Saiu a programação da Flip 2014 e meu primeiro pensamento
foi “quem são essas pessoas?”. Meu segundo pensamento foi que eu deveria saber
quem eram aquelas pessoas, afinal trabalho numa editora e supõe-se que eu seja
bem informada sobre o que acontece à minha volta. Meu terceiro pensamento,
então, foi na verdade um levantamento de hipóteses, sendo a primeira delas a de
que eu estaria no lugar errado, e nem quero comentar as outras, mas mais ou
menos todas levavam a crer que no mínimo eu andaria lendo as coisas erradas.
Basicamente, que eu estava perdida.
Uma vez começada a Flip, meu desbaratinamento só piorou:
eu não estava lá quando todo mundo se emocionou com o Marcelo Rubens Paiva na
mesa da ditadura, tampouco fui plateia da elogiada mesa de Eduardo Viveiros de
Castro e Beto Ricardo. Não vi Fernanda Torres dominar uma das últimas mesas da
festa (nem li seu romance, aliás), não testemunhei o primeiro russo a
participar do evento e, claro, não entrei na festa da concorrente onde Xico Sá
deveria estar causando na pista. Nem no Banana da Terra eu consegui comer, nem
um cappuccino no Café Pingado eu consegui beber, e se sentei no Coupé uma noite
foi mais por acidente que intenção. O que, então, eu fiz nessa festa, além de
discordar de que esta tenha sido a “Flip das Flips”? Pois bem.
Frustrei-me com o que mais esperava, como geralmente
acontece: entrei na tenda dos autores para assistir à mesa que reunia Davi
Kopenawa e Claudia Andujar. (Importante assinalar que pouco tempo antes eu
saíra da mesa do Michael Pollan com desejo de moqueca e acabei caindo no conto
do “a moqueca fica pronta em meia hora”, ou seja, cheguei ao pavilhão
subnutrida.) Paulo Werneck – com pintura indígena no rosto – chama ao palco o
líder ianomâmi e a fotógrafa. A fala de ambos é pausada, lenta, e a dele
bastante elementar, ingênua, até. Davi Kopenawa quer salvar o seu povo,
proteger a floresta e conta com nosso apoio. Entre aplausos, frio, fome e a
projeção de imagens sem contraste e distantes demais mesmo para os míopes em
dia com seus óculos (o que não é o meu caso), saí da sala antes da conversa
terminar, derrotada por constatar como são mundos e tempos completamente
diferentes os nossos e os dos índios, e consequentemente pensar como parecem
distantes as chances de conciliações das partes, muito mais por intolerância
dos não-índios. No dia seguinte, conversando com uma amiga que bravamente não
abandonou o barco, falamos justamente dessa pressa maluca que colocamos em
tudo, e em como o ritmo devagar do outro cansa por evidenciar em nós a calma que
desaprendemos.
::
Fiz alguns acertos literários (falarei dos acertos
turísticos mais à frente), convém dizer, dentre eles acompanhar a participação
de Etgar Keret no evento, autor de quem venho falando há cerca de um mês para
um grupo de amigos que já nem deve me aguentar mais. O israelense subiu ao
palco de bermuda, andando com os pés en
dehors e uma aura meio estropiada de bailarino contemporâneo que
acabou de sair de um ensaio. Dividiu a mesa com o mexicano Juan Villoro,
apenas um pouco menos impecável que Ángel Gurría-Quintana, o mediador.
Incentivados por este a falarem de seus pais, Villoro contou uma boa história
sobre a taqueria marxista que seu pai
abriu e que faliu em tempo recorde. Keret emendou com uma narrativa que poderia
ser um de seus contos hilários e absurdos. Sobrevivente do holocausto, seu pai
resolveu que viveria várias vidas, e para isso mudava de profissão a
cada X anos. Em alguns ofícios era ótimo e a família fazia viagens
internacionais; em outras ocupações era péssimo e mal tinham dinheiro para
comprar sapatos, o que fazia o pequeno Keret perguntar “pai, estamos pobres
agora?”. Keret é seu texto, parece. Falou, também, do humor como forma de
protesto contra a realidade, e de como ele funciona como uma espécie de pano
que é o que te permite tocar algo muito quente, como uma panela. Gosto dessa
imagem e converso sobre ela mais tarde com Luciana, na casa Rocco.
::
A casa da editora é uma das muitas belezas do Centro
Histórico, situada bem pertinho ali daquela confusão da rua do Comércio, o
Champs-Elysées local. É ampla, tem um mezanino de madeira onde habita uma cama
de outros tempos, tem bancos compridos que acolhem, tem um jardim interno com
plantas e janela para a cozinha. Principalmente, tem um espaço de encontro com
Luciana, Diana e Florencia, para citar apenas 3 autores da casa com quem troco
e-mails há meses. É uma alegria dar corpo às pessoas, e é curioso o vínculo que
se cria com alguém em cujo livro você mexeu. Há um afeto e uma cumplicidade
espontâneos e é como se o processo de edição virasse entre nós um segredo, uma
história que tecemos juntas e que se torna especial, como se essas coisas que
compartilhamos longe dos olhos do público fossem uma preciosidade. É bom ter um
ponto de encontro e de respiro nessa margem direita tão tumultuada. E é sempre sol quando vejo R. barriguda, microfone na mão apresentando ao público escritores e livros que ela mesma ajudou a parir.
::
É igualmente bom encontrar Antonio e José na Rive Gauche
paratiense – e arrancar uma risada do Gregorio Duvivier ao denominar assim as
coisas – a caminho do que chamamos Saint-Germain, vindo do que chamamos de
Pigalle, certos de que terminaremos o dia no que chamamos de Marais.
E não é só com eles que rio, ao contrário: Antonio Prata
está no mundo para potencializar nossa endorfina e rio duplamente, uma vez na
casa do IMS onde ele fala sobre Campos de Carvalho, e outra vez na mesa que divide
com o paquistanês Mohsin Hamid. No IMS, Antonio fala da decepção de entrar na
casa de Campos de Carvalho – “uma empresa de demolição” – e dar de cara com um
tapete de peixinho no banheiro, uma entre outras mediocridades da decoração. Na
mesa da programação principal ele provoca gargalhadas descontroladas na plateia
pela menção que faz a uma crônica de 2008.
Antonio é seu texto também, parece: ágil, cheio de tiradas e tão fluido, tão
natural, faz parecer que alguma coisa pode ser fácil e ótima.
No IMS, painéis com diversas frases de Millôr
causam alegria e likes no instagram. A minha preferida, contudo, é ouvida na
mesa bônus, que reúne Mathieu Lindon e Silviano Santiago: “Esnobar é pedir café
fervendo e deixar esfriar.” É um pouco o que eles fazem, talvez, especialmente
o francês. Pense: Foucault emprestava o apartamento ao amigo para experiências
com LSD e ópio, nos anos 1970, na rue de Vaugirard, na Rive Gauche – essa sim -
parisiense. Em seu O que amar quer dizer
ele conta da amizade com o filósofo, e na mesa diz do privilégio de ter vivido
esse encontro. Supomos que sim, mas Lindon é vago, rodeia o assunto e escapa de
nos revelar tudo o que gostaríamos de saber. Silviano é medroso, ele mesmo
confessa, mas tem algo ali que o deixa mais desarmado, e o que diz do trecho de
Montaigne que deu título à mesa (“Se me obrigassem a dizer porque o amava,
sinto que a minha única resposta seria: porque era ele, porque era eu.”) é tão
bonito que já não anoto mais nada no caderno, fico pensando nessas amizades
decisivas.
::
Um carneiro de para-quedas – é o que Lev, de 9 anos, pede
ao pai para desenhar na minha dedicatória, e quando termina, Etgar Keret rouba
a minha caneta. O menino come a mesma massa que eu no jantar e diz “thank you”
quando eu o ajudo a arrastar sua cadeira para trás. Ele tem os mesmos olhos da
mãe, que é uma dessas figuras fascinantes com um rosto poderoso do qual quase
não consigo desviar. Nos despedimos com a perspectiva de mar, e antes que o
domingo chegue tento entender a conversa entre dois jornalistas – Graciela, a
argentina que fala loucamente, e David Carr, o colunista do NY Times que parece
um astro do rock pós-rehab. Já não entendo mais nada, a cidade ferve de gente,
decidimos jantar pela segunda vez no mesmo dia, e o domingo já vem.
::
Glaucimara, a traineira com almofadas em forma de coração,
nos leva para uma prainha pequenina, um mar da cor dos olhos de Lev e uma
mansidão quase ianomâmi, não fosse o horário de voltar. L. e eu falamos abobrinhas,
praticamos nossa imitação de tradução simultânea, nadamos até a areia e
planejamos comprar cachaça mais tarde, almoçar crepe, viajar para o México em
dezembro. É um bom encontro, eu penso, no sentido spinoziano, mesmo que eu não
tenha credencial para fazer citações. Em retrospecto, concluo, são bons os
outros também, mesmo a fuga. São pedaços de uma história, e organizar as
anotações e papeis que estufam a bolsa é procurar o meu texto, procurar um
lugar possível em meio à balbúrdia de tudo que Paraty se tornou.
Num próximo ano, talvez, apostar em tudo o que for
completamente estranho, tudo o que parecer meio perdido, como eu. Comprar mais um colar de índio. Certamente navegar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário