quarta-feira, maio 16, 2012

Lanterna dos afogados - capítulo VI


Às vésperas de completar um ano de natação, percebi que, en fait, fazia quase dois meses que minha rotina aquática consistia em ir a uma aula e faltar a três: a lógica de uma respiração a cada três braçadas, adotada no estilo crawl, rompeu as fronteiras das raias e instaurou-se nas manhãs de segunda e quarta. Quando me dei conta disso, sentei, ponderei, calculei: meu maiô carcomido precisava ser descartado, o plano trimestral renovado, a fé no esporte restabelecida. Durante duas semanas (nas quais, obviamente, dormi mais do que nadei) só pensava no que fazer, no que poderia substituir tal atividade, no que poderia me fazer feliz, em como seria minha vida sem essas manhãs molhadas, e percebi que, qual um poema de Manuel Bandeira, a natação varria tudo: eu roia unhas, chacoalhava os pés, encharcava o cabelo de cremes, aproveitando os dias sem cloro enquanto tentava restaurar os cachos castigados pela química, e a minha vida ficava cada vez mais cheia de água.

Seguindo os mesmos impulsos que me fizeram mergulhar no mundo natatício pela primeira vez, e tendo como norte uma existência sem contraturas musculares, sem hérnia de disco, quiçá sem dores nos joanetes, o que saboreio desde que toda a saga começou, joguei o velho maiô no lixo e adquiri uma lycra Speedo, pois que me sinto perfeitamente apta a ostentar, não mais apenas um figurino, mas um estilo de vida. E cruzei três cheques. E então, como numa novela onde a mocinha só é feliz no último capítulo, eis que três novos personagens cruzaram meu caminho. Na verdade, cinco. São eles:

1)     O maiô Speedo. O maiô Speedo foi comprado em meio a uma conversa telefônica com alguém por quem talvez eu esteja perdidamente apaixonada, o que já confundiria toda e qualquer decisão. Além disso, o pós compra do maiô Speedo consistia numa enorme tigela de sopa de tomate e queijo gruyere em excelentes companhias que já me aguardavam no restaurante. Ou seja: não experimentei o maiô Speedo, e a ao chegar em casa cortei as etiquetas, lavei o maiô, pendurei pra secar. Quatro dias depois, às 6h15 da manhã, concluí que o maiô Speedo não cabia em mim. Eu já estava de pé, rosto lavado, café da manhã tomado. Lá fora ainda estava escuro, lá dentro eu me atochava num maiô que era um número a menos. E assim fui nadar, socada em elastano, o breu no mundo.
2)     O breu no mundo. É maio, ficou frio, é antes das sete da manhã. Qualquer pessoa com amor próprio pensaria “what the fuck”.
3)     “What the fuck”, diz a voz interna que se faz cada vez mais nítida toda vez que o novo professor de natação conversa, e ele conversa muito, e ninguém me avisou que haveria uma troca de instrutores, o que teria catapultado a minha (agora percebo) teimosia em permanecer nesse (agora entendo) suplício. O novo professor de natação usa chinelo crocs, sunga, camiseta e uma touca pendurada na cintura. Ele depila as pernas. Ele teoriza sobre o fato de que não é a natação que deixa as pessoas gripadas, é esse entrar e sair da água. Ele filosofa sobre uma pixação que por anos habitou um muro na Gávea – “pra que o medo se o futuro é a morte” – afinal, “a única certeza que a gente tem é que vai morrer”. Breu no mundo. Maiô apertado. 6h40 da manhã.
4)     Do outro lado da raia vem nadando a todo vapor, depois de uma “virada olímpica” na margem, uma mulher que logo julgo ser exibicionista, insegura, egocêntrica e carente. Ela nada golfinho como se treinasse pras Olimpíadas de Londres, eu me encolho em meu humilde crawl, mas é batata: a mão esquerda dela me estapeia. Choro dentro dos óculos de natação, dou meia volta ao chegar na borda oposta pra evitar o professor, penso em fazer xixi na água só de raiva da mulher nadando golfinho.
5)     No vestiário, depois da aula, o dia já está claro, já são 7h30, luto pra tirar o maiô, penso “what the fuck”, penso em cortar as alças do meu Speedo preto, penso em sustar os cheques, em comprar uma bicicleta ergométrica, em entrar na yoga, em fazer um curso de meditação, em comprar 10 latas de sopa Campbells, e, quando estou saindo, passo pela senhora que nada antes de mim e que agora seca seus cabelos, e que diz “você é muito rápida, já nadou, já saiu e eu aqui ainda secando os cabelos”. Não seria um problema, mas ela repete a mesma frase, duas vezes por semana. E ainda que já passe das 7, e ainda que eu nem respondesse, mas assumi meu papel e digo “mas eu não tomei banho”, ao que ela responde “ah, vou contar pra todo mundo!”, ao que saio correndo, maiô no saco, minha pele marcada pelo elástico do modelito PP (embora fosse M) que não me veste, meu desespero, minha sede, meu cansaço.

Uma das minhas músicas preferidas dos últimos meses, e que é a única que conheço do Grateful Dead, toca em looping na minha cabeça, e já a culpo pela minha permanência estendida na natação: and it’s just a box of rain. Me apeguei a essa máxima. É só uma caixa de chuva, que mal pode fazer? Mas no fundo eu sei que é muito mais que isso. Hoje, voltando pra casa, confesso: me deu saudade do Carlão.





3 comentários:

Leticia Wahmann disse...

ha-ha-ha. queria estar lá pra ver.

nat rosa disse...

MARAVILHOSO.

nat rosa disse...

M A R A V I L H O S O .