quinta-feira, agosto 09, 2012

O novo porteiro da noite


Não passa de três semanas a data do email da professora de literatura em que ela dizia ter gostado muito do meu pequeno trabalho acadêmico, por sua vez enviado cerca de um mês antes da nota 10 que me chegou via gmail. Desconfiei um pouco dos critérios dela, porque no fundo sabia que haveria trabalhos bem mais relevantes que o meu, mas sorri assim mesmo: a nota 10 me tornava oficialmente uma cdf, e justificava as semanas, até mesmo meses, em que vivi uma vida regrada onde quase não havia espaço para refrigerantes, carne vermelha ou badalações. Tudo isso e um outro 10 na disciplina de artes visuais me levaram a uma rotina reclusa, e foi preciso entrar de férias para perceber a presença de um novo porteiro da noiteno prédio.

Eu chegava de taxi de um jantar que me deixou apaixonada por polvo, e um tanto embriagada por causa de duas ou mais jarras de sangria. Desconfio que dois goles de cerveja já teriam sido suficientes para aquele levitar do álcool, frente à abstinência autoimposta dos meses precedentes. Fato é que, antes que eu pudesse encontrar minhas chaves no fundo da bolsa, o novo porteiro da noite abriu a porta para mim. Não era um horário extravagante, confesso, mas já era hora dos bêbados voltarem aos lares, o que automaticamente significava que porteiros da noite estariam adormecidos. Fiquei surpresa, mas julguei que aquela era a primeira semana de trabalho do novo funcionário. Ao me informar sobre o assunto, descobri que o novo porteiro da noite assumira o cargo bem antes do que eu pensava, e já completava seu segundo mês ali. Blame it on literatura, pensei. Meu argumento era mais que justificável pro meu total desconhecimento do novo porteiro da noite.

As férias seguiram animadas, e cada vez que cheguei à portaria depois da meia-noite me surpreendi com o fato do novo porteiro da noite seguir sempre alerta. Foram inúmeras as vezes que saí do taxi ou da carona com as chaves na mão, eventualmente até mesmo com os sapatos na mão pra não acordar o homem, e lá estava ele: de olhos bem abertos, acionando portas, dando bom dia, chamando o elevador. Sem me dar conta, apliquei um teste à resistência do porteiro da noite, chegando em casa cada vez mais tarde. Tão tarde, às vezes, que o turno já havia sido trocado e eu dava de cara com o porteiro da manhã.

O fato do novo porteiro da noite não dormir alterava a ordem das coisas a tal ponto que fiquei ligeiramente obcecada. Toda vez que alguém me dava carona até em casa eu puxava assuntos com a pessoa, a fim de ficarmos estacionados em frente ao prédio, pra que eu pudesse observar o comportamento do porteiro, pra que eu pudesse flagrá-lo acordando. Eu não me conformava, e nesse exercício de arranjar cúmplices, acabei arranjando alguns beijos também, porque os meninos começaram a interpretar essa minha demora em sair do carro como uma tentativa de sedução, mesmo que eu explicasse toda essa história de novo porteiro da noite. Tava na cara que isso só fazia sentido pra mim.

Quando as férias terminaram, descobri duas coisas: todo mundo tinha tirado 10 nos trabalhos de ambas as disciplinas da pós-graduação, o que foi um balde de água-fria em 14 pessoas. A segunda coisa é que tinha havido uma mudança de síndico no prédio, e que ele pensava em eliminar o porteiro da noite, não só o novo, mas a função em si, a fim de corte de gastos. Convocou-se uma reunião extraordinária em que defendi com unhas e dentes a permanência do porteiro da noite, especificamente daquele, que àquela altura só me via chegar de taxi, porque ninguém mais agüentava minha conversa nonsense na porta do prédio, e porque meu ritmo de estudos recomeçava. Em breve, eu nunca mais veria o novo porteiro da noite até dezembro, porque estaria estudando feito louca pra manter meu c.r., mesmo que ele fosse um embuste.

Logo depois da assembléia que votou a favor da permanência do porteiro da noite, assegurado de seu emprego, o novo porteiro da noite sucumbiu: tirou um cochilo justo quando esqueci de levar minhas chaves.

5 comentários:

Aline Zouvi disse...

Eu tô fazendo um esforço gigantesco pra me lembrar como é que vim parar aqui, ou por quê esse blog tá numa lista de blogs que eu seguia. Enfim, só sei que gostei, e quero voltar. (essa coisa de ser cdf me faz falta!)

Luis Oliveira disse...

"acabei arranjando alguns beijos também," hehe.

Julieta disse...

Obrigada, Aline!

Os beijos arranjei só na ficção, Luis!

Bruno Quintella disse...

Porteiro CDF!

Anônimo disse...

Sensacional ! Lê