É tanto cabelo que a gente encontra
pelo chão que já penso em usar touca dentro de casa, disse M. quando foi morar
em Barcelona com uma amiga. O chão branco deve ter a ver com isso, eu pensei,
vai ver meu cabelo já caía assim. O caso é que quando você mora sozinho começa
a lidar com coisas nunca dantes enfrentadas, como a poeira inclemente que
parece entrar por todas as frestas, os fios de cabelo que parecem
multiplicar-se bem mais na sua cozinha que na sua cabeça, o fato de que o
tapete do banheiro que você acabou de lavar não vai secar nunca, nem se o verão
chegar. E os legumes e verduras na geladeira.
Já na segunda semana a minha Brastemp
virou um cemitério de hortaliças e eu acompanhei, desolada, o apodrecimento de
beterrabas, folhas e raízes. Aquela gaveta ingrata, além de dor nas costas,
agora me dava corpos putrefatos quase que diariamente: as coisas não morrem ao
mesmo tempo. O prazo de validade dos verdes é pequeno, sim, e se agrava quando
você é adepta dos orgânicos e inapta a se organizar emocionalmente para
amanhecer na feira de sábado. Sendo assim, você vira refém das bandejinhas de
abobrinhas que nunca tem menos que três exemplares, e o mesmo se dá com
tomate, pepino etc. e é batata (rá!): você percebe que também é inapta para
montar uma logística de aproveitamento e apenas não dá conta de consumir 6
rabanetes em 5 dias.
Numa outra esfera da cotidianidade,
B. adotou a política de, numa mesma semana, usar apenas roupas brancas, na
seguinte apenas roupas pretas, na outra apenas roupas estampadas/coloridas,
numa tentativa de otimizar sua lavanderia caseira. Tenho procurado fazer o mesmo,
mas há algo de hipnotizante e terapêutico em observar as roupas girando na
máquina de lavar e quando dou por mim estou lavando panos de chão, panos de
prato e o que mais estiver ao alcance. Num destes momentos de ausência do mundo
em que toalhas e lençóis rodavam à minha frente pensei até em deslocar o sofá
para a área de serviço. E pensei, também, em me unir a alguém, porque fui
tomada pela certeza de que o casamento só pode estar situado numa interseção
entre o amor e uma bandeja de couve-flor.
Num desabafo com L., que assim como
eu é inapto da feira, da lógica alimentícia e do coração, confessei que todo o
meu histórico amoroso vinha me assombrando violentamente ao percorrer os
corredores do Hortifruti. Eu me lamentava não poder dividir o brócolis orgânico
com a pessoa amada e portanto evitar o desperdício, ao mesmo tempo que via que
um buquê de alface poderia abastecer três residências de solteiros por uma
semana sem qualquer percalço. Lamentava, também, o destino cruel que a vida me
reservava: sem agrião ou acelga para o tempo que dure a minha solidão. Segundo
L., havia, porém, uma saída para o gengibre e bastava quebrá-lo em pedaços
menores na gôndola do super. É óbvio, pensei, e diante do fato reavaliei toda a
minha ética hortifrútica.
Foi assim que passei a surrupiar
folhas de alface e escondê-las nos maços de couve que compro e que só são
consumidas graças ao suco verde diário. Ramos de agrião e de cheiro verde foram
incorporados ao espinafre. E outro dia, numa festa, me dei conta de que estava
há 15 minutos revoltada com 2 amigos que também não se conformam com o tempo de
cozimento das beterrabas, e discorremos sobre legumes durante 5 ou 6 músicas,
sendo uma delas do Daft Punk, enquanto à nossa volta as pessoas normais ficavam
bêbadas e/ou lânguidas.
É uma obsessão, não sei como
controlar, e apesar dos furtos terem dado certo, o grau de tensão que eu senti não compensou o crime. A questão já virou pauta de análise, e fico feliz da minha psicóloga
entender que as picuinhas da vida a um podem ser muito mais eloquentes do que
crises de identidade. As pessoas esperam que você apareça no divã toda semana
com uma grande questão e uma série de abstrações e indagações existenciais, ou no
mínimo com uma dor de cotovelo avassaladora: a minha dor é a privação de aspargos, berinjelas e repolho.
Na tentativa de remendar tais
agruras, convoquei B. e L. para o super. Fomos munidos de tupperwares, facas e
saquinhos, e uma vez que tudo havia sido computado dividimos nossos verdes,
embalamos nossas porções e recebemos olhares duvidosos dos caixas e
consumidores locais. Se naquela noite alguém pensou em se aproximar de um de nós
para dar aquela cantada ali perto dos congelados, desistiu para sempre. Pouco
importa: em nosso devaneio, criamos um site de compra coletiva apenas de
comida: nunca mais um ramo de hortelã murchará em vão.
Um comentário:
"as coisas não morrem ao mesmo tempo" é uma daquelas observações simples que explicam as piores complexidades da vida.
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