domingo, julho 17, 2011

O silêncio das línguas cansadas

Pedro Lago me propôs um desafio e eu topei: contar uma história que tratasse do encontro de um jovem leitor de Dostoiévsky com uma mulher mais velha no Jardim Botânico. Substituí o russo por um português e aí está o resultado.

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Sabe-se pouco a respeito dos encontros, mas que se davam toda terça-feira no banco de madeira perto do orquidário. Foi ali onde ela teve a ideia de enterrar os livros.

Antes que os primeiros quadrados de porcelana brotassem, porém, passaram-se meses em que ela era vista ali sozinha, a olhar fixamente praquele pedaço de chão onde seus sapatos ortopédicos tantas vezes se alongaram ao lado das sandálias de couro dele. Dizem que tinha um ar ao mesmo tempo desolado e econômico: eram escassos os suspiros, os movimentos e mesmo a contemplação foi substituída por uma espécie de nuvem que lhe encobria a visão. A qualquer momento tinha-se a impressão de que poderia chover perto dela. Parecia castigada por uma dor que ninguém adivinhava.

Quando as quinas dos quadrados começaram a perfurar o chão, o rebuliço foi geral. Achava-se que a obra do orquidário poderia ter soterrado antigas fundições. Ou que tesouros da família Imperial tinham sido esquecidos sob o solo, e agora subiam à superfície. Até que nem tanto esotérico assim. Técnicos, autoridades e entidades políticas e espirituais concordaram, unânimes no decreto: aquilo era obra de portugueses. Diante do espanto, decidiram arranca-los pelas raízes e conter, assim, os escândalos e curiosos que se amontoavam para ver os azulejos que floresciam no Jardim Botânico. Um plano de ação foi arquitetado para que se desfizesse tal absurdo, e os jardineiros mais experientes do parque foram requisitados para dar fim ao canteiro. A surpresa maior, porém, ainda estava por vir.

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Conta-se que ela era já uma senhora e que frequentava o local desde o ano anterior. Era discreta em vestes, gestos e palavras, mas emanava alegria. Não uma de carnaval, mas aquela alegria que se evidencia pelas mãos, sempre gentis aos toques, e pelos olhos, ainda ávidos pelos dias, especialmente pelas cores das orquídeas. Seu passeio era religioso. Contornava o roseiral, ia dar no lago de vitórias-régias e aspirava o ar com entusiasmo quando dava o primeiro passo pra dentro do orquidário. Seu prêmio: teria enfrentado tempestades marítimas, teria afundado naus inimigas, teria singrado oceanos povoados das mais monstruosas criaturas para chegar até ali. Morava do outro lado da rua, porém. Sua aposentadoria fora planejada para nutrir o grande amor que tinha por aquelas plantas, e depois de uma existência pontuada por perdas que a esquartejavam por dentro, fez daquele pedaço do Jardim Botânico o seu recanto. Esquecia-se de tudo em companhia das orquídeas.

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Um dia ela entrou no parque carregando uma pá, uma sacola que parecia pesada e óculos escuros que escondiam parte do rosto. Poucas pessoas viram quando ela abriu um buraco no chão. As poucas pessoas que viram quando ela abriu um buraco no chão estranharam, mas nenhuma delas se deu conta de que o canteiro de azulejos que brotava era justamente a pequena cova que aquela senhora havia aberto meses antes.

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Meses antes ela plantou os livros dele, e contou num bilhete a história que é a que se conta até hoje: ela Amália, nome de fado. Ele Gaspar, como um nobre navegante. As orquídeas, bengalas que a mantinham de pé. Os livros de Fernando Pessoa, alicerces dele. Numa terça-feira Amália não foi ver o roseiral, tampouco contornou o lago. Foi direto ao orquidário, e viu aquele sujeito ali, quase inexistente, pela primeira vez. Tão magro e tímido, calçava sandálias de couro, tinha a boca semiaberta e ondas nos olhos. Era jovem, alto, tinha uma ameaça de curva nas costas e parecia ter também todos os sonhos do mundo. Usava um bigode ultrapassado, além de óculos de leitura de molduras levíssimas. E carregava livros.

Sentaram-se no mesmo banco de madeira, ela para descansar, ele para ler. Quando percebeu a curiosidade que se esticava em sua direção, pigarreou, ficou rubro. E leu uma estrofe. Aflito, gaguejou. Ela riu, ele também. E tudo o que se desenrolou após esse primeiro encontro pareceu seguir essa lógica do também. Ela ficou mais feliz, ele também. Ela passou a falar mais, ele também. Ela ria, ele também. Ela qualquer coisa e ele também. Em pouco tempo ele tinha declamado boa parte da obra de Fernando Pessoa. Ao final de cada volume, ele a presenteava com o livro: orelhas, dobras, dedos, todas as marcas daquelas tardes, até mesmo folhas caídas de orquídeas que recolhiam juntos e que manchavam palavras.

Ela montou uma pequena biblioteca na sala de casa, e além das orquídeas, passou a fixar-se também nas lombadas e nas páginas do poeta português.

Um dia, porém, ele não apareceu na hora certa. Noutro dia, porém, ele não apareceu. Ela voltou a ser vista ali, sozinha, olhos fixos na terra do chão, agora sem as marcas dos pés longos e finos dele. Desabituara-se da solidão, e foi ganhando ares tristes, dizem, até, que parecia diminuir de tamanho. Decidiu, então, plantar os livros.

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Foi um cair de queixo atrás do outro. Ao lançarem as armas que revelaram o que havia sob os azulejos, a estupefação foi ainda maior. Antologias, coletâneas, sonetos, odes, rimas formavam um verdadeiro cemitério de livros, e deles brotavam azulejos. Quadrados brancos que iam furando a terra. Bocas se alargavam até quase esgarçarem os rostos incrédulos. Nenhum dos jornalistas e fotógrafos presentes ousou disparar um flash. A gente aparvalhada que estava ali, aos poucos, deu as costas ao canteiro e saiu andando, muda, aos tropeços. Aturdidos, os jardineiros aguardavam as ordens dos superiores. Incapazes de dar voz aos pensamentos, os superiores enxugaram das testas o suor, deram as costas e saíram escoltados pela polícia.

No dia seguinte não se falou mais no assunto. Não se escreveu uma linha nos jornais sobre os azulejos. Não se escutaram sussurros nem cochichos a respeito de tal episódio. Não se buscou explicação, não se consultaram os astros, não se encomendaram estudos. Quando descobriram o bilhete de Amália preso a um vaso dentro do orquidário, acrescentaram nas placas e nos mapas da instituição os caminhos e setas que levavam ao tal canteiro.

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A placa que contava a história da amizade entre Gaspar e Amália foi instalada numa manhã radiante. Fazia muito que Amália não era vista por ali, de fato, desde o dia em que ela chegou carregada com os livros e a pá ela não tinha mais voltado.

Naquele dia, conta-se, surgiram sobre os quadrados de porcelana os primeiros traços de tinta azul. Era primavera, a estação das flores.


3 comentários:

Jeanne Duval disse...

Um belo desafio e um belo texto! Gostei.

Pedro Lago disse...

Que beleza hein!
Muitos bisous
Pierre
Lac
:-)

Um brasileiro disse...

ola. estive por aqui dando uma espiada. interessante. apareça por la. abraços.