quarta-feira, maio 30, 2007

Frente fria

Era inverno, sua mão gelava e tudo acontecia num tempo lento. Levantar era doído e pouco dava motivo. Atrasava-se com frequência numa tentativa de diminuir o tempo das coisas. Queria inverter relógios enquanto executava funções que lhe causavam bocejos. Sentia vontade de apagar desenhos em vez de fazê-los. Tinha pouca fome, os chocolates sobravam. Tudo envolvia um esforço hercúleo, desde entrar no banho a conversar com um amigo. A apatia alastrava-se: cabelos enroscados em elásticos, botões faltando na camisa e uma brancura melancólica. Tropeçava em pedras portuguesas e numa dessas caiu a poucos centímetros de uma poça. Sorte, pensou. E ficou por ali deitada, virou-se e teve certeza de que o céu continuava carregado de nuvens. Era terça-feira, ia chover de novo, mais uma noite sem dormir. Não chorava porque havia perdido uma paixão, mas porque não se permitia mais encontrar uma.

:: Anda-se triste, anda-se vão. Os Subterrâneos in Aos Nossos Amores

www.myspace.com/ossubterraneos

domingo, maio 27, 2007

A Godiva do Irajá

Uma calcinha média consome cerca de 0,13 m de tecido e 2 m de elástico frufru. O nome científico do elástico eu não sei, só sei que uma calcinha tanga consome 0,07 m de tecido e 2,3 m de elástico vulgarmente chamado de sanduíche. Essas foram as minhas bases de cálculo. Depois de contar todo o estoque de elásticos da casa (tarefa que durou uma semana porque havia muitos outros tipos além dos acima citados) pude efetivamente usar a fórmula e calculei que tínhamos matéria-prima para mais de 10 mil calcinhas. É lingerie que não acaba mais e descobri também que era planilha idem. O meu arquivo de excel tinha umas cinco abas: a primeira da contagem do estoque de elásticos, a segunda da contagem do estoque de aviamentos, a terceira da contagem do estoque de tecidos, a quarta da possível combinação de tecidos com elásticos de diversas cores, a quinta com os números finais e ainda uma sexta com os números de sobras de tecidos. Cada uma das abas do meu arquivo entitulado projeto calcinha continha um sem-número de cálculos e fórmulas e somas que por vezes achei que eu trabalhava num instituto de matemática e que fazer estilo requer tanto conhecimento de operações lógicas quanto de moda.

Essa foi a minha primeira grande tarefa, organizar toda a matéria-prima parada no estoque e nas fábricas e cruzar dados para que houvesse algum sentido estético nas roupas íntimas que formarão futuros kits-calcinha. E para a combinação das cores eu fui acumulando calcinhas antigas que me serviam de referência de estampas e mais um bocado de amostrinhas de elásticos grampeados num papel formando um arco-íris de elastano. Minha mesa virou uma pequena montanha de tangas e médias básicas e eu tenho quase certeza de que elas dão cria. O computador foi ficando soterrado e eu não achava sequer um lápis sob a pilha de peças íntimas.

Foi assim que ganhei a alcunha de Kátia Flávia e conquistei definitivamente meu espaço no escritório.

domingo, maio 20, 2007

o desabotoado céu

Era sábado e chovia forte e apenas com a segunda informação você já deduz que o caos instalou-se na aldeia. Pois bem. Tudo começou a dar errado antes: uma amiga furou o jantar, acordei sem querer às 7 da manhã, o cachorro comeu parte de um sapato verde, eu errei toda a concordância do passe composé e a cera de depilação acabou na metade da perna esquerda. O toró desabou no meio do caminho e eu quase desisti de ir ao show com medo do meu sapatinho cor de rosa se desmantelar na chuva, eu não podia me dar ao luxo de perder dois sapatos em menos de 24 horas, mas quando uma amiga disse que me buscava no Leblon eu achei que a sorte estava mudando e fui. Fato é que a chuva apertou, o show foi cancelado e a amiga resolveu se aventurar pelas ladeiras de Santa, eu procurei abrigo no shopping e lembrei que não se arranja carona impunemente. O shopping parecia festa de criança, sabe como é, sábado chuvoso e as mães levam os filhos ao teatro, uma barulheira, muitas babás e criancinhas correndo de lá pra cá e eu tive que me abrigar ainda mais, no cabeleireiro enquanto resolvia se voltava pra casa pra salvar meu sapatinho ou se usava o celular pra tentar salvar a minha noite. Achei que ambos estavam perdidos no exato momento em que a manicure sem querer derrubou o pote de água em cima do meu sapato. Quase chorei porque a contabilidade não estava a meu favor: dois sapatos agonizantes, metade de uma perna não-depilada, olheiras e uma lista quilométrica de exercícios de francês. Saí do shopping correndo com medo de que mais uma tragédia acontecesse e fui buscar abrigo na casa da vovó, por alguns segundos pensei em ser recebida por uma vó que me ofereceria uma mantinha, acenderia a lareira e me traria biscoitos saídos do forno junto com uma xícara de chá, ha-ha, a vida não é filme você não entendeu. Sentamos pra ver o jornal e de repente começou a novela das oito e aí sim é que coisa ficou preta, poucas vezes eu senti tanta vergonha pelos outros e quando numa cena em que o casal se encontrava no aeroporto tudo ficou em câmera lenta eu achei que era hora de ir pra casa dormir. E foi assim numa noite de tempestade em pleno sábado que eu tirei meu Santo Antonio do fundo do armário mas na última hora fiquei na dúvida se pedia pra ele um namorado ou pra São Pedro um solzinho e porque a sorte me fugia pedi pro meu pai um edredom e um travesseiro de pena de ganso e agora está resolvido: dia de chuva eu fico em casa.

quarta-feira, maio 09, 2007

Pra sinalizar o estar de cada coisa

Primeiro tentou o bar, que era o lugar mais certo. Procurou com olhos de águia e o garçom confirmou: ele não estava lá. Já estava tarde, continuou a busca no dia seguinte. Tentou a padaria poucos minutos depois da primeira fornada, na sobremesa do almoço comeu carolinas de creme e o sol já ia longe quando ela foi pra casa carregando um pacote de sonhos. Era domingo e o sol a levou às praias, muitas, caminhou sem pressa no limite onde a espuma vinha refrescar os pés, sorvete de manga e uma água de côco no quiosque de costume mas ele não havia sequer passado por ali. Na segunda-feira tentou a livraria e entre um café e outro folheou poemas e ensaios e fazia tempo que os livreiros não o viam entrar. Pela banca de jornal ele também não passava há dias. Então arriscou lugares improváveis. Na quarta-feira foi ao Planetário da cidade e ele não estava entre as constelações. Mais cedo estivera no museu do Segundo Reinado e não o encontrara. No dia seguinte ele também não estava no concerto do Teatro Municipal. No dia em que uma semana de busca se completaria ela foi ao Shopping e não cruzou com ele nas escadas rolantes e nem mais tarde na sala escura do cinema, e ela o saberia mesmo num blecaute. Os dias se passavam e ela não desistia. Foi à Feira de Antiguidades, às rodas de samba da Lapa, foi aos centros culturais do Centro Histórico, percorreu pequenas ruelas, subiu as ladeiras de Santa Teresa e quando chegou ao topo ele não estava. Freqüentou diversos cineclubes e até algumas reuniões de grupos de apoio, doou sangue regularmente, descobriu os sebos de Copacabana. Assistiu belas apresentações de choro, finalmente conheceu Parati e aprendeu a dançar, mas ele não estava na gafieira para aplaudir seu début. Começou a nadar, praticou meditação e foi a melhor aluna das aulas de culinária. Foi aos restaurantes da moda e também aos mais tradicionais bares da cidade. Matriculou-se nas aulas de artes e fez um curso de tradução simultânea, mas não o achava por lá. Trabalhou numa grande empresa, mudou-se para o Horto e cultivou um jardim que ele nunca ia ver. Fez curso de fotografia, aprendeu alemão e começou a estudar política internacional. Descobria tantas coisas novas e interessantes que aos poucos esquecia de procura-lo em todo canto. Foi só quando resolveu aprender esgrima que finalmente o encontrou. Era a primeira aula de ambos e num impulso que culminou em golpe desajeitado ela lhe enfiou a espada pela barriga. Ele caiu duro no chão e ela então reparou: ele não sangrava.

:: "Eu ando pelo mundo divertindo gente, chorando ao telefone" in Esquadros

sábado, maio 05, 2007

autobiografia vol. 2

Meu cabelo cai no outono e eu tenho uma tendência a gostar somente dos biscoitos que a minha avó faz pra mim, portanto não me ofereça aqueles que vêm em saquinhos fofos de lojas e cafés porque eu não vou comer. Deve ser preconceito e eu não ligo de ser politicamente incorreta com isso. Eu também não ligo muito de ficar um mês sem ir a manicure, acho um porre ficar sentada no salão e nunca entendi porque que eles nos dão revistas se as nossas mãos ficam ocupadas, acho uma sacanagem dessa gente. Também não ligo quando a minha mãe diz que eu devia tirar o esmalte com acetona em vez de ficar descascando aos poucos.

Eu não gosto de dividir chocolates e talvez isso seja péssimo, o fato é que chocolates se adequam perfeitamente à minha classe de coisas indivizíveis, assim como sorvete. As frases “vamos dividir um chocolate?!” ou “vamos rachar um sorvete?!” apenas não procedem, desconfio de gente que sugere esse tipo de coisa. Também desconfio de gente que é feliz demais o tempo todo e além de desconfiada esse tipo de comportamento me deixa bastante irritada. Pedestre me irrita também porque a maioria deles é suicida em potencial e muito egoísta: se querem morrer tudo bem, eu não me oponho, mas prefiro não fazer parte do ritual. Com o tempo eu descobri que o carro é o melhor lugar pra ouvir música e dependendo do trânsito eu consigo ouvir Edu e Bethânia do começo ao fim. Às vezes até quero que São Conrado esteja meio lento porque assim dá tempo de ouvir Transa todinho. Eu acho um saco essa gente que não usa seta, me pergunto se os carros deles têm seta. Não precisa fazer como eu, que às vezes uso seta dentro da garagem, mas acho que não custa nada sinalizar uma curva ou uma ultrapassagem e tal. Xingo essas pessoas mentalmente, às vezes verbalizo, mesmo que eles não ouçam. Os chamo de bocós, quase sempre. Eu canto no carro. E interpreto. Eu choro quase sempre que ouço Cazuza ou o Chet Baker cantando My Funny Valentine. Eu adoro dar carona às pessoas, mas às vezes eu preferiria se elas ficassem quietas e não atrapalhassem a música.

Eu gosto muito de música mas larguei o violão porque não sabia fazer pestana. E não, não é questão de treino, é uma questão de que algumas mãos conseguem, outras não, simples assim. Eu queria aprender piano, mas ficar sentada é ruim. Ficar sentada no cinema é péssimo e até hoje nenhuma cadeira é totalmente confortável. Cadeira de ônibus é a pior espécie. Tenho pavor de ônibus, estando dentro ou fora de um. Tenho medo de injeções e agulhas também e fiz um piercing uma vez em Camdem Town nem sei como. Eu tenho paixão por Londres. E adoro os ingleses, especialmente o Hugh Grant.

Eu amei todos os filmes que vi do Fellini e nunca entendi porque que a Mônica queria ver um filme do Godard. Eu fiquei muito irritada quando li O Estrangeiro e também O Livro dos Prazeres e adoraria ler uma conversa entre Mersault e Lóri, tento imaginar como seria. Eu imagino muitos diálogos e muitos encontros e na prática a coisa acontece exatamente toda ao contrário. Eu como salada depois da refeição e empilho pepinos no prato, aprendi a gostar de cebola mas aquelas coisas que parecem alpiste eu não engulo, literalmente. Eu engulo muito sapo e vou guardando e guardo também uma quantidade absurda de coisas que variam de agendas velhas e amareladas à medalha de um ex-namorado que eu nunca mais vi. Eu sou um pouco extremista em algumas coisas e acabo cortando relações radicalmente.

Eu sou muito encalhada, desde sempre. Eu prefiro os malucos/perturbados e quando começo a me interessar por alguém eu já sei um pouco o que esperar. Eu tenho conseguido não esperar nada e tenho tido muita preguiça disso então mudo logo de assunto quando algumas pessoas sem piedade soltam a frase “VOCÊ está solteira? Mas como???” e tenho vontade de mandar essa gente ir dividir chocolate com alguém, se não vai ajudar pelo menos não piora. Toda vez que conheço alguém novo eu penso se seria bacana ficar presa no elevador com essa pessoa e isso não tem a ver com qualquer fantasia sexual, apenas acho que existe gente com quem eu conversaria por horas enquanto outras eu preferiria jogar no poço.

Eu odeio casal que fica se beijando no cinema. E gente que fica tirando foto em show, apesar de fazer isso eventualmente. Câmera de celular é algo que não faz sentido na minha vida. Eu também nunca entendi porque que o Seu Jorge resolveu cantar com a Ana Carolina. E acho um saco esse troço de mp3, ipods e afins, eu adoro cds, encartes que vão amassando com o uso, caixas que vão se quebrando com os deslocamentos, eu gosto de ver a marca do tempo nas coisas. Mas acho desnecessário foto desbotar, cabelo ficar branco e discos vertebrais desidratarem. Eu acho o Grupo Corpo fenomenal e tenho inveja das bailarinas invertebradas que fazem parte da companhia. Eu morro de saudade de fazer aula de sapateado e também dos amigos que eu vejo pouco. Eu tento ver todo mundo sempre, mas tem dias que só o George Clooney me faria sair de casa.

Eu tenho gostado muito de estudar e anotar idéias e tenho mania de cadernos. Faço top 5 lists por causa do Rob de Alta Fidelidade e poucas vezes concluo porque acho que seria injustiça se o Acabou Chorare ficasse de fora dos melhores discos de música brasileira da década de 70 então institui que a quinta posição é mutante. Posso afirmar, porém, que a primeira posição vitalícia das músicas dos Beatles em que dá vontade morar é A Day in The Life. Sim, eu creio que algumas canções são habitáveis.

Eu sou assim. E se você me acha completamente dispensável e insípida e quiser evitar riscos, use as escadas.