Eu não gostava de ler biografias, na verdade sempre as abandonava às metades e montava torcida secreta e solitária pro biografado morrer logo, por que é que essa gente precisa amar tanto assim, eu perguntava, e com essas justificativas eu podia vislumbrar todo o falatório que eu poderia ter com o sujeito de óculos e casaco verde que se aproximou pra conversar, mas não, me desculpe, eu não socializo em livrarias, não com 3 livros no colo, costas curvadas pra frente, banco de madeira e o Jimmy Page sem ter ainda idéia de quem era Robert Plant.
Pouco depois ela disse que eu estava ranzinza e velha, e eu estava mesmo e além disso estava também sonolenta, alérgica, chata, sem assunto e com uma quantidade inaceitável de cabelos brancos, vibrando com a descoberta de uma prateleira intitulada “autores lusófonos” e indisposta a qualquer tipo de abordagem, fosse do sujeito de óculos e casaco verde ou do vendedor me oferecendo ajuda, o que ali, naquele lugar, nunca acontece, ufa. Eu poderia ter concordado quando ele disse que ficava sempre à espreita pra ocupar uma das poltronas caso elas se esvaziassem, mas o achei bobo por pensar que alguém seria generoso assim, dei um risinho condescendente, peguei os livros, fui ao caixa, deixei dois pelo caminho e voltei pra casa com uma certa dose de som e fúria.
Ela disse que eu poderia ter sido menos ríspida, eu disse que não fui ríspida, ela insistiu que sim, eu respondi que ela nem estava lá pra ver e que as pessoas que iniciam conversas com desconhecidos devem saber, ou ao menos aceitar, que tem gente assim feito eu: ríspida.
Bandeira branca pra ela, eu não estava em condições de discutir, eu não tinha argumentos pra nada, eu não tinha mais nada além de uma preguiça e de uma apatia que eu não sabia como vencer, pior, que eu não queria vencer. Ela disse que também andava assim, e combinamos jantar pra resmungar juntas e maldizer todas as pessoas felizes de batom e visão política, salto e óculos e casaco verde, será que todo mundo que trabalha demais fica chato assim como nós? Será que todo mundo que tem o coração quebrado recorre a “autores lusófonos”?
Eu tomei muito gin tônica aquela noite, até o meu drink parecia ultrapassado e demodê, eu sentia calor e minhas bochechas ficaram rosadas no primeiro gole, eu dormi atravessada na cama sem nem um lençol, esqueci de mandar uma mensagem pra ela avisando que tinha chegado bem e ela esqueceu também, cheia de ice-tea no sangue, e acordei vomitando tanto que resolvi dar um mergulho no mar.
Naquele dia o sol não durou muito, eu encontrei três pessoas na praia e inventei outras duas que não eram reais. Naquele dia eu fui ao cinema e depois conheci um novo Baixo, conversei bobagens com amigos que há muito não via, bebi moderadamente e respondi a tantas perguntas que fiquei besta de ver. Naquele dia as pessoas queriam saber se eu tinha gostado daquele balé (não), porque eu continuava de óculos ( ), como estava o Roberto (eu não sabia, mas eu estava com saudades do Roberto), quando a Cissa ia embora (e eu não queria pensar ainda que a Cissa ia embora), onde eu andava saindo (em casa), se eu gostava do Mia Couto (coração) e o que eu estava lendo (autores lusófonos).
Aquele dia me deu vontade de voltar a escrever, de encontrar as pessoas, de, quem sabe, voltar à livraria e responder com mais boa vontade as possíveis perguntas do sujeito de óculos e casaco verde e de repente saber o que ele gostava de folhear por lá. Naquele dia eu percebi que as coisas continuavam boas, era eu que tinha desaprendido de gostar. Naquele dia derrubei todas as paredes flácidas que eu tinha erguido, dancei e gargalhei como se ouvisse música, comi feijão com arroz como se fosse o máximo.
3 comentários:
Nao deixe quem gosta de ler-te com saudades de faze-lo
Oi, Julieta. Navegando por ali e por aqui, acabei chegando até aqui e gostei mto do seu blog. Voltarei.
Um abraço
adorei! como sempre, by the way...
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