terça-feira, agosto 09, 2011

O dia em que Clarice chegou

Aquele pôster ficou enrolado dentro do tubo de papelão muito mais tempo do que devia, com outras duas impressões iguais de um mesmo show que eu teria ido duas vezes, e que teria servido a dois encontros, mas esse era o tipo de coisa que não acontecia por aqui. Ocorria faltar paredes, coração e, eventualmente, gente.

O dia em que Clarice chegou foi o mesmo em que o cachorro morreu pela primeira vez, e a partir desse dia toda a dúvida poderia recair sobre ela. Houve quem tentasse me convencer de que não convinha ter Clarice emoldurada na parede do quarto, que era carga demais, e não só literária. Houve quem tentasse me animar com o fato de que ela poderia me inspirar a investir na minha carreira de escritora. Houve quem achasse que eu era escritora.

Houve, também, quem sentasse ao meu lado na cama e ficasse pasmado admirando Clarice. Parecia haver certo repouso ali, uma calma de ver que há muito só praticava quem tinha intimidade com o mar. Era uma calma parecida com aquela que se têm na arrebentação, aquele momento em que ficamos à deriva com as pernas pendendo para os lados da prancha, pouco antes da manobra que nos coloca no centro de onde se deve estar para deslizar, tal qual uma canção meio cafona dos anos 90, o sol abraça o meu corpo, meu coração etc. A calma de quem brinca com as mãos na água salgada, vendo os dedos enrugados e a praia do melhor ângulo, de quem tem o nascer do sol como religião. A calma que se escuta de algumas vozes. Um altar.

Ter Clarice ali aliviou a perda diária do cachorro, que insistia em morrer ao menos uma vez num intervalo de 24 horas. Chegar em casa passou a ser um suplício cotidiano. No caminho eu tentava decidir o que fazer se o cachorro morresse de fato. Ele começava a perder os dentes, o que resultava conclusões bem mais simples. Eu fazia todo o barulho possível ao entrar: de chaves, dos pés, da bolsa, da prancha. Eu voltei a surfar no dia seguinte ao que Clarice chegou, porque eu precisava de um conforto improvável pra quando o cachorro realmente morresse, um desses confortos que te roubam os pensamentos por alguns minutos, algumas horas.

Eu o chacoalhava entre as almofadas, lágrimas a postos. Clarice parecia indiferente na parede, nem era possível atribuir-lhe a função de velar o sono do cãozinho. Ela escreveria toda uma obra caso se deparasse com mais um bicho morto, eu não saberia nem mesmo inventar uma oração. Eu comecei a inverter a lógica das coisas, e me empenhava em sentir a maior quantidade de felicidade possível toda vez que o cachorro não estava morto. Comecei a entender também que eu não precisava pegar todas as ondas que invariavelmente eu perdia por falta de fôlego, que a mim bastava aquele tempo silencioso de boiar sobre a prancha, olhando a areia, tentando assoviar.

Um mês depois do dia em que Clarice chegou eu decidi abrir a garrafa de Seacher’s Gin que veio junto com ela, porque eu estava exausta de todos os dias de sol e de checar de hora em hora os sinais vitais do cão. Adormeci diante de Clarice, depois de contemplação, três garrafinhas de água tônica e meio limão siciliano, e aquela placidez que eu sentia ao sentar na areia, depois de passar uma hora dentro do mar. Acordei no dia seguinte, o cachorro ao pé da cama me chamando pra brincar.

2 comentários:

Rach disse...

joão tá bom, julinha? johnnie andou tendo uns problemas, esses nossos vovôs caninos...

Jeanne Duval disse...

Clarice combina com estar à deriva, com boiar, com solidão e placidez. Sou a favor de admirar Clarice, de emoldurar Clarice, mas, definitamente, contra a colocá-la no quarto. Clarice se apaixonou por homens errados,por mulheres erradas, e por descuido se queimou. Ou seja, Clarice talvez seja na verdade cachote na certa. Na dúvida, coloque na sala de leitura, e vamos celebrar a vida do cão, que deveria ser batizado de Lázaro, com gin, porém o Bombay.