Era britânico o ruído que vinha do apartamento de cima: entre a segunda e a terceira garfada, mais precisamente, porque era igualmente pontual o meu almoço e calculada a minha fome naqueles dias de tédio. Entrei numa rotina insípida que causava bocejos a quem eu contasse, até que o barulho do 201 me tirou da inércia. Não pense em romances, novelas, ação ou novidades. Imagine que o vizinho de cima trouxe de volta aos meus dias uma cisma comparável à que eu tinha com o porteiro da noite, que deixou de ser alvo das minhas especulações no momento em que enterrei minha vida social. De lá pra cá, quase nada foi alvo de tanto fascínio e incompreensão quanto o vizinho do 201.
Começou como uma curiosidade: me apeguei às marteladas sincopadas do 201. Dia após dia, refeição após refeição, lá vinha o barulho de um martelo esmurrando pregos. Sutil, impossível de ignorar, porém. Batidas leves, empurrões suaves, diários, e mesmo nos fins de semana. De segunda a sábado, pra ser mais precisa, era possível saber que já passava do meio-dia quando o vizinho começava a agir. Empilharam-se semanas até que decidi perguntar pra minha mãe: é, é verdade, já percebi sim, ela afirmou. Mas sua intriga era até blasé perto da minha, que foi acentuada no dia em que a furadeira entrou em ação. Parecia um ritual: eu me sentava à mesa, decidia entre o suco ou o refrigerante e o motor dava início a orifícios que eu só podia imaginar.
Eu vislumbrava verdadeiras galerias de arte no 201, ou uma bela oficina de marcenaria com pequenas colinas de serragem encostadas às paredes. Sonhava, ainda, que ali poderiam se construir barcos, carrinhos de rolimã, charretes ou qualquer outro meio de transporte improvável. Arcas, quem sabe. Então a cada vez que o suposto homem ligava a máquina pra organizar supostas exposições eu perguntava à minha mãe o que ela achava que poderia ser, e no quinto dia ela sugeriu que poderia ser que eu precisasse arranjar um emprego.
Então eu arranjei, mas era em casa, e os barulhos e ofícios do vizinho do 201 não me largaram. Eu disfarçava a minha obsessão perto da minha mãe, eu não queria causar preocupações pois ela ainda sugeriu que eu arranjasse outras coisas além de emprego: namorado, assunto, amigos e principalmente psicanálise. Cheguei a pegar as escadas algumas vezes, mas ficava empacada entre o primeiro e o segundo andar, me achava mais ridícula que uma carta de amor, voltava, punha fones de ouvido. Mudei o horário do almoço só pra poder ouvir com mais precisão e calma os furos e marteladas, só para tentar adivinhar os detalhes.
Alguma coisa na minha fisionomia denunciou que eu andava com o sono desordenado. Eu sonhava com martelos que batiam na minha testa, com pregos que escancaravam meu cérebro, acordava com enxaqueca só de lembrar. Um dia minha mãe me convidou pra almoçar fora. Eu inventei acúmulo de trabalho. Ela insistiu outras vezes, e finalmente percebeu. Providenciou uma caixa de ansiolítico e inspecionou minha boca como fazem nos sanatórios dos filmes. Tomada a medicação, dormi por dias a fio. Eu estava descompensada.
Acordei de um pesadelo: minha casa era invadida por uma horda de senhores de macacão, bigode e furadeiras, eles lutavam pra esburacar todas as paredes e ligavam suas máquinas na máxima potência e por fim o prédio ruía. Senti minha testa molhada, parecia um delírio. Vi o bilhete de minha mãe dizendo que tinha ido ao mercado. Vi o cão estirado no chão, barriga pra cima, vem chegando o verão. Eu não agüentaria um janeiro inteiro de martelos misteriosos, eu não poderia ficar em paz enquanto não descobrisse o que fazia o vizinho do 201. Abri a porta de casa e o elevador aberto me esperava. Um andar. Apenas alguns segundos. Uma respiração. Um toque na campainha. Um tempo que não sei calcular. Nenhuma resposta. Toquei de novo e de novo e de novo. O relógio marcava 13h04. Nenhum som vinha do apartamento, nenhum prego, nenhum martelo, nenhuma furadeira, absolutamente nada, nenhum ruído, e posso jurar que o blim-blom do convite imposto fazia eco. 13h17. Às 14h eu voltei pra casa, minha mãe me recebeu espantada e preocupada com meu sumiço e eu contei. Contei que tinha ido ao vizinho, que precisava saber, que ia mesmo pedir pra entrar em sua casa e quando estava prestes a chorar de desespero ela pegou minhas mãos e disse: você precisa ser forte. Foi assim que soube que o vizinho do 201 não morava mais lá.
2 comentários:
Hahahahah, que saudades desses seus textos !!!!
Ju, esse texto é maravilhoso.
Obrigada, amore mio, pelo melhor blog de todos os tempos. Pois no dia em que fiquei new york-less, ele está me distraindo.
Quando voltar, precisamos conversar sobre esse vizinho.
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