quarta-feira, julho 30, 2008

Meus suicídios (em 3 atos)

I.

Eu me suicido toda vez que uso arco. É burro esse meu suicídio. É uma espécie de insistência vaidosa. Começa naqueles dias em que o cabelo está tão disponível para arcos que caio mais uma vez na armadilha dolorosa que eles fazem e então coloco um na cabeça e já está próximo o abismo. Em poucas horas eu estou completamente possuída por uma vontade de saltar pro fundo e o fim do abismo, as têmporas latejando, a cabeça toda começa a doer e a pulsar e de repente não há mais luz ou barulho à minha volta, somente sinto uma dor sincopada que cresce e PÁ! me estatelo no chão. É tarde demais pra tirar o arco da cabeça e também tarde demais para jurar nunca mais comprimi-la com um deles: o dia já está mal-humorizado, eu já não penso em nada senão quebrar o acessório.

II.

Eu me suicido toda vez que como tangerina. É inevitável esse meu suicídio. É uma espécie de rotina necessária. Começa quando entro na cozinha e o ar está impregnado pelo cheiro laranja da tangerina e então, segurando-a com a mão direita, cravo o dedão esquerdo na casca e divido a fruta em duas partes. A partir daí a corda está pendurada: o cão ao lado começa a subir pelas minhas pernas, os gomos se enfileiram no prato para serem descascados, arranco os fiapos um a um até que cada um fique o mais limpo possível para só então degusta-los. Mas aí o cão já está latindo, implorando por seus pedaço, me olhando com cara de desespero e fazendo todo o barulho que consegue, eu como os gomos afoita sem quase sentir o suco, encho o cachorro com um ou dois que nunca são suficientes, e no fim eu também não me satisfaço, com tanta inveja alheia e de repente, pronto: o prato está vazio, a casca está de lado e o nó já está sufocando meu pescoço. É muito cedo pra tentar de novo e além disso o cão está sempre aqui a pedir mais.

III.

Eu me suicido toda vez que tento te ter. É reincidente o meu caso e eu me suicido com uma persistência espantosa. É deprimente, repetitivo e ultimamente tenho receado ser um pouco obsessivo também, e é como se o meu suicídio estivesse condicionado à sua mera aparição. Eu carrego as armas quando você me enlaça para o cumprimento e é quando seu rosto toca o meu que descarrego a primeira bala, a que suspende a respiração acertando um pulmão. Eu atiro nos meus pés quando você me tira pra dançar e dilacerados eles tentam seguir o ritmo da música e se esbarram nervosos contra os seus. Eu acerto minhas mãos quando você me abraça e me diz coisas lindas e não consigo nunca acariciar seus cabelos em retribuição aos elogios que você sussurra, então eu atiro no meu peito e começo a sentir tanto frio, tanto frio e vou chegando mais perto, já na ponta dos pés machucados pra alcançar os teus lábios e BANG! acerto a cabeça quando você se desvencilha do meu beijo e resolve ir embora sem porquê. Eu caio ensangüentada no chão quando te vejo partir depois de ter me conquistado de novo e não consigo atirar em você porque uso as últimas balas do revólver contra os meus olhos, pra não te ver com ela, pra não te ver com outra. Eu me suicido toda vez que você está por perto, te odeio no dia seguinte e te amaldiçôo até te encontrar de novo, me suicidar outra vez. Não dói, fazer o quê?



8 comentários:

Anônimo disse...

Lagrimas nos olhos pelo ATO III, que, imagino eu, deve ter sido ATO que motivou o texto inteiro. Dolorido, mas lindo. Texto visual... sensacional. Parabens.

Beta disse...

Estava com saudades de atualização! :)
Lindo texto, como sempre!

Anônimo disse...

julia, querida, como você é intensa!!! é TÃO gostoso ler o que você escreve. eu sempre fico morrendo de vontade de te chamar prum café e conversar por horas!

Anônimo disse...

eu pesquei um erro no título mas vou ficar quieto pq achei muito foda. os atos, não o erro.

Julieta disse...

nossa, pesquei tb, depois de muuuuito pensar e ler, vou corrigir!

bruna disse...

eu pesquei um erro muito pior - alguem q escreve assim nao pode fazer outra coisa a nao ser escrever. É sério.

Bruno Quintella disse...

Um suicídio reincidente a conta-gotas. Sadicamente dilacerante e encantador: apaixonante. Pulmão, mãos, pés, peito, cabeça e olhos: um baita tiroteio de sentidos.

Lindo texto.

beijo enorme!

Lu disse...

Caí de páraquedas no seu blog depois de receber o link do 3o capítulo dos suicídios, compartilhado por uma amiga... Primeiro ri, porque também não consigo passar por uma maldita porta giratória de banco sem que a porcaria trave como se eu estivesse com armamentos pesados e explosivos amarrados na minha barriga. Aí fui procurar os outros atos suicidas e cheguei a pensar que tivesse te contado o que aconteceu comigo no sábado passado, porque é que está escrito no terceiro suicídio desse primeiro ato. Por favor, suicide-se mais!