Somos 4 num boteco xexelento em
Ipanema. A mesa, repleta de garrafas de cerveja, está molhada. Ameaço ir
embora, coloco o dinheiro num espaço ainda não alagado. E fico além da hora. As
notas se afogam. A gente fala do novo filme do Tarantino, que agora é só o
penúltimo. Eu tiro fotos que ficarão mais escuras que o desejado. Nenhum
negativo captura você, sentado à minha frente. Separo e organizo as notas
molhadas, o que dura alguns segundos. Você fica vidrado nas minhas mãos, sem ar
ou batimentos pelo tempo que leva contar 16 ou 18 reais em notas de 2. Isso foi
uma dança da Pina Bausch, você diz. Eu te amo, penso em responder.
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(hoje mesmo)
Antonio me abraça suado no fim do
espetáculo. Cansado e grisalho, reparo. Passa lá em casa, eu tenho livros e
vídeos que podem te ajudar. Bloco 5, 118. Ainda estão lá: aquele rumor de
vento e árvores; o salão de festas onde por meses dançamos; o futon vermelho na
sala; Antonio. Eu tenho uma saudade de Antonio! Ele não adivinha e eu não quero
confessar. Fazemos aquelas promessas de sempre. Tenho livros e filmes a
devolver, e portanto pelo menos mais um pedaço de Antonio garantido. Em casa
assisto: sobre fundo negro, as mãos de Pina dançam. Eu sinto aquela coisa que
se sente quando, por um momento muito passageiro (o tempo de contar 16 ou 18
reais em notas molhadas de 2), você perde a força de controlar seus órgãos. Os
segundos antes de um vômito, de um orgasmo, de um choro; os segundos em que a
linguagem escapa.
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(em 2011)
Quando os bailarinos esvaziam o
palco para o intervalo e a cena permanece aberta e a neve que começara em
meados do primeiro ato continua a cair; quando as pessoas deixam as poltronas
para se encaminhar para os banheiros, os bares e os corredores; quando as
campainhas soam para o segundo ato e ainda neva, e de repente os bailarinos
voltam à cena e neva mais e mais e mais e os cabelos se arrastam na neve e
dançam, e os vestidos levantam a neve do chão e de repente tudo é
branco e é preciso quase imaginar os corpos que ali estão, atrás dessa cortina
de flocos; quando os aplausos não se cansam, quando outra vez os assentos ficam
para trás; quando eu fico para trás, sentada numa poltrona da fila H do balcão
nobre; quando eu, desnorteada, ainda vejo neve cair, sentada numa poltrona da fila H do balcão nobre que parece ser o limite do mundo; quando eu desço as escadas
do Theatro e não sei nem mesmo pensar: tem uma corrente que passa sob a pele, um buraco que se abre num ponto impreciso entre a compreensão e o meu estômago.
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(todo dia)
Quando eu não sei nem mesmo pensar: danço, e é sempre com você.
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