(vol. II ou - o atropelamento segundo Caetano Veloso)
Acordo, pisco os olhos e me encaminho pra cozinha para devorar castanhas e é o suficiente para sentir a pele abrir-se em esgarços: pequenas feridas se depositam no topo das dobras dos dedos, a textura toda do rosto é agreste e o nariz sangra: pela manhã, à saída do ônibus, o vento frio na cara faz parecer NY, os combustíveis fazem parecer o inferno, o ipod faz parecer coincidência demais essas coisas sobre as quais não ouso pensar.
Em meio a tantas galerias, ilustrações e cores, decidimos que tão importante quanto o poder aquisitivo é a extensão das paredes, e mais grave é a dimensão das molduras: discutimos a necessidade do “paspatur” e mais tarde, entre chillis e cervejas com limão, debatemos a ética profissional, seguramos as lágrimas que se disfarçam em risadas, ensaiamos embriaguez no final do domingo.
À tarde no escritório as pessoas comem bolachas, nunca biscoitos. Nos finais de semana as pessoas “dão risada”, nunca gargalham. Algumas coisas em São Paulo são “embaçadas”, e não são necessariamente vidros ou lentes. Outras ficam “zoadas”. Tem gente que “causa” na balada. E todo mundo atende pela primeira sílaba do nome, até mesmo Ana pode ser reduzido a “Ô. Em São Paulo é assim: acostume-se com o dialeto, imite o sotaque, faça parte. Alguém vai te sacanear quando você falar “treix” ou “meixmo”. É a sua chance de sacanear de volta, com requintes irônicos que nem o mais erudito paulistano alcançaria: quer que eu te imito?, pergunte, e ria por último e melhor (e sozinho).
Fim de semana em Higienópolis, Aderbal e eu nos fazemos companhia. Em poucos minutos entendo seus miados e chamados, e em questão de duas ou três trocas de olhares nos gostamos tanto que ele deita no meu colo, se esparrama, fica dengoso e meu. É uma delícia, não fosse o pequeno acidente que ocorre depois de cerca de uma hora: sem querer, eu como o Aderbal. Ele solta tanto pêlo que começo a sentir na minha garganta seus cabelos, entro em pânico pensando que os pêlos todos do Aderbal se alojarão na minha garganta. Percebo, porém, que ele não encolhe, ufa. Saio do apartamento aliviada, e então, rá!, como minhas luvas e o cachecol, e, dependendo do figurino, como o meu casaco também. E comeria qualquer coisa que fosse feita de lã e se desfizesse aos poucos encontrando trajetos que levam o tecido a se acumular diretamente na minha garganta. Comeria outros bichos também. Papo estranho, melhor mudar de parágrafo.
Ando atenta pelas barracas da feira e aumento para 3 o número de itens da minha coleção de latas de talco antigas, questiono se de fato a denominação procede. Acho que sim. Quero que sim. As barracas de brinquedos antigos afirmam nosso saudosismo, e compro um Snoopy vintage para o sobrinho, que provavelmente terá mais interesse em coisas que piscam. Suspiro. Quem sabe?
Apita no meu celular uma mensagem enquanto atravesso o viaduto do chá: “ainda na terra dos bandeirantes?”. Certamente. Fugindo da multidão que invadiu a Liberdade no domingo de feira, e acho tudo naquele bairro um horror, de modo que nem um sashimi me salva.
Tiro fotografias sem ter qualquer noção de que elas mostrarão tudo o que quero lembrar e, num descuido, queimo 24 poses de recordações. Desconsolo na Sé.
Fico com uma enorme vontade de me apaixonar por alguém, pior: preciso me apaixonar por alguém.
Tento: entro na Catedral, dou bom dia a um monge na porta do Mosteiro de São Bento, cruzo a Ipiranga e a Av. São João e o máximo que me ocorre é um espirro. Há que ser muito Caetano para mapear poesia em cruzamentos no nervo da cidade, e então um estalo. A maioria das ruas por onde tenho circulado não tem sinal (ou farol?) para pedestres e portanto a cada rua que cruzo, prevejo minha própria morte. O máximo que eu poderia sentir no coração ao me deparar com tal cruzamento deve ser algo parecido com a dor do fim. Não há romantismo que resista a tanta ameaça.
Pausa. Fico cansada no fim do dia, me reconcilio com os óculos, pego um ônibus errado mesmo assim. Consigo estabelecer uma rotina para toda a homeopatia e sem mais determino: estou melhor, estou esquecendo, estou voltando.
Canto: desafino, dou gritinhos, rio no meio da letra e tenho uma inveja estúpida de quem sabe tocar violão.
É o fim do exílio: malas prontas a serem entupidas de tudo o que adquiri, responsabilidades e funções novinhas em folha, um ainda não saber como viver longe do Nintendo Wii, uma preguiça de deixar aqui toda essa gente querida que eu adoraria carregar no bolso: sentir saudades de novo, calor de novo, e atravessar os mesmos rostos nos velhos bares, evitar as mesmas farpas e limpar o armário toda semana por causa do mofo.
Saudade eu tenho dessa cidade que ainda mal conheço, da Paulista quando é noite ou dia, das árvores de Higienópolis, do avesso do avesso do avesso do avesso.
Alguma coisa acontece no meu coração quando pego a ponte aérea, vejo os termômetros de São Paulo marcando 14 graus e sinto que pertenço.
5 comentários:
Cai da cadeira de tanto rir lendo "como o Aderbal" . Sua doida !!!
Seu sobrinho tá doido para ganhar o Snoppy, sabe que ele também já tem uma camiseta com esse simpático cãozinho ?
E eu q atravesso o mesmo rosto do bar da janela da cozinha....Hj Oswaldo acordou tarde!
Beijos, Â
Você escreve muito, muito bem... E concordo plenamente com suas reflexões sobre SP...
Vik Muniz.
inveja de quem sabe tocar violão? Quer que eu te ensino?
Essa piadinha que nem o mais erudito paulistano entenderia foi algo assim!
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