(para Paula)
- Às vezes eu fico enjoada de todas as músicas que eu tenho e então faço isso, fico escutando tudo o que aparece. E de repente alguma coisa faz UAU!
- E quando nada faz?
- Mas faz, acaba fazendo. Algumas músicas batem de primeira, é claro. Mas sem querer eu acabo dando uma segunda chance. Tiro um cochilo, escuto de novo num outro dia, num outro clima. Acho que tem a ver com o humor, dias chuvosos, por exemplo. Algumas músicas parecem ter sido feitas pra esses dias, devem ter sido criadas sob dilúvio.
- De fato. Eu tenho preferido as solares, as que dão vontade de aprender a tocar bateria.
- Eu ando com vontade de tocar baixo. Isso quando eu não tenho vontade de ouvir umas coisas do além. Acontece isso também, uma música que fica martelando na minha cabeça de manhã, geralmente nostálgica, quase sempre duvidosa. E é como se só a execução contínua da tal música pudesse salvar o dia. E é mais que uma vontade, é um precisar muito definitivo.
- É quase drástico, credo!
- É, é drástico...
- Exemplo?
- Ah, não, isso eu não digo.
- Por que não? Qual é o dilema?
- O dilema é que você vai me julgar.
- Você me julgaria se soubesse dos lapsos que eu tenho na vida, e alguns são bastante graves.
- Como?
- Como só ter começado a escutar David Bowie esse ano. Pior: descobrir que eu sempre adorei uma música sem saber que era dele.
- Como você só começou a escutar David Bowie esse ano?!
- Olha aí, julgamento.
- Está certo. Você merece saber: hoje acordei com muita necessidade de ouvir uma música do Kid Abelha.
- Kid Abelha! Na época dos Abóboras Selvagens ou depois? Ou quando eles tentaram se chamar só “Kid”?
- Da fase Kid Abelha mesmo, de quando cantávamos Fazer Amor de Madrugada nas festinhas. De quando jogávamos as mãos para o céu e tal. Quando a gente vivia em show do Kid Abelha no Metropolitan, lembra? Quando o Metropolitan ainda era Metropolitan.
- Claro! Quando o Prince ainda era Prince, o Jota Quest ainda era J. Quest... Por que a gente gostou tanto assim do Kid Abelha, hein?
- Vai saber. Acho que porque a gente achava tudo possível naquele tempo. Se a Paula Toller fazia sucesso com aquela voz...
- Mas por que você queria tanto ouvir Kid Abelha? Qual música? Não vá me dizer que era Grand Hotel...
- Não! Pior...
- Pior do que ter passado a vida toda gostando de O Astronauta de Mármore e deixado um cd do Nenhum de Nós na prateleira só por causa dessa música e só depois de a-nos descobrir que é uma versão do Bowie?! Você tem idéia do que eu passei pra justificar a presença daquele cd ali no meio dos outros?! E ninguém nunca me disse que era uma versão!
- Eu tive um sonho, vou te contar.
- Que sonho?!
- Não, eu tive um sonho, vou te contar, eu me atirava do oitavo andar, a música do Kid Abelha!
- Aaahhh!
- Pois é... Pelo menos eu sabia que música era, pior é quando eu acordo precisando de uma música e não sei qual. Parece que falta inventarem alguma coisa nova.
- Isso acontece sempre nos dias nublados.
- Dias nublados são bons para ouvir Hootie and The Blowfish.
- Você tem escutado alguma coisa desse século?!
-Você tem escutado Ziggy Stardust pela primeira vez na vida. Acho que você não está em condições de questionar meu momento musicalmente adolescente.
- Ok, ok, eu me rendo. E confesso que de vez em quando o Lulu Santos ainda canta por aqui.
- É melhor não resistir e se entregar... A gente tinha o que? 17, 18 anos?
- Por aí. A gente gravava fitas com as melhores músicas.
- A gente escrevia partes das letras na capa dos cadernos. O que será que as pessoas escutam hoje em dia? Às vezes eu coloco na estação de rádio pra ter uma idéia do que as pessoas ouvem. Mas me parece que até hoje todo mundo escuta O Último Romântico ou Como Uma Onda. Mas eu só escuto rádio de mãe, então não sei...
- E Carly Simon. Toda vez que toca Carly Simon no rádio eu sou tomada por um espírito revolucionário, como é que as pessoas se conformam em ligar o rádio e ouvirem essa mulher cantando? Eu fico possessa, xingo o locutor, xingo as pessoas que ainda toleram esse tipo de coisa.
- Vai ver os caras das rádios seguem essa mesma política de acordar impregnados de uma música. Mas o que a Carly Simon te fez?!
- Não é ela, é essa coisa, sabe? Uma seqüência de músicas toscas de 20 anos atrás com tanto artista por aí, então a gente tem que fazer investigações pra descobrir bandas legais e pessoas atuais. Teve uma época que eu me dei conta de que só ouvia gente morta, um horror! Minha coleção de cds só não estagnou porque volta e meia saía uma coletânea póstuma de alguém.
-Cruzes! Se a gente tivesse continuado a escutar o Kid Abelha e o Lulu Santos não teria problema, eles vivem com discos novos.
- Eles morreram também, só não querem admitir ainda.
- Pode ser... Outro dia saí pra dançar com uns amigos e não conhecia nenhuma música. Nem umazinha. Me senti uma tiazona, sabe? Por fora.
- Sei. Acho que é assim mesmo, acho que é assim que se começa a envelhecer, talvez eu esteja sendo dramática, mas acho que é por causa dessas coisas que a gente acaba voltando aos clássicos.
- Ou ao contrário? Por causa dessas coisas que eu fico dias nas lojas ouvindo discos.
- É, só que pra mim isso só piora, é o mesmo que acontece quando entro numa sorveteria, são tantas opções que acabo sempre indo para os clássicos. Acabo me dando conta de que tem tanta coisa nova no mundo e ao mesmo tempo caio na real desses lapsos, penso no Bowie, no Velvet e resolvo preencher as lacunas.
- Faz algum sentido. O problema é que eles já estão prontos pra gente gostar, né? É menos arriscado e aí acontece aquilo, uma discoteca de shows que a gente nunca vai ver.
- Eu sei. Mas imagina se numa dessa tarde de aventuras eu fico escutando as músicas da Katy Perry enquanto eu poderia ouvir todo o Supertramp?
- Ou Hootie and The Blowfish, se tiver nuvem no céu...
:: She's uncertain if she likes him
But she knows she really loves him
David Bowie in Drive-in Saturday
2 comentários:
Todas as pessoas de 17 anos cantam Lulu Santos e escrevem as letras em cadernos? Lulu Santos é um rito de passagem? Adolescentes de todas as épocas ouvem Lulu Santos, amarram casaco na cintura e falam horas ininterruptas no telefone?
Nossa como eu AMAVA os shows Kid Abelha e Lulu Santos no Metropolitan. Mas confesso que muitas vezes fui a show de quem eu nem sabia quem era só pelo progama, oh época boa, menor de 18 anos! rsrsrsrsrs
bjs
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