É possível que a terminologia usada neste texto esteja defasada, e que o grupo de pessoas aqui referido já tenha merecido um termo cunhado neste ano de 2012. Para todos os efeitos, creio que tal grupo será identificado facilmente pelo leitor, pois que tal figura está totalmente disseminada no cenário urbano carioca. Vale ainda acrescentar que não pretendo que este “estudo” seja tomado como julgamento, aprovação e/ou reprovação das gentes citadas, e que deve ser lido como uma observação bem parcial desta que vos digita.
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Faz pouco o carioca adotou
prática já implantada há dezenas de anos em países avançados, e desde então uma
série de discussões e debates toma as redes sociais em prol do uso da
bicicleta, da construção de ciclovias, de respeito ao ciclista etc. Uma horda
de ciclistas sem via, por sua vez, adotou o pensamento do motorista que
estaciona na calçada por falta de vagas. Seguindo essa lógica, os ciclistas se
aventuram no meio das pistas de rodagem, ultrapassando carros e motos como se
não houvesse amanhã, numa atitude desafiadora ao sistema, e dispensam até mesmo
o capacete. Em poucos meses uma verdadeira militância surgiu na cidade, e um
ódio a veículos automotivos começa a ser cultivado entre os usuários deste
transporte “alternativo”. As aspas são puramente pessoais. Transporte
alternativo, para mim, é helicóptero.
O que me interessa nessa
deliberação acerca do hábito da bicicleta, porém, é tanto mais um fator que,
creio, não seria exagero afirmar como estético, e que assola o grupo sobre o qual
pretendo refletir.
A minha geração os
denominou “sujinhos”. Um sujinho, basicamente, era um sujeito de barba rala e
bigode, mais charmoso que bonito, mais inteligente que bonito, mais divertido
que bonito, mais intelectual que bonito, enfim, mais coração que cara, e tudo
isso ficava evidente no modo de vestir, de falar, de gostar. Frequentemente um
“sujinho” está ligado a alguma atividade artística, e circula por shows,
teatros, cinemas, museus, galerias, eventos de poesia, mais recentemente passeia
por sambas em pracinhas com coreto etc. Um “sujinho” tem engajamento político,
discos de vinil e usa seu perfil na rede para divulgar notícias, reportagens e
matérias sérias sobre temas relevantes. Ele não é umbiguista, jamais posta
fotos do cachorro e preserva sua privacidade. Check-in é algo que envolve uma
companhia aérea, um aeroporto e milhas. Um “sujinho”, ora, é mesmo um pouco
sujinho, ou ao menos tem aquela aparência de “fim do dia”, momento em que deve
estar se encaminhando pra casa, pra tomar um banho antes de jantar, trepar ou
dormir.
Habitualmente, também, um
“sujinho” é “contra o sistema”, e portanto, em 2012, nada mais natural que um
“sujinho” se converta em
ciclista. O que, por conseqüência, o torna oficialmente sujo.
O “sujinho” com sua bicicleta
está potencialmente mais suado, oleoso e com cheiro vencido. Faça o exercício:
vá à abertura de uma exposição, a um festival de teatro, a uma mostra de filmes
e perceba como, à mera aproximação de um “sujinho” te dá um ligeiro tremelique
de asco, e seus passos automaticamente andam pra trás, numa tentativa de se
afastar desse cara para quem a limpeza ficou em segundo plano. Minhas últimas
incursões em ambientes dominados por “sujinhos” foram infelizes, a ponto mesmo
de adotar uma postura de recusa, e uma resolução de somente me aventurar de
novo em tais domínios sob forte gripe e congestão, o que evitará o mau cheiro
(no meu nariz, obviamente).
Quando o anjo torto
incitou Drummond a “ser gauche na vida”, ele não fez alusões à falta de aprumo.
Ele não estabeleceu parâmetros pelos quais ficava o sujeito isento do ritual de
sabonete, xampu, condicionador, desodorante. Também não fez odes ao suor, a
peles oleosas, a cabelos ensebados. A sujeira não devia ser intrínseca a essa
tribo, mas acabou sendo incorporada por ela, bem antes das bicicletas, que vêm
agora sublinhar o caráter inhaca da revolução que, com sorte, será
televisionada, evitando portanto o meu contato pessoal e a troca de fluidos com
esses militantes.
O que eu não saberia dizer
é quando essa “tribo” contestou os valores de higiene que eu julgava até então
em voga. É um mistério para mim.
Uma das poucas heranças
que temos do nosso “bom selvagem” é o hábito de tomar banho todo dia. Seja você
árcade, romântico ou neoconcreto, ao ser indagado sobre o que temos do que
ainda é considerada a “origem” do homem brasileiro, citará o banho, ainda que
isso não nos aproxime de nossas raízes nacionais. Nem mesmo debaixo do chuveiro
os nossos pensamentos se conectam à figura do índio.
Natural seria, portanto,
que o banho fosse adotado irrestritamente por todos os que ainda sejam imbuídos
de alguma ideologia (e nostalgia), pois que a defesa do legado daqueles que
foram massacrados pelo sistema seria a arma-chave para esse pensamento do
“sujinho” que quer, justamente, derrubar o mesmo sistema.
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Como disse acima, este não
é um manifesto, é apenas uma sugestão em prol da socialização (no sentido de
encontros, bate-papo, flertes etc. entre tribos que um dia já foram igualmente
cheirosas). Mas se você está de acordo, por favor, assine embaixo.
8 comentários:
Julieta,
Tanto o seu raciocínio lógico, quanto o sensível estão impecáveis.
Impecáveis também os seus penteados.
Espero que este não-manisfesto se prolifere. Assino embaixo.
Eugenia.
Jubi,
Vou de bicicleta para o trabalho aqui em NY. Nessa estação fresca, chego cheirosinha, como de um passeio pelo jardim! MAS já estou pensando em como vou fazer quando o verão apertar. Já inclusive pensei que seria uma boa fazer valer a mensalidade da academia (que nao vou desde o natal) se fosse pedalando pra ela e usasse o chuveiro antes de ir para o escritório. Pensando alto...
Beijos e queijos (cheirosos)
da Mari
Você nunca me decepciona, Mari!!
Por uma "esquerda" menAs ensebada...
Ah, Julia! É a primeira vez em tantos anos que sou obrigada a discordar totalmente. A maravilha de pedalar do centro ao Humaitá em plena hora do rush, ouvindo de rabo de orelha os mais diferentes funks altos saídos dos carros no trânsito ou passando devagar pelos botecos cheios (para ver se tem algum gatinho) compensam o quase-suor, experimenta. Vamos nos libertar dessa ordem higienista, "não tenha cheiro de gente, mas de perfume", blá blá blá, "use camisinha", "arranque todos os seus pentelhos".
A estética da limpeza já está em partes demais. Por um mundo com mais moletons e crocs. beijo, Ana
Ana, você tem toda razão. Mas meus trajetos e tralhas não permitem o uso de bicicleta. Mas para além disso, meu nariz é exigente, fazer o quê?
sabia que ana hupe ia se manifestar.
e embora entenda os argumentos, comu, tô com a ana nessa :)
Ju, meu sonho é escrever que nem você. Sério.
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