segunda-feira, agosto 25, 2014

Plateia

Era novembro e eu estava num lugar remoto e molhado na Alemanha quando recebi um email da Paula perguntando quem queria ver uma peça do Bob Wilson na semana seguinte. Àquela altura das férias, com 31 anos de escoliose nas costas, qualquer perspectiva de ficar sentada por mais de uma hora era um alento. Viajar é um elixir da juventude: você anda o que não caminharia uma vida inteira, é capaz de arrastar malas pesadas por estações de trem em língua estrangeira e qualquer incompreensão faz parecer que o mundo é um lugar apaixonante – mesmo que o seu quadril sofra dores semelhantes às de uma agulha repetidamente espetada num boneco de vodu que tenha a sua cara.

Eu vinha de uma apresentação do Nederlands Dans Theater em Haia, num programa irregular belamente encerrado com Gods and dogs, uma coreografia hipnotizante de Jiří Kylián. De lá rumei para Wuppertal, onde em meio a lágrimas irrepresáveis assisti Nelken e Wiesenland, ambas peças de Pina Bausch, a segunda com direito a esbarrão em Dominique Mercy à saída da Opernhaus. Pelos meus cálculos eu só viveria algo próximo disso outra vez se a própria Pina reencarnasse e dançasse Café Müller no Theatro Municipal do Rio. Pelos meus cálculos, portanto, eu estava praticamente liberada do meu papel de plateia pelo tempo que durasse esta vida. Por outro lado, se esta vida melhorava a cada entrada num teatro europeu, a chance de que no penúltimo dia antes de voltar pra casa eu fosse fulminada por alguma coisa não me fez hesitar. E era o Bob Wilson. Em Paris. No Louvre. Com a Paula e mais 2. E sem baldeação no metrô.

Lá fomos nós, então, pirâmide adentro numa noite que prometia mágica, nunca sono. No centro de um palco azul, tomado por cartazes com palavras e pedaços de frases, estava Bob Wilson, de branco, com uma maquiagem carregada que deixava seu rosto tão engessado quanto o ritmo da peça. Sentado a uma mesa ele monologava A lecture on nothing, de John Cage: “More and more I have the feeling that we are getting nowhere. Slowly, as the talk goes on, we are getting nowhere, and that is a pleasure.” O trecho era repetido em looping, em nuances que iam do enfado à exasperação, quando Wilson gritava e despertava risadas nervosas na plateia, possivelmente num reconhecimento de sua própria angústia. Eu mesma procurava o sinal luminoso da saída de emergência, uma que de preferência me levasse diretamente ao encontro de alguém que pudesse me explicar todo o entusiasmo do mundo em torno do diretor, porque naquele momento eu me sentia, sobretudo, burra. Porque se alguém estava achando tudo aquilo chatérrimo, era essa a única explicação possível: burrice crônica.

Mais burra ainda, calculei, quando fiz o caminho até a Barra da Tijuca para ver The old woman, no fim de semana. Eu gosto de dança, pensei, não de toda essa exatidão de luz e sons. Gosto da respiração e dos baques dos corpos, do peso e dos improvisos de quando os pés se desencontram. Gosto dos esbarrões. E ali naquele palco de Bob Wilson, me parecia, nada disso cabia. Mas era o Bob Wilson. No Rio. Na Cidade das Artes. Com o Marcelo e mais quantos? E com o Willem Dafoe e o Baryshnikov.

Lá fomos nós, naquele monumento de concreto e vento, numa noite que prometia tédio, e tudo ia bem com a coluna e o quadril, eu poderia até recusar ficar sentada. Em todos os cantos de um palco que exibia cores desconhecidas, o que vi tinha tudo daquilo que eu já tinha visto: uma precisão desconcertante de luz, palavra, música. Mas era absolutamente outra coisa, apesar de ser quase a mesma. “This is how hunger begins”: uma comédia com tintas de palhaçaria, melancolias e um nonsense pontuado por estalos, gestos marcados e tão sincronizados que é difícil acreditar que Dafoe e Baryshnikov façam outra coisa que não passar o tempo juntos, se aprendendo. Também existe ali a possibilidade de uma narrativa, mas seu roteiro é constantemente torcido, te desviando para lugares opostos - ora incômodos, ora familiares - sempre absurdos.

Como da primeira vez, não falta chatice a The old woman, tampouco histrionice ou repetição. Falas são executadas como um mantra, à saída do teatro decoramos trechos. Em seu Exercises de style, Raymond Queneau escreve a mesma história 108 vezes. É cansativo como as repetições de Wilson, até quando se gosta delas, até quando as escolhas cênicas e inflexões, como as palavras e ritmos de Queneau, transformam o que está sendo dito. É aquela máxima levada à exaustão na prática: haverá tantas histórias para se contar quanto existam leitores para ler, e tantos palcos para desvendar quanto cadeiras numeradas na plateia.

Perseguir Wuppertal é a minha ambição, e não apenas no que ali havia de deslumbramento, mas no que havia de viver uma experiência em que se é tragado para um universo do qual se torna difícil sair. Ainda que fosse insuportável, a Leitura sobre o nada de Wilson me fisgou de forma tão absoluta que ficou marcada. Dificilmente vou esquecer aquela noite, e quando me lembrar ou falar dela sentirei todo o incômodo físico, me contorcerei na cadeira em que estiver sentada, elevarei a voz e farei caretas. Quando conversar com alguém sobre A velha, tudo voltará pro corpo de outra forma: sorriso, mãos que tentam desenhar movimentos de luzes e toda uma mímica do gostar, com uma breve interrupção, talvez até bufe para concluir que, apesar de tudo, tem uma ameaça de de repente tudo se tornar chato de aturar. 

Perseguir essa desmedida das coisas, nem tanto pela perspectiva do aplauso ou do choro, mais por habitar durante algumas horas esse mundo instável e tão vivo, esses mundos efêmeros aos quais queremos nos agarrar. Em alguns casos funciona. E então começa a fome.   


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