quinta-feira, outubro 13, 2011

Ali onde teu doce voo se detém*


Sem dislexias ou mudanças, dessa vez obedeci ao que sugeriu o Pedro Lago: um texto sobre sexo oral e a Nona Sinfonia (e se isso for contravenção, então confesso que escrevi ouvindo os Noturnos de Chopin por Nelson Freire, que acabaram tendo participação especial no texto). 
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De onde eu estava, via o topo da sua cabeça. Fios brancos despontavam aqui e ali. Seus dedos cravados nas minhas coxas. De onde ele estava, se levantasse os olhos, poderia adivinhar meu sorriso escapando entre uma ou duas almofadas. Meus pés em suas costas. Pensava se minhas unhas estavam bem cortadas. Sempre pensava nessas coisas quando havia uma cabeça entre minhas pernas, até sentir uma penetração mais profunda, como se algo me espetasse, então esquecia das unhas e fechava os olhos quando o mundo começava a se apagar à minha volta.

Do sofá de onde agora o observo dormir, refaço os passos que nos trouxeram até aqui. 

Alguns dias antes, da mesa do almoço, podia ver que ele tomava a mesma sopa que eu. Não era destino nenhum, era apenas inverno no centro da cidade, e o fato de que a sopa era a melhor sugestão daquele cardápio. Via o caderno de esportes do jornal na cadeira vazia à sua frente, o celular ao lado do prato, certa calma em sua fome, e a barba. Uma barba preta, espessa, impenetrável, e milimetricamente desenhada sobre maxilares fortes, geométricos. 

Poucos dias depois, do fundo de uma livraria ali perto, podia ver seu tamanho, sua camisa jeans, sua nuca. Ele inclinava-se para a frente, folheava alguns volumes. Fiquei imóvel durante os segundos que ele usou para se virar em minha direção. Os olhos negros como os pelos do rosto, em perfeitas linhas aparadas que desciam até onde começa o pescoço. Ficamos ligeiramente mais lentos, como o segundo Noturno de Chopin, trilha sonora daquela tarde modorrenta. Ele franziu um pouco as sobrancelhas, senti minhas bochechas vermelhas e desviei-me do caminho. Espirrou enquanto eu saía pela porta. 

Na quinta-feira ele tomava um café no bar da esquina. Coçava o rosto enquanto lia uma notícia sobre o aumento do dólar. As unhas se perdiam na barba impecável e eu quase ouvia o ruído. Eu trazia um guarda-chuva que deixei cair enquanto repetia seu gesto, e entrei no carro antes que ele pudesse me ver. 

E sexta. De novo. Já não sabia como aquilo tinha virado uma pequena perseguição. Da mesa central do sebo onde agora estava, vi quando ele entrou, sacudindo um pouco o meu guarda-chuva do dia anterior. Sua camiseta tinha respingos, suas olheiras eram mais evidentes e sua barba imaculada continuava ali, preta, cerrada. Senti que meus batimentos aceleravam ao ritmo da Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Beethoven, como se o local tivesse sido invadido por uma horda de violinos. Quando o primeiro solista tomou conta da música e ele me estendeu o guarda-chuva, meu impulso levou minhas mãos diretamente ao seu rosto. Saímos dali quase românticos, pouco antes do coro e do meu coração explodirem, pouco depois que fechei os olhos e o mundo começou a desaparecer ao redor. 

As minhas unhas estavam bem cortadas, concluí. Arranhões marcavam o interior das minhas coxas. Riscos e traços com resquícios de sangue seco. A potência da língua abafada pela barba cortante. Os pelos afiados do rosto dele. A indecisão de saber o que ele tinha bebido de mim, e se as minhas lágrimas eram de prazer ou de dor. 

Sem fazer nenhum barulho, fui até o banheiro e descobri na primeira gaveta uma navalha. Reluzia. Ao pé da cama, calculei: três respirações dele cabiam dentro de apenas uma minha. Eu murmurava aquele mesmo trecho da Nona Sinfonia enquanto seus pelos iam caindo sobre o travesseiro branco. Minha destreza me espantou. Seu rosto ficava liso e branco. No escuro parecia um vampiro. Em questão de minutos, estava feito: passei os dedos lentamente sobre aquele pedaço de carne exposta, a pela macia, escancarada, a antiga barba espalhada sobre a fronha onde ele dormia. 

Peguei minha bolsa, bati a porta no exato momento em que o último compasso da Nona Sinfonia morria em meus lábios. No elevador, passei as mãos entre as pernas, fechei os olhos e senti: não demoraria a cicatrizar.




* tradução (wikipedia) de um dos versos do poema de Schiller, parte da Ode à Alegria, da Nona Sinfonia de Beethoven. 

2 comentários:

Gustavo disse...

Julieta é diversão garantida.

Pedro Lago disse...

O Freuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuunden!
:-)
PL