quinta-feira, abril 12, 2007

O ministério da saúde adverte:

Sempre fora um homem discreto, mesmo quando usava de galanteios que a faziam corar, os dizia longe dos ouvidos de terceiros. Foi o que a convenceu. Por anos tinha visto inúmeros tipos de cafajestes que desfilavam por sua casa e a discrição deste, o seu jeito comedido, seus gestos, contidos até, a conquistaram. Mesmo em suas demonstrações de afeto, que com o passar dos dias tornavam-se mais freqüentes, era um homem de pouco teatro. Suas falas eram sempre simples, quase espontâneas e poucas vezes vinham acompanhadas de caixas de bombons ou buquês de flores. Até quando usava clichês parecia mais original: lhe presenteava com discos em datas sem qualquer significado, a levava para almoços surpresas em segundas-feiras ensolaradas e até metereologicamente se diferenciava dos outros. Jamais comeram pipoca em noite chuvosa ou fizeram pic-nic na primavera. Era o que a encantava e o que ele tinha de mais charmoso, esse jeito de ir caminhando devagar, apontando cores, desviando da grama. Era um homem paciente e expressava sua delicadeza sem os constrangimentos da maioria dos outros que conhecera, falava de seus medos, emocionava-se com filmes antigos e era capaz de passar horas alisando os cabelos dela enquanto conversavam banalidades no sofá da sala. Até terapia já tinha feito, existencialista. Tivera um cão quando criança, lera quadrinhos e sonhara ser super-herói com capa colorida. Quebrara o braço uma ou duas vezes, tinha o avô como ídolo, namorava as meninas de sua idade. Fora punk por rebeldia, tocara guitarra em banda com os amigos do colégio e admitia até ter tido dor de cotovelo. Quis ser gauche quando leu Drummond, quis ser picareta quando descobriu Godard, foi exagerado quando escutou Cazuza e quase foi poeta por convicção quando descobriu Cartola. Resolveu que por fim, teria de ser aquilo mesmo que era, teria que ir pisando manso pelas calçadas, teria que desviar dos jardins e olhar com calma as cores quando o sol se punha. Ela o ouvia com atenção e sorria ao ouvir suas histórias, sempre tão possíveis e se arrepiava lentamente quando ele a beijava no pescoço, seus lábios macios que ressecavam um pouco no inverno, até nisso era um homem comum e por ser tão alcançável e sincero é que ela gostava e se envolvia cada vez mais com ele, que de tão tão mortal acabou por se tornar uma espécie de raridade, de incompatível com o resto das coisas que ela conhecia. Tentava, em vão, achar nele defeitos graves, traições e por vezes até o seguiu pra ver se se encontrava com outras às escondidas. Devia ficar aliviada cada vez que apenas confirmava a lealdade daquele sujeito mas ao contrário, sua angústia crescia a ponto de ficar cada vez mais irritada e com isso esperava ansiosamente pelo dia em que ele também se irritaria com ela e falaria palavrões e baixarias e confessaria seus crimes, mas nada. Amava um chinês, pensou, e zen, um homem cuja calma e tranqüilidade não se abalavam. E não havia jeito, por mais que tentasse, por mais que procurasse, nada. Sabia que tinha nas mãos o que sempre quisera, um companheiro de verdade e pensando bem conseguia lembrar-se de pequenos delitos dele, alguns atrasos, um dia ou dois de preguiça e uma vez chegaram mesmo a discutir, os tons de voz se elevaram. Ponderou. Não poderia passar o resto dos anos privando-se das alegrias de uma vida a dois só porque constava em sua ficha um sem-número de desilusões amorosas. Virou a página, comprou um vestido novo e ingressos pra sessão das oito, telefonou pra ele e marcou de se encontrarem na esquina. Ele chegou com um disco que há muito ela procurava, finalmente o conseguira na feira de antiguidades. Dividiram uma coca, aplaudiram o filme no final e foram pra casa dela onde passaram o resto da noite bebendo conhaque, dançando de rosto colado, ele cantando baixinho em seu ouvido e Billie Holliday na vitrola. Os dias se seguiram assim, cheios de momentos de intensa paixão até o dia em que, saindo do banho de manhã ele disse que a amava. Abraçou-a como de costume, o corpo ainda úmido e lhe disse: te amo. Ela sentiu as pernas fraquejarem e por um instante quis soca-lo, quis mata-lo, quis chorar, quis que aquela frase nunca tivesse sido dita mas ao invés disso o beijou com doçura e o envolveu com seus braços finos, fez um carinho em sua nuca e entrou no boxe. Era sábado. Ela entrou no banho. Soltou os cabelos e sem conseguir mais conter as lágrimas, deixou-se inundar. Era um choro triste e amargo, o contrário do que deveria ser. Finalmente agora ela sabia, ninguém podia ser tão perfeito quanto aquele menino. Ele gritou-lhe do quarto que ia ao mercado comprar cigarros. Foi a última vez que.

6 comentários:

Anah disse...

que comprou cigarros? Bem que poderia ter sido! Quero mais dessa história.
Beijos.

Anônimo disse...

Ai Julinha, que perfeito!
Escreve um livro?

Anônimo disse...

Ele resolveu parar de fumar? q bom!!! faz mto mal pra saúde!!!
e eu tb acho q julinha deveria escrever um livro!!!!

Anônimo disse...

Ai ai, chorei com esse post.

Jubsky disse...

me apresenta? eu nao ligo de ser perfeito.

Unknown disse...

nossaaaaaa