segunda-feira, outubro 27, 2008

Snakes and ladders

Uma neblina se abate sobre a cidade e não se vê São Conrado da Av. Niemeyer; uma manicure carioca diz que votou no Trivella no primeiro turno e que, portanto, votaria no Paiva no segundo, sendo ela menos uma eleitora do Gabeira, ou seria Caveira?; o Panorama de Dança anuncia nomes de teatros dos quais nunca ouvi falar; o Tim Festival parece ser o único dentro da categoria “festivais” com o qual eu consigo lidar; já faço planos para a próxima fantasia de carnaval; fico apavorada a cada conto de Andersen que termino de ler; me pergunto se a cor bege dos corantes Guarany está em falta no mercado; escuto repetidamente uma música que foi definida por um amigo como trilha sonora de um filme imaginário numa cena de passagem de tempo; olho, minutos a fio, a foto de Bruno Cezario no programa do ballet e não me convenço de que ele seja desse mundo; sonho com cachorro-quente; tenho urgência de mar; após o duelo onde fatalmente um dos cavaleiros sempre perde, uma criança na platéia do teatro diz “perdeu” e é realmente engraçado estar perto delas; perder-se em Santa Teresa requer um casaquinho, caso você vá parar acidentalmente nas paineiras; é sempre melhor ir embora quando todo mundo quer que você fique, seja do mundo ou do bar; volto ao Saara, nunca ao jardim; tem goteira no carro; arranhões também, e as pessoas insistem em me lembrar que eles estão ali; alguém já reparou que a acústica do Bar Lagoa é péssima?; as histórias escritas têm ficado todas pela metade; existe saudade de sentir com um o que sempre sinto com outro, e vice-versa, nunca dá pra misturar os dois num só; o show termina e muitas pessoas continuam cantando em coro; a pele fica bem melhor depois de uma noite dormida com a cara empastelada de Hipoglós, mas se a pessoa é casada, como faz?; nadar é preciso; isso que vem pela fresta da janela do carro à noite deve ser o verão; cortar unhas é uma arte para poucos; Acautele seus objectos, dizem duas placas dentro da igreja antiga da Av. Passos; pulo alto quando escuto aquela marchinha; libélula é uma palavra legal enquanto que suvaco é inaceitável, ela diz, mas eu adoro suvaco e gosto também de ampola; são lindas as bolhas de sabão voando e estourando nos fuços dos cachorros; e quando o ar-condicionado quebra?; e quando a casa começa a fazer barulhos no meio da escuridão sozinha?; e quando eu fico com esse jeito de quem quer fazer besteiras e soltar fogos por aí é quando encosta no meu pescoço a tua língua; vem à tona sempre uma dúvida cruel e eterna, um dia quero gente, noutro quero edredom pra me esconder, noutro quero continuar o encontro; antes de dormir esfrego sempre os olhos e penso que as lentes não servem mais; o espaço é o suficiente pra ela ficar tão próxima que até gruda; tem sempre mais alguma bobagem pra ser dita no fim da noite e ser tão engraçado que a gente estoura de tanto gargalhar na escada dizendo tchau; tem outra música repetida também que diz "eu vou ver o jogo se realizar de um lugar seguro", mas não era pra ser o contrário?

quinta-feira, outubro 16, 2008

The "Vizinho Issue" - parte II

Já faz algumas semanas que não encontro o carro do vizinho ocupando uma parte da minha vaga. O que deveria ser motivo de alívio virou uma angústia ainda maior que antes. O fato é que em tempos de mansidão, a possibilidade de encontrar o carro do vizinho ocupando espaços alheios gerava uma série de hipóteses que emocionavam meus dias. Na minha cabeça eu chegaria no prédio quase ao mesmo em que o vizinho e me espantaria ao descobrir que: a) o vizinho é na verdade uma vizinha mais magra que eu, ultrajantemente cafona e míope; b) o vizinho é um senhor de idade que mora com seu labrador cor de caramelo; c) o vizinho é o príncipe encantado e vamos nos amar no elevador até o primeiro andar. E na minha fantasia mais ousada o vizinho continuaria sendo um sujeito mal-educado que, com um pouco de sorte, me destrataria de novo e então começaríamos um bate-boca exaltado sobre respeito ao próximo, política de boa vizinhança etc, juntaria gente pra ver e a minha analista acharia que fiz progressos emocionais profundos ao enfrentar o sujeito assim.

Mas com essa chuva que faz, o vizinho deve estar parando o carro na garagem, onde não há vaga disponível pra mim, de forma que estaciono sem maiores percalços. Toda a graça que poderia haver se dissipa no momento em que faço a curva da rua e vejo três vagas livres e desimpedidas à minha espera. Meus batimentos cardíacos imediatamente caem, é um tédio.

Agora sou eu quem pára o carro sem respeitar a marcação, na esperança de que o vizinho, ou algum outro, quem sabe até mesmo o porteiro, me chame atenção. Enquanto meu ato transgressor não tem nenhum feedback, preparo um plano mais agressivo de ataque: invadir a garagem e deixar o carro ali em qualquer canto. E enquanto tomo coragem, me concentro numa outra questão igualmente importante e que pode trazer de volta o vizinho, seu carro e uma série de revoltas engajadas de minha parte: o sol, há de brilhar mais uma vez?

segunda-feira, outubro 06, 2008

Atrás de mandinga de amor

- Era uma mistura de sete quiabos com mel, tinha que colocar todos ao lado de uma vela na quarta-feira. Mas não me lembro de tudo e além disso só vale pra filhos de Xangô, e não acredito que você seja um deles...
- Então é ainda mais complicado do que eu imaginava. Existem ritos que variam de acordo com a filiação?!
- Isso. Depois da limpeza que ela me fez, por exemplo, disse que eu tinha que ficar uma semana sem comer feijão, arroz, milho e canjica. E que eu deveria evitar lugares abertos ao meio-dia ou à meia-noite, talvez com filhos de Ogum fosse outra recomendação.
- Entendi. Eu ficaria uma vida toda sem comer feijão e milho, nem precisava de mãe de santo pra isso. Mas como era a limpeza?
- Era à noite, na praia, perto do mar,ela me mandou ficar de olhos fechados e passava alimentos em mim enquanto cantava. Ela cantava o tempo todo, coisas lindas, em yorubá... você escutou os cantos? São os cantos dos meus dois orixás.
- Escutei, mas por que ela ficou tão encantada com a combinação dos seus orixás?
- Ela disse que é uma combinação rara. Teve que consultar os búzios para confirmar e um tempo depois ela ainda perguntou o que Oxossi tava fazendo comigo, que esse não é meu orixá.
- Como assim?
- Eu sou filho de Xangô e Oxalá. E de Exu também, é o terceiro. E Oxossi ta comigo também, mas não é meu, ela viu nos búzios que Oxossi é coisa de família, alguém me deu, sabe? E Exu ela disse que é brabeira...
- Peraí, uma coisa de cada vez... Alguém te deu um orixá? E por que Exu é brabeira?
- Porque Exu é o mais indomável de todos, é o orixá da comunicação, é o começo e o fim de tudo. E é arteiro, sacaneia os outros pro seu próprio prazer, engana os outros.
- Sei. E quais são as características dos outros dois?
- Xangô é o orixá da justiça, da pedra e do trovão, é guerreiro, teve três esposas ao mesmo tempo, é explosivo. E Oxalá é Deus, é o pai de toda criação.
- E Oxossi?
- Oxossi e Exu são irmãos, mas eu não sou filho de Oxossi, só estou com ele porque me deram.
- Ainda não estou convencida de que você não tenha roubado esse Oxossi de alguém. Mas então, resumidamente você é estressado, mulherengo e sacaneia os outros. E precisou uma mãe de santo na Bahia pra concluir.
-Tchau.
-Tchau nada que agora eu quero saber de quem sou filha.
- Você deve ser filha de Nanã, que é avózinha que nem você, nisso você combina bem com ela, duas avozinhas.
- Há há.
- Ela é o orixá mais velho do mundo e foi amaldiçoada por Oxalá depois que rejeitou o filho que tiveram juntos.
- Credo! Não, não quero ser filha de Nanã, até porque a gente é filho de orixá que tem as mesmas características, né?
- É. Talvez você seja Iemanjá. Foi mulher de Oxalá também. E é muito poderosa. Ou Oxumaré, que é confusa pacas, metade do ano é mulher, metade é homem, ele que faz a ponte entre Xangô e Oxum. Talvez você tenha alguma coisa de Oxum, Oxum é tão bonita...
- Humm Oxumaré tá fora que eu não sou tão confusa assim e tenho certeza de que sou mulher o ano todo. O que mais Oxum tem?
- Eu já vi uma Oxum dançar, é muito bonito, escorrem lágrimas dos olhos dela. Durante um tempo eu achei que pudesse ser de Oxum também, porque ela é muito doce.
- Eu também sou doce, acho que estou gostando de Oxum.
- Mas ela é meio escrota também, era a preferida de Xangô e sacaneou Obá.
- Obá é quem mesmo?
- Era uma das esposas de Xangô, que caiu na conversa da Oxum e cortou a própria orelha, botou na sopa de Xangô porque a Oxum disse que assim ele iria se apaixonar mais por ela. Só que ele ficou p da vida e a Oba disse que tinha seguido os conselhos de Oxum.
- Putz, coitada... mas também, com tanta concorrência, né?
- E Oxum ainda tirou o turbante da cabeça só pra mostrar as duas orelhas lá, e ainda riu. Eu acho que no fundo eram todos meio sacanas, sabe? Tipo Macunaíma. Tem Iansã, talvez ela se pareça mais, deixa eu ver...
- Já sei, ela também era mulher de Xangô.
- Sim.
- Mas não existiam mais orixás homens? Ou Xangô era irresistível?!
- Xangô era foda mesmo. Mas olha aqui o que dizem sobre Iansã: Os filhos de Iansã são pessoas propensas a dar grandes guinadas em suas próprias vidas, a qualquer momento, sem se importarem com ninguém. Não gostam de se prender a ninguém pois são livres como o vento Acho que você é mais parecida com Oxum, embora tenha um pouquinho de Iansã também.
- Eu acho que sou órfã. Pelo menos não sou filha de Ossanha.
- Você nem conhece Ossanha e ta implicando, por que essa birra agora?
- Sei lá, mas tem aquela música “Se é canto de Ossanha não vá que muito vai se arrepender”. Eu boto fé no Vinícius.
- A minha mãe de santo está vindo esse mês.
- Então ela vai poder resolver quem é meu orixá.
- Você acha que vou dividir minha mãe de santo com alguém?
- E por que não iria? Não vou poder nem ver a mãe de santo?
- Não.
- Tudo bem, eu invento um orixá que esteja à minha altura. E nem adianta insistir que não te dou o meu, você que fique com esses seus três e o quarto roubado porque o meu ficará guardado a sete chaves.
- Durante um tempo eu achei que podia ser Oxossi também.
- São muitas opções, é bem confuso isso, não? E se você mostrar meu perfil do orkut pra mãe de santo, vale? Já que você não pode dividir...
- Mas sou Xangô mesmo!
- Alô, eu to falando com você!
- É que Oxossi gosta muito de mulheres doces, e como ele foi casado com Oxum eu achei que poderia se-lo também. Oxum é a coisa mais doce do mundo.
- Tchau.
- Mas que explosivinha. Oxum não faria isso. Iansã faria. Iemanjá talvez.
- Sou órfã, pronto. E além do mais, eu preferiria ser filha de 68, ou filha de alguma revolução. Combina mais comigo. A sua mãe de santo me odiaria, certamente.
- É, acho que vocês não se dariam bem mesmo, ela ia ficar magoada quando soubesse que você confia mais no Vinícius do que nela.
- E você não?!
- Eu falei com ela esses dias, eu queria roubar uma mulher. Acabei não pedindo nada e a mulher me ligou todos os dias da semana. Eu liguei pra ela depois, pra mainha, e contei tudo, ela disse que tinha colocado um melzinho pra mim.
- E não sobrou nada desse mel aí?
- Querida, nossos orixás não são os mesmos, o mel não funciona pra todos, é como aquela história do quiabo.
- Ah é... Bom, ela envenenaria o mel de qualquer jeito. Ou haveria um revertério e o efeito seria tão estranho que me faria voltar pra você.
- Você acha que a minha mãe de santo faria isso?!
- Eu espero que não, mas por via das dúvidas é melhor não arriscar.

- Mas que desprezo é esse agora?!
- Beibe, eu aconselhei Obá a cortar a orelha por sua causa, isso parece mais tragédia grega que mitologia de Candomblé, não acha? E além do mais você me amaldiçoou por causa de um filho rejeitado. Fora todo o resto que você não deve ainda saber. E você ainda quer que eu fique com você mais uma encarnação?! Não acha que já tivemos emoções suficientes?
- É, pode ser... talvez seja melhor mesmo você ficar longe de mim.
- E da sua mãe de santo também. E é melhor irmos dormir também.
- Com certeza.
- Boa noite.
- Boa noite.