição, como se no fundo os fatos fossem basicamente os mesmos, com as diferenças de endereço, temperatura e corte de cabelo nas aparências.

Por exemplo. Aquela festa. Estar diante de G. e de toda sua capacidade de me desestruturar por anos a fio, exceto pela constatação de que agora G. não me causa a menor das impressões. Parece apagado, ou fosco. Nem mesmo saberia descrever a camisa que ele usava naquela noite. Branca, por causa da passagem de ano? Azul, por ser sua cor preferida? Ou ele estava sem camisa? Quanto tempo precisa passar pras pessoas se tornarem invisíveis? Ou ele sempre foi assim? O mais perturbador, entretanto, é enxergar a invisibilidade e me perguntar se isso também é uma invenção minha, se esse tempo todo foi o que precisei para ficcionalizá-lo de outro jeito e construir esse personagem banal de réveillon, alguém que sou capaz de deixar falando sozinho com a desculpa de um drink ou uma dança. Ou com uma frase tão simples quanto: “Foi bom te ver.” O que é quase mentira.

Ou ainda: não sentir mais saudades de algumas pessoas, e entender isso ao ler pela segunda vez o livro de P., que sempre esteve diretamente associado àqueles meses de perdas gravíssimas. Estar diante de um dispositivo de memórias e de toda sua capacidade de me desestruturar, e perceber que agora essas reminiscências se depositaram em qualquer lugar seguro, ou ao menos distante o suficiente – naquela cadeira desconfortável, talvez. Faz pensar que não fui eu quem li o livro pela primeira vez, naquele escritório. Azul como as camisas de G., quando eu conseguia reparar nelas. E ao mesmo tempo: já li esse livro.

Então talvez os fatos sejam bastante distintos, e a repetição seja outra vez, finalmente, trocar de pele, e ter que lidar com as consequências dessa migração. Encaixotar certos acontecimentos, entender que talvez finalmente eu possa começar a escrevê-los, ainda que resulte em plágio. Porque a história é a mesma.


Amanhã vou à praia com P. O conto que fala de Hopper é meu preferido, vou dizer a ela. E aquele que começa na água, e que diz que “a violência é igual para todos, assim como as duchas, as cabines do vestiário onde nos trocamos, as poças mornas para lavar os pés antes de entrarmos na piscina, os armários em que guardamos as roupas”. 

O céu vai ficar rosa, como sempre fica nessa época, e vou fotografar o Dois Irmãos com raios de sol furando nuvens. A espuma do mar vai parecer um pouco mais brilhante nessa luz. Conversaremos sobre literatura, eu com receio de falar bobagens ou parecer idiota, P. com sua mansidão que se desfaz quando amarro um lenço na cabeça, ela que sofre de enxaqueca, o gesto que parece uma afronta. Nunca imaginei como seria bom me tornar amiga dela, como isso, de várias maneiras, validaria coisas tão grandiosas. 

Não saberei dizer nada mais edificante além de ter adorado seu livro, outra vez. Tentarei contar como foi diferente, mas talvez pareça bobo querer explicar tanto as leituras. O dia terminará com uma tapioca e um suco, e daremos boas risadas perguntando como César Aira resolveria as narrativas que não sabemos terminar.