Uma hora mais tarde Julio
recebe seu pagamento: três notas de dez mil pesos com as quais tinha pensado em
se virar durante as duas semanas seguintes. Em vez de ir para seu apartamento
ele faz sinal para um taxi e pede ao motorista que dirija trinta mil pesos.
Repete, explica e até dá o dinheiro adiantado para o taxista: siga em qualquer
direção, rode em círculos, em diagonais, tanto faz, eu desço do seu taxi quando
bater nos trinta mil pesos.
Alejandro ZAMBRA. Bonsai.
São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Na minha mesa agora
habitam, temporariamente, quatro livros que não são meus. Três deles são de alguém
que tem manias semelhantes às minhas: nome e data na folha de rosto, marcadores
de páginas coloridos, riscos a lápis marcando trechos. O outro tem carimbos de
biblioteca, etiquetas laterais de biblioteca, numeração de biblioteca, cheiro
de biblioteca e aquela quase virgindade das páginas. Ninguém ousou quebrar a
lombada, e me angustia pensar se devo ou não fazê-lo.
Imagino a bronca. O livro
da biblioteca tem de ser devolvido exatamente como encontrado dois dias antes.
Três dias antes. Pretendo pagar uma multa de R$ 1,50 só pra não ter que ir à
biblioteca no dia que não tenho aula na Universidade, segunda-feira, data de
devolução do livro. Se for preciso, pago mais R$ 5,00 por ter quebrado a
lombada.
Eu quebro lombadas.
Imagine ler a biografia da Clarice Lispector edição de bolso sem quebrar a
lombada. Seria uma prisão.
Não gosto de coisas que
não são minhas. Sou controladora, é por isso que gosto de ler. Gosto de poder
rabiscar as páginas. De deixar aquilo meu. De ensaiar garranchos, de ver os
sublinhados que dizem que estive ali. Acho que daria pra escrever uma
autobiografia colando frases sublinhadas de livros. Talvez à primeira vista não
fizesse sentido. Mas pense só.
Ou uma autobiografia feita
de assinaturas em livros de presença de exposições.
Joyce Pascowitch foi ao
MAM dia sete de abril de dois mil e doze.
Eu ainda compro lápis, mas
fico pensando quem mais. Gosto de cheiro de lápis. Gosto de tudo onde se possa
ver a passagem do tempo. É clichê, mas dá pra fazer uma lista: folhas de papel,
folhas de plantas, canetas, paredes brancas, sapatos de salto, sapatos sem salto, livros, pele,
cabelos.
Gosto de morder os
pescoços dos homens que passam pelos meus afetos. São as marcas. Sou
controladora, é por isso que gosto de ficar sozinha. E de ler. E de ter as
minhas próprias coisas, e de poder, num chilique que nunca acontece, rasgar as
páginas, se eu quiser. Ou quebrar lombadas, todas minhas, partidas ao meio,
fazendo com que eventualmente a encadernação se danifique, as páginas se
soltem, as palavras se percam.
Quatro livros emprestados,
angústia de não poder possuí-los. Depois de amanhã devolvo tudo. Até lá,
desenho nas paredes.
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