“Também perguntam muito: ‘o que você está fazendo?’ e que é
uma maneira de aproximar e afastar as pessoas, porque é a maneira de colocar a
pessoa julgando ela mesma. Eu não sei nada, mas sei que estou nascendo, todos
os dias.”
Hélio Oiticica, julho de 1978 em entrevista para Lygia Pape (in Encontros / Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009)
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Eu estava no mar enquanto pensava onde é que eu tinha lido
que os surfistas são o Sísifo de nosso tempo. Não encontrei a fonte. Eu estava
no mar, não tinha como procurar. Eu estava no mar e pensei que isso fazia muito
sentido. Pensei em “Como uma onda”, pensei na Bahia, pensei que finalmente
posso dizer que sinto saudade da Bahia. Sinto saudade desse lugar também,
embora ainda esteja aqui. Sinto saudade de tudo o que gosto imediatamente, e
sinto tudo imediatamente: gostar e saudade. Em doses iguais.
A gente também é Sísifo, por um lado, acordando todo dia,
repetindo os mesmos gestos. Pensei em “Cotidiano”, em fim das férias. Eu estava
no mar e pensei que logo ia sair do mar, e que tudo então seria esperar voltar
pro mar, esperar os dias de sol, e esperar os dias de sol em que eu estivesse
novamente de férias, e os dias de sol e de férias em que eu estivesse aqui
nesse lugar, ou na Bahia.
Eu estava na varando vendo o sol cair, e vendo aquela praia
onde ninguém pode ir, e ouvindo ondas, e de repente tudo ficou daquele jeito: a
potência de um começo e um esmorecer das forças, porque tudo poderia ser assim:
mergulho, orgasmo, ducha, ballet, literatura, fogo, embriaguez, um dia, amor,
qualquer coisa que se sonhara.
Eu estava no mar quando tirei os chinelos e os óculos e
entrei na água fria. Eu estava no mar quando me deixei boiar e olhei pro céu.
Eu estava no mar quando pedi o almoço e sentei à mesa. Eu estava no mar quando comi
camarões rosados, e eu estava no mar quando bebi a segunda cerveja, e a
terceira, e eu estava no mar antes das 4 da tarde já bêbada. Eu estava no mar
quando queimei o pé na sauna. Eu estava no mar quando tomei banho e descobri a
marca de biquíni e quando me joguei na cama ainda meio úmida. Eu estava no mar
quando descobri que faltavam as páginas 471, 472, 473 e 474 do livro que eu
tinha acabado de começar. Eu estava no mar quando bebi toda a água que tinha na
geladeira e quando acordei e já era hora de comer de novo. Eu estava no mar
quando fechei as janelas e sem precisar de pijama, dormi.
Eu estava no mar e teria perdido telefonemas, e-mails e
afins, mas eu estava nesse lugar que não existe justamente porque nos dias
anteriores eu era tão ninguém, e o único refúgio possível era esse, onde só eu
conhecia, onde eu podia pensar o que quisesse, sem ter de explicar, pedir,
insistir e continuar sem. E sem ter de rolar pedra. Eu estava no mar. E quando
eu sair e alguém perguntar, embora não haja quem queira saber, vou procurar
aquele livro. Eu estava no mar. Eu estava no mar, repito se for preciso. Eu estava
no mar.